domingo, 16 de maio de 2010

O Cinema do Padre

O cinema pertencia ao Padre Sales ou ao Monsenhor Doutor Francisco Apolônio Jorge Sales, como gostava de ser tratado, Camareiro Papal por derradeiro, título do qual muito se orgulhava. Era o Cine Soledade e cumpria a missão educativa de exibir películas de conteúdo sério, enredos suficientemente capazes de servirem à formação dos jovens e à reflexão dos adultos, como aquele da inauguração, quando apresentou o filme: O Coração. A história retratava a vida de um jornalista da imprensa diária e mostrava um de seus dias de grande cansaço, de exaustão quase, impedindo-lhe de escrever a crônica da manhã seguinte. O filho, vendo o pai assim, exaurido, terminou sentando-se à máquina e exercitando a criação, deixando-lhe no dia seguinte perplexo e satisfeito com a ato e com o fato. Impressionei-me com isso, confesso, e sai meio perturbado com a minha incompetência para repetir o feito! Tendo recebido depois de meu pai a obra correspondente, escrita por Edmundo de Amicis, tomei aquilo como sugestão para a vida, a de contribuir também, de alguma forma, para a família e até a de substituí-lo na precisão da hora! Eu tinha dez anos apenas, vejo agora, relendo a dedicatória paterna e era incapaz mesmo para qualquer coisa! Mas, os tempos passaram e um belo dia pude realizar o desejo pueril, o de ajudar o jornalista no batente! Escrevi três de suas crônicas, mas não agradei, inteiramente: “Não escreva mais! O seu estilo é outro! Você diz umas coisas que eu não digo!”. E era isso! Não podia ser diferente! Mas, cumpri o desiderato filial!
O pároco da Soledade, porém, brindara a família toda com permanentes que davam acesso gratuito às sessões noturnas e às exibições vespertinas e eu fui inúmeras vezes à platéia assistir a um sem número de filmes. Vi de um tudo, dentro dos limites sempre das recomendações do cura. Outras fita, em tudo diferentes, à semelhança daquelas de Brigitte Bardot, como foi Europa de Noite, tinham que ser vistas no Trianon ou no Art Palácio, mas o resto o Cine Soledade exibia pra toda gente. Eu gostava de admirar as cenas da tela, sem desprezar as particularidades ou as peculiaridades da platéia! Certa vez, por exemplo, chegou uma figura interessante, um marmanjo barbado, e do andar de cima gritou: “Mulheres! Cheguei!”. Os espectadores deram uma gargalhada coletiva e o gerente não dispensou a falta, tomou o anarquista de ocasião pelo braço e foi logo expulsando do recinto. O rapaz não perdeu tempo e novamente gritou: “Mulheres! Já vou!” Não precisa dizer da reação da platéia, a qual, outra vez, estourou em ruidosa e mais do que sonora gargalhada! Ali, no cinema do padre, muitos se iniciaram na pureza dos sentimentos, dos afetos e dos afagos ou nos amores quase platônicos em voga ao tempo, cochichando juras que não foram cumpridas ou fazendo promessas vãs, que restaram esquecidas aos ouvidos de agora. Havia à entrada uma boboniere, na qual se comprava o chiclete e se aliviava o hálito das declarações e dos amores. Perfumavam-se assim as palavras e as frases dos escuros e de outras cenas.
Mas, quando as cenas eram picantes - picantes para a moral da época -, como aquelas passadas nas praias, na abertura da temporada, quando a mulherada aparecia em agora comportados biquines, o Padre Sales, que a tudo assistia, chovesse ou fizesse sol, gritava para o operador: "Corta, Ribeiro! Corta Ribeiro!". E o atento funcionário utilizava-se de um anteparo de papelão, a tampa de uma caixa, geralmete, ocluindo a imagem que passava da câmara de exibição para a tela. Mas, a meninada, sobretudo os que estudavam catecismo e tinham direito à entrada gratuíta, Moisés Diniz à frente, não descuidava a hora e respondia: "Deixa Ribeiro! Deixa Ribeiro!". O operador não podia fazer nada, senão obstruir, realemnte, a passagem da imagem em movimento. Era um cinema de bairro, como tantos outros que neste Recife de Deus funcionaram nos arrabaldes e tanto serviram ao lazer, fosse dia ou fosse noite. Cinemas como o Politeama, conhecido como polipulga, tal a falta de higiene do lugar e tal a coceira dos expectadores. Nessas casas de projeção levava-se as namoradas e as trocas na tele serviam para orientar os amassos dos enamorados. Assim, por exemplo, ao terminar o jornal, passava-se o braço por cima dos ombros de uma penitente qualquer, começado o filme, arriscava-se um beijo na boca.   
Quando a casa foi arrendada as coisas mudaram e a censura marcava a idade. A molecada, entretanto, não deixava de comparecer aos filmes impróprios até 18 anos, mesmo na situação atrapalhada à época, a da chamada menoridade!
E por ai vai!