sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O Padre Macaco



Amigo meu, com o honroso cognome de Boca da Noite, sem hífen, porque as coisas mudaram e tiraram o traço do apelido desse meu chapa, fez uma ligação telefônica valendo-se do celular e disse que gostaria de ver suas histórias por aqui. É que leu o que contou o meu colega de colégio, o Fagundes, e foi lembrando de coisas do arco da velha. Primeiro precisou dizer como adquiriu o apelido. Tempo houve, contou, que o seu pai adoeceu de hepatite e foi despachado para tomar os ares de uma praia. Ele ficou no Recife, destacado para almoçar e jantar em casa de irmão muito próximo, mas com residência posta em rua distante e penosa, exigindo mais de um ônibus como condução. Uma noite qualquer, parou em casa da madrinha e ouviu dela o oferecimento: “Meu filho! Sirva-se de uma sopinha!”. A resposta veio rápida: “Minha madrinha, quem se negar a tomar uma sopa oferecida por uma pessoa como a senhora, não merece o nome de gente!”. E tomou um prato, repetiu e quase tomava outro. Passou a frequentar essa sopa noturna, a cada noite, semana após semana, ouvindo um dia a notícia que a empregada dava à toda família, antes que chegasse ao portão: “Lá vem Boca da Noite tomar sopa!”. E ele pegou o apelido, desde sempre. Mas, de tanta vergonha, nunca mais foi degustar o caldo, às vezes de carne outras vezes de frango, de legumes ou de massa.



Depois falou do tempo em que os doutorandos de medicina se apresentavam ao Exército, nas proximidades da formatura. Comigo foi assim e até pouco tempo ainda era desse jeito, pois que deixaram de receber esses estudantes no CPOR. Quando se apresentavam, então, recrutavam os que precisavam nos quadros militares. Pois eu fui numa remessa dessa e o meu amigo de todo o curso, Jia por apelido, foi chamado antes de mim para o exame médico, ao que expressei a minha admiração: “Tás lascado!”. O sargento ouviu, porque sargento ouve tudo, o que se diz e até o que não se diz, virou-se e indagou: “Quem falou?”. Não havia outro jeito, senão me acusar. Ouvi a sentença ali mesmo: “Venha buscar o seu certificado! Você não serve para o Exército!”. Eu já sabia disso, mas tinha guardado segredo até aquele dia. A verdade é que o Jia foi aproveitado e designado para a Marinha, de onde saiu com patente alta, aquela do mar e da guerra. Pois o velho amigo recebeu a farda e a espada, comprou o quepe e ajustou os sapatos pretos. Foi ver a namorada! Ou foi desfilar garboso para a moça casadoira. Ora, o Boca da Noite não hesitou e chamando um menino do lugar, fez as recomendações da pilheriada que gostaria de fazer. Foi o Jia sair da casa de sua noiva e o menino se achegar, dizendo: “Já vai dançar fandango. Não é?”. Não apanhou porque uma autoridade tão recente na força, não ia se trocar com um bestalhão do meio da rua. Mas, deu vontade!

Pior que aquela apresentação no Exército foi aquela de outro colega meu de turma, oftalmologista depois, que recebido pelo mesmo militar com as divisas de sargento, ouviu a indagação fatal: “Leia aquelas letras ali!”. Ao que respondeu: “Ali? Onde?”. Na tabuleta complementou o militar, ouvindo do meu companheiro a nova resposta: “Em que tabuleta?”. Na parede, aduziu o sargento encarregado. E o estudante, sem se fazer de rogado: “Nem a parede eu enxergo!”. Foi dispensado, porque o homem das fitas presas no braço não tinha paciência para tanta graça e tanto descaso. Era desse jeito mesmo! Parecido também com isso foi quando me apresentei pela vez primeira, depois de uma noite inteirinha acordado, para chegar ao quartel o mais debilitado possível, o médico me pesou de frente, como seria o esperado e o habitual, depois, me gozando, disse: “Pesa ele de costas para ver se aumenta os quilos?”. O soldado pesou, mas, claro, nada conseguiu a mais. O pior é que estávamos em forma, esperando os resultados, quando passa um recruta varrendo o chão e um engraçado na fila grita: “Varre! Galinha verde!”. Fomos todos presos ou detidos, recostados na parede, de costas. Eu fiquei tão nervoso, porque o tempo passava e não me liberavam, que chorei: “Deixa eu ir embora! Minha mãe está me esperando!”. Depois de muito tempo, vieram e liberaram a molecada.

A mais engraçada, porém, do nosso Boca da Noite, foi com o Dom Libório, o mesmo do Fagundes, aquele amigo que roubava o carrão do sacerdote e se danava para a rua do pecado, como dizia. É que o padre residia no mesmo logradouro do nosso narrador de ocasião, razão para uma vez ou outra merecer dos meninos o que se chamaria hoje de algumas pegadinhas. Uma forma de descontar a raiva do cura com a bola sendo jogada, por vezes, sem querer, na propriedade do sacerdote e a retenção da pelota. Pois não é que chegou um homem com um macaquinho, um macaco-prego desses que no outrora dos tempos escandalizava a mulherada. E o danado do bicho se chamava Libório. Caiu a sopa no mel para os meninos daquela rua. Pagaram o homem que mantinha o símio sob sua guarda, amarrado na corrente e mandaram que fosse fazer piruetas diante da casa do monsenhor. E o homem dizia: “Libório vai saltar de lado! Libório vai comer bolachas! Libório passa a cestinha e arrecada moedas!”. Até que chegou a hora fatal e o dono do bicho sentenciou: “Libório cumprimenta o seu xará e o cebídeo estirou a mãozinha para o cura.” O mundo quase vem abaixo, porque o monsenhor disse horrores ao dono do primata malabarista e ainda saiu de casa para dar, de cacete na mão, em todos os penitentes do meio da rua. Foi um corre-corre do cão!

Aqui pra nós: O padre parecia um macaco!

(*) - O texto lembra passagens pitorescas dos tempos de Boca da Noite e dos meus tempos também; tempos que foram, igualmente, do padre Libório, sacerdote brabo, sem paciência com as coisas do mundo e sem calma com o lúdico que presidia aquela rua de tantas lembranças. Comente neste espaço mesmo ou o faça pra pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com