quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Um Menino Peralta

Eu era um menino danado, endiabrado, levado da breca, como se dizia. Muito preso, também, em respeito às regras parentais, severas sempre, com os hábitos e os costumes. Não podia freqüentar o bate-bola da noite e ficava ouvindo da sala de casa a turma jogando diante do portão. Por isso, por esse quase cativeiro, eu fugia, vez ou outra. Aproveitava o portão aberto, sem o cadeado e saia de porta afora, como um enlouquecido, doido pela liberdade dos meninos da vizinhança, vistos pela família com certa reserva. A minha avó paterna, que tinha por mim uma verdadeira adoração, os tratava como “moleques de rua”. E quando eu arranjei a minha primeira namorada – tinha 14 anos de idade apenas – ela não dispensou o trato e disse em pleno almoço: “Geraldo está namorando com uma moleca que pinta os olhos!”. Ela – coitada! – era das primeiras moças no Recife a usar um risco delineando as pálpebras. Que coisa!
O meu pai tinha comigo um cuidado especial e posso imaginar a sua inquietação diante das minhas súbitas e inesperadas escapadelas. Como era um menino levado e brigão, e arranjava encrenca a toda hora com os irmãos, consideraram importante uma consulta ao psiquiatra e assim o fizeram. Levaram-me a um conceituado profissional, que fez uma hipótese diagnóstica absolutamente inusitada: Sífilis Hereditária. Ora, isso seria impossível! Ou estaríamos diante de pais doentes e irresponsáveis, porque dados a incursões adulterinas, coisa que não podia, sequer, pensar de meu pai e estaria fora de qualquer cogitação em minha mãe. O meu pai, como lhe dizia às vezes, brincando, era quase um cardeal romano, tal a fé com que se comportava e tal o rigor com que seguia os mandamentos. Eu é que era estabanado, desses que subia nos muros vizinhos, atirava pedras nas mangas e prendia a passarada em arapucas de caixote.
Mas, o médico pediu lá uns exames, dentre os quais o do líquido cerebro-espinhal, quando, então, fui vítima de uma agulha enorme que me entrou pelas brechas da coluna vertebral. Claro que não era esse o diagnóstico e claro que eu nada tinha de anormal, senão a grande contenção a que me submetiam, com a intenção naturalmente boa e em bom propósito, para que pudesse forjar uma personalidade ou um caráter da mais alta significação e representação na chamada constelação parental. E vai de lá, vem de cá, terminaram me levando à consideração da Dona Dulce Chacon, mulher além de seu próprio tempo, considerada psicóloga, antes dos cursos de graduação. E a ilustre professora, Diretora do Grupo Escolar Frei Caneca, fez as recomendações necessárias por escrito: era preciso soltar o menino e aumentar-lhe a mesada. Feito isso, curei! Não sei se valeu a pena curar!
Antes desse desfecho, porém, o meu pai, católico fervoroso, já comentei, achou que sendo ele um estudioso da vida de D. Frei Maria Vital, Bispo de Olinda, que não simpatizando com a causa maçônica, seguidor que era da Cátedra de Pedro, terminou preso, decidiu-se – o meu pai – por me levar ao túmulo do prelado. Ele era um homem horroroso e eu tinha medo daquela barba enorme. Mas, eu não tinha saída, deveria mesmo comparecer à Basílica da Penha e ajoelhado junto ao lugar em que estava o homem, rezar assim: “Dom Vital! Fazei que eu melhore, porque o meu pai não agüenta mais!”. Embora não entendesse bem o que eu tinha e como poderia melhorar, compreendia que a situação era grave e só um milagre me salvaria. Não houve jeito e como também não havia solução a partir de certas ameaças, muito comuns à época, de internação da Escola de Aprendizes Marinheiro, foi decidido que eu deveria comparecer à Matriz de Nossa Senhora da Conceição, no Ceará – Mirim, terra natal de meu pai.
Fiz a viagem até Natal e de lá, da capital do Rio Grande do Norte, à cidade em que nascera o meu pai, origem da família Pereira, à qual pertenço com justo orgulho. Vi cada um daqueles recantos ou daqueles cantos e subi os degraus da Matriz. Ouvi as orientações paternas e me dirigi às proximidades da imagem, ajoelhei e repeti mais ou menos a oração anterior: “Nossa Senhora! Fazei que eu melhore, porque o meu pai já não agüenta mais.”. Pronto, disse a ele, e ai soube da crença dos cristãos ou dos católicos, propriamente, de que numa igreja nova está facultado ao penitente o pedido de três graças. Mas: “Peça somente uma, meu filho!”. Foi a recomendação paterna, para reforçar a possibilidade de um atendimento celeste à causa pela qual tanto nos batíamos.
Também de nada serviram essas preces e só o tempo me fez mudar, não sem antes testemunhar a grande preocupação que nutria por mim o meu pai. Certa vez, estando eu, quase diria, escondido, ouvi papai dizendo a uma irmã, minha tia, que morava conosco: “Não faço muita fé no mais velho!” E ela, acreditando em mim, respondeu: “De onde não se espera é que se tem! Ele é apenas um menino peralta!” E é verdade, talvez eu tenha sido, de certa forma, um pouco o seguidor dele. Do homem íntegro e do professor, quiçá do escritor, a meu modo, sempre. Do administrador também, pois que fora, por dois mandatos seguidos, Diretor da Faculdade de Filosofia. Mas, não aceitou o lugar de Reitor e assim não pôde chegar às culminâncias acadêmicas, cujas injunções nunca compensam. Dizia que o poder seduz, melhor não experimentar. E não experimentou!

(*) A crônica é inédita e vai integrar um volume que devo publicar com o título: Histórias Pitorescas de um Reitor e o Pitoresco de Outras Histórias. Devo contar o que passei de original e cômico – às vezes trágico – em alguns dos cargos que exerci na Universidade. Mas, também, todas as histórias que tenho. Muitas histórias já! Ao leitor deixo a possibilidade de comentar o texto, como forma de opinar em relação ao livro e seu título ou em relação ao texto. Comente para pereira.gj@gmail.com ou pereira@elogica.com.br ou ainda não comente e não se pronuncie, nada expresse e nada exprima.