quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Um Menino Peralta

Eu era um menino danado, endiabrado, levado da breca, como se dizia. Tão travesso, que abri a porta de um avião voltando de Pesqueira. Um horror! Muito preso, também, em respeito às regras parentais, severas sempre, com os hábitos e os costumes. Não podia freqüentar o bate-bola da noite e ficava ouvindo da sala de casa a turma jogando diante do portão. Por isso, por esse quase cativeiro, eu fugia, vez ou outra. Aproveitava o portão aberto, sem o cadeado e saia de porta afora, como um enlouquecido, doido pela liberdade dos meninos da vizinhança, vistos pela família com certa reserva. A minha avó paterna, que tinha por mim uma verdadeira adoração, os tratava como “moleques de rua”. E quando eu arranjei a minha primeira namorada – tinha 14 anos de idade apenas – ela não dispensou o trato e disse em pleno almoço: “Geraldo está namorando com uma moleca que pinta os olhos!”. Ela – coitada! – era das primeiras moças no Recife a usar um risco delineando as pálpebras. Que coisa!
O meu pai tinha comigo um cuidado especial e posso imaginar a sua inquietação diante das minhas súbitas e inesperadas escapadelas. Como era um menino levado e brigão, e arranjava encrenca a toda hora com os irmãos, consideraram importante uma consulta ao psiquiatra e assim o fizeram. Levaram-me a um conceituado profissional, que fez uma hipótese diagnóstica absolutamente inusitada: Sífilis Hereditária. Ora, isso seria impossível! Ou estaríamos diante de pais doentes e irresponsáveis, porque dados a incursões adulterinas, coisa que não podia, sequer, pensar de meu pai e estaria fora de qualquer cogitação em minha mãe. O meu pai, como lhe dizia às vezes, brincando, era quase um cardeal romano, tal a fé com que se comportava e tal o rigor com que seguia os mandamentos. Eu é que era estabanado, desses que subia nos muros vizinhos, atirava pedras nas mangas e prendia a passarada em arapucas de caixote.
Mas, o médico pediu lá uns exames, dentre os quais o do líquido cerebro-espinhal, quando, então, fui vítima de uma agulha enorme que me entrou pelas brechas da coluna vertebral. Claro que não era esse o diagnóstico e claro que eu nada tinha de anormal, senão a grande contenção a que me submetiam, com a intenção naturalmente boa e em bom propósito, para que pudesse forjar uma personalidade ou um caráter da mais alta significação e representação na chamada constelação parental. E vai de lá, vem de cá, terminaram me levando à consideração da Dona Dulce Chacon, mulher além de seu próprio tempo, considerada psicóloga, antes dos cursos de graduação. E a ilustre professora, Diretora do Grupo Escolar Frei Caneca, fez as recomendações necessárias por escrito: era preciso soltar o menino e aumentar-lhe a mesada. Feito isso, curei! Não sei se valeu a pena curar!
Antes desse desfecho, porém, o meu pai, católico fervoroso, como já comentei, achou que sendo ele um estudioso da vida de D. Frei Maria Vital, Bispo de Olinda, que não simpatizando com a causa maçônica, seguidor que era da Cátedra de Pedro, terminou preso, decidiu-se – o meu pai – por me levar ao túmulo do prelado. Ele era um homem horroroso e eu tinha medo daquela barba enorme. Mas, eu não tinha saída, deveria mesmo comparecer à Basílica da Penha e ajoelhado junto ao lugar em que estava o homem, rezar assim: “Dom Vital! Fazei que eu melhore, porque o meu pai não agüenta mais!”. Embora não entendesse bem o que eu tinha e como poderia melhorar, compreendia que a situação era grave e só um milagre me salvaria.
Não houve jeito e como também não havia solução a partir de certas ameaças, muito comuns à época, de internação da Escola de Aprendizes Marinheiro, foi decidido que eu deveria comparecer à Matriz de Nossa Senhora da Conceição, no Ceará – Mirim, terra natal de meu pai. Fiz a viagem até Natal e de lá, da capital do Rio Grande do Norte, à cidade em que nascera o meu pai, origem da família Pereira, à qual pertenço com justo orgulho. Vi cada um daqueles recantos ou daqueles cantos e subi os degraus da Matriz. Ouvi as orientações paternas e me dirigi às proximidades da imagem, ajoelhei e repeti mais ou menos a oração anterior: “Nossa Senhora! Fazei que eu melhore, porque o meu pai já não agüenta mais.”. Pronto, disse a ele, e ai soube da crença dos cristãos ou dos católicos, propriamente, de que numa igreja nova está facultado ao penitente o pedido de três graças. Mas: “Peça somente uma, meu filho!”. Foi a recomendação paterna, para reforçar a possibilidade de um atendimento celeste à causa pela qual tanto nos batíamos.
Também de nada serviram essas preces e só o tempo me fez mudar, não sem antes testemunhar a grande preocupação que nutria por mim o meu pai. Certa vez, estando eu, quase diria, escondido, ouvi papai dizendo a uma irmã, minha tia, que morava conosco: “Não faço muita fé no mais velho!” E ela, acreditando em mim, respondeu: “De onde não se espera é que se tem! Ele é apenas um menino peralta!” E é verdade, talvez eu tenha sido, de certa forma, um pouco o seguidor dele. Do homem íntegro e do professor, quiçá do escritor, a meu modo, sempre. Do administrador também, pois que fora, por dois mandatos seguidos, Diretor da Faculdade de Filosofia. Mas, não aceitou o lugar de Reitor e assim não pôde chegar às culminâncias acadêmicas, cujas injunções nunca compensam. Dizia que o poder seduz, melhor não experimentar. E não experimentou!

(*) A crônica é inédita e vai integrar um volume que devo publicar com o título: Histórias Pitorescas de um Reitor e o Pitoresco de Outras Histórias. Devo contar o que passei de original e cômico – às vezes trágico – em alguns dos cargos que exerci na Universidade. Mas, também, todas as histórias que tenho. Muitas histórias já! Ao leitor deixo a possibilidade de comentar o texto, como forma de opinar em relação ao livro e seu título ou em relação ao texto. Comente para pereira.gj@gmail.com ou pereira@elogica.com.br ou ainda não comente e não se pronuncie, nada expresse e nada exprima.