sábado, 26 de outubro de 2013

A lição da águia

Foi Luciene, a assessora para assuntos domésticos, quem disse: "A casa está oca!". Realmente, o lar da família Gama Pereira amanheceu diferente. O seu quarto, aberto e desorganizado, não corresponde à sua forma de ser, de extrema ordem, como é. Mas, é isso mesmo, a vida é assim, tanto entre os homens de boa vontade, quanto entre os bichos, sobretudo os pássaros, dos quais tanto gosto. O filho nasce, cresce e se liberta das amarras paternas e maternas. E vai à luta sozinho!
Você foi à luta, com um companheiro, que nos parece tão cioso das coisas quanto você. Homem zeloso e cuidadoso. Deus os fará felizes para sempre! Como somos nós, os seus pais, juntos numa batalha diuturna, a qual reúne hoje, além das filhas e dos genros, umas criaturinhas que chegaram para a continuidade do clã: os netos. Vivemos lutando juntos, adotando a mesma bandeira e invocando os mesmos princípios.
Esse tempo de agora é interessante. Fazemos as coisas com um simbolismo que só entendemos com o passar dos dias. Não foi sem razão que comprei novas alianças, que as mandei abençoar naquela Missa, na Matriz da Piedade. Eu estava querendo reacender a chama de meu casamento e o fiz. Confesso que estou me sentindo muito diferente, muito voltado para as coisas do espírito, deixando-me encantar pelas músicas que ouço e pelos poemas que leio.  Tenho grande satisfação com as viagens que faço. Interessante isso! Sou feliz!
Você há de ser feliz, também, em seu lar, com suas coisas bem arrumadas e os seus livros bem dispostos, a postos, para lhe atenderem quando precisar de seus serviços. O seu apartamento está lindo, porque foi preparado com amor, está confortável, porque aproveitou-se do tempero da felicidade para ser organizado e fez da alegria de viver o açúcar que adoça do exercício do existir terreno.
A águia faz da mesma forma, sai do ninho com os filhotes e os joga do penhasco, para que saiam voando e possam assim exercer um novo mister. Ficam olhando (os pais) apreensivos, com receio de que não ganhem os ares do mundo e não possam forjar um novo ninho e criar mais uma prole. Nós também prestamos bem atenção a você, mas vimos que a sua experiência lhe autoriza a sobreviver só.
Os girassóis de seu presente me fizeram lembrar de Van Gogh e com isso ter a mais absoluta certeza de que a educação de seus dias de menina lhe serviram para aguçar a sensibilidade.
 
Obrigado! Sejam felizes!
 
 
 
(*) - Depois que a filha mais nova casou, escrevi essas palavras que são, ao mesmo tempo, de saudades e de alegria, por vê-la assim, assumindo uma vida nova.
 
 
 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Peripécias de um médico

Trabalhei como médico em certo sindicato, que reunia empregados de uma categoria qualquer. Não cabe aqui dizer ou esclarecer melhor, para que se preserve a identidade de todos. No começo era uma atividade relativamente boa, porque bem paga, inicialmente, juntava colegas do melhor nível, tanto cientifico quanto social. Sendo assim, praticava-se ali uma medicina de gabarito, tanto é que cheguei a publicar um trabalho mostrando que a resolubilidade era a melhor possível, isto é, os casos eram, em maioria, resolvidos ali mesmo. Dispensavam, então, encaminhamentos!
Mas, o Presidente era uma peça que não merecia consideração, senão aquela que o poder impõe. Vivia tentando seduzir as atendentes e vez ou outra uma delas caia nas garras dele. Mesmo assim, conseguiu deixar umas passagens ótimas em sua gestão, sobretudo em relação aos médicos, com os quais não tinha relações muito amigáveis. Certa vez, sendo eu Diretor do Departamento Médico, fui chamado à Presidência e informado que um colega ortopedista seria demitido, porque usava a camisa aberta e um colar pendente do pescoço. Foi assim:
- Dr. Geraldo! Não aguento mais encontrar o Dr. Antônio no corredor dos médicos, de camisa aberta e com um colar no pescoço. Vou demiti-lo!
- Veja Sr. Solidônio, acho que pode demiti-lo! Mas o senhor vai me ajudar a tirar também o Governador do Estado, porque ele anda do mesmo jeito.
 
E ele calou-se para todo e sempre, pois era um dos maiores bajuladores que o Recife já viu. Pior quando passou e ouviu o barulho das peças de dominó, fruto dos médicos jogando, enquanto mais um cliente chegava. Reclamou o quanto pôde e eu:
- Entenda, Sr. Solidônio, o ruído, com o qual se incomodou tanto, foi justamente para sufocar a discussão que se passava em torno de um caso de perversão sexual.
Isso era uma beleza pra ele. Achava que podia tomar parte num debate desse, apenas imaginário, porque era ele próprio um pervertido. Fez as indagações todas que desejava e eu justificando, respondia que estava preso ao segredo ético.
Mas em outra ocasião, depois de uma eleição, um novo Governador deveria assumir. Coincidentemente, correu um boato forte de que eu seria demitido. Foi fácil tirar isso de circulação. Combinei com um colega, que quando entrasse no elevador me perguntasse se era verdade que seria Secretário de Saúde. Isso foi feito, na presença do besta do Solidônio e de pronto ele me deu os parabéns e passou a me tratar com as honras devidas. Ora, mas o tempo passou e foi nomeado outro médico. Claro, sequer cogitou-se de meu nome. E ele:
- Dr Geraldo! Eu estranhei muito o seu nome não constar na relação do secretariado.
- É, seu Solidônio, terminei sem aceitar o encargo, mas vou ficar na retaguarda orientando o novo Secretário.
Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma de pato, senhor rei mando dizer que contasse mais quatro. E eu conto depois!
 
 
(*) Uma crônica que recorda o meu tempo de clínico geral em sindicato do Recife. O leitor que desejar comente no espaço mesmo do Blog ou o faça escrevendo para o e-mail: pereira.gj@gmail.com

terça-feira, 8 de outubro de 2013

As fruteiras do terreiro

                               
Sou nascido e criado em sobrado antigo, de estilo cubóide, desses que têm dois alpendres e mais uma varanda, uma sala de visitas e outra de jantar, uma saleta para as refeições e a cozinha do tamanho de alguns dos apartamentos que vi em Paris. Os quartos eram projetados, por certo, para que a família tivesse a prole que desejasse, tal a largueza e o banheiro, nem se fala, com a água quente na banheira permitia o relax de qualquer penitente enfastiado com as coisas da vida. Mas, o melhor de tudo, mesmo, era o quintal! Ali passei as melhores horas de minha infância e os mais interessantes momentos da adolescência. Subi e desci os muros todos da vizinhança, roubei mangas na casa da direita e armei o alçapão de rede para os canários que vicejavam na moradia da esquerda. Fiz da pinheira o meu refúgio, tantas vezes, começando as minhas reflexões juvenis e de uma grande fruteira a medida dos meus desejos, de crescer e de me desenvolver, buscando com uma vara de espanador, na copa distante, a graviola quase impossível, chamada por minha mãe de coração-da-índia. Ali, também, vivi as inquietudes da puberdade, amei e fui amado, nessas iniciações do existir terreno.

Num canto de terra negra, rica em nutrientes orgânicos, uma touceira de bananeiras fornecia, de tempos em tempos, a banana-maçã de sabor inigualável, disputada pela meninada e apreciada pelos adultos pidões. O mangará ia se desfazendo aos poucos, perdendo as cascas e expondo os brotos da fruta, mas eu ajudei, muitas vezes, o evoluir desse processo, antecipando maturidades que nunca chegavam, destruindo, pois, uma palma a mais da roliça fruteira. Foi naquelas proximidades que levantei a minha cabana de madeira, construída com o que sobrara de uma estante, condenada pela desgraçada da polia! De um único vão, não resistiu à intempérie do inverno e ruiu por terra, destruindo sonhos e carregando devaneios. Ali, também, naquelas proximidades da antiga touceira, cavei um buraco grande, que me levaria ao Japão, imaginava, numa fuga qualquer, que precisasse, corrido de mãe e pai, depois das travessuras e das estrepolias de meu dia a dia buliçoso! Do cajueiro e do coqueiro, plantados com as minhas mãos, não só da água me servi, mas da tenra polpa igualmente, saborosas, ambas, a água e a polpa. Caju, todavia, nunca vi nascer e das razões ignoro o mérito! Ainda está por lá o velho coqueiro! Cresceu mais do que eu, como cabe acontecer!


Do galinheiro, também, cuidava, selecionando as melhores penosas e as nomeando reprodutoras do conjunto, promovendo os casamentos com o galo comprado na feira de Santo Amaro. Mas, vez ou outra, decretava-se o abate de uma dessas, da galinha gorda do terreiro, para a mesa do domingo e não havia pedido de clemência que impedisse a ação de uma faca para tanto destinada, que nas mãos da cozinheira degolava a matriz da criação, desfalcada depois. Se o choco chegasse, era deitar os ovos e esperar o tempo regulamentar, pra ver a ninhada piando e seguindo a mãe, mais do que braba, no seu mister de proteger a prole. O risco era o de acontecer o que comigo sucedeu, pegar pixilinga (ou pichilinga?) e sair me coçando feito um louco, aguentando os carões maternos e as desconfianças de minha avó, amedrontada, com receio de contrair, da mesma forma, o diabo do piolho da galinha - Valha-me Deus!. Os mamoeiros dessa avó, plantados com o cuidado obsequioso das amas, como chamava as empregadas, maltratados pela bola de couro do futebol doméstico, feneciam e se os emendava com fita incolor, era pra evitar o mal maior, a queixa apresentada ao pai na hora da janta. Coitada! Não enxergava bem e não via o curativo mal feito, sempre!
Foi por esses meus amores da infância ou por esses meus ardores da adolescência que gostei tanto das crônicas de Osvaldo Martins de Souza, evocando as fruteiras do Espinheiro. Faz bem o cura da Matriz, inserindo no informativo essa liturgia das flores e dos frutos, ritual das árvores e dos homens, num resgate dos enlevos d'alma. Nem só de pão vive o homem, está escrito, mas é desse pão do espírito que vivem os grandes, suficientemente capazes de expressarem os afetos pelo, inteiramente, vegetal. E dos pássaros, também, gosta o escritor, cuidando em alimentar na varanda de casa o beija-flor silente e o sebito de poucas notas. Gosto de tudo isso! Das flores e dos frutos, dos pássaros cantores e daqueles de penas coloridas, mesmo que do canto não possa ensaiar os acordes.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

O pavão dourado

Quando o sol vai raiando no horizonte, em dias assim, de nuvens nos céus e chuva no chão, por aqui já me alevanto e sendo um domingo, como hoje, depois da leitura dos jornais, tenho tempo para os meus sonhos. Vejo no monitor a pureza virginal do editor de textos e enxergo n’alma os meus sentimentos e as minhas saudades. Descortino os anos e as décadas que se foram, encantados nas brumas das lembranças e vou preenchendo este vazio com vocábulos e frases que se juntam e se abraçam quase, para exprimir de meu imaginário os devaneios. 

Os velhos de minha infância morreram todos, carregaram com eles os afetos com que me tratavam e não deixaram o derradeiro afago. A minha avó paterna, Beatriz de prenome, gorda e matrona, escondia as peraltices com que preenchia o meu tempo de menino. A tia velha, Deolinda, nascida na noite de Natal, zangava-se quando se dizia que tinha a idade de Cristo. E a tia mais nova, viúva e mártir das imolações de um filho deficiente, não concordava com os meus amores domésticos, incertos e fortuitos, mas nunca denunciou as cenas que testemunhara. 
 
E o meu pai, que me viu nascer e crescer, que assistiu o meu desenvolvimento pessoal, também se encantou, foi morar nos confins eternos. Quase posso dizer que se despediu de mim, naquela noite derradeira de tanta insônia e tão sem graça mais. Tinha o que me dizer, ainda, mas deixou para um vespertino encontro, de cuja impossibilidade não foi culpado, entregou-se antes. Nada posso imaginar das suas intenções no aprazado diálogo pra logo mais, à tarde, senão algum comentário sobre as minhas crônicas no JC, como costumava fazer. Quem sabe?
 
E a minha mãe, que viveu 22 anos mais que meu pai, descansa agora numa campa do Cemitério de Santo Amaro. Naquele mesmo bairro, tantas vezes, esteve comigo numa feira que ainda hoje acontece na chamada rua da Feira. Era ali que comprava os gêneros alimentícios para a casa e me deixava sonhar com carrinhos de madeira que os artesãos faziam e vendiam por lá mesmo. Tantas e tantas vezes esteve comigo naquele cemitério, acompanhando o sepultamento de outros. De parentes e de amigos. Encantou-se e certamente desfruta das benesses que asseguram os padres. Não deve ter esquecido a expressão de seu uso comum: "Sem novidades!". Era o que dizia! Ainda tenho o impulso de ligar pra ela.
 
O meu avô, com o seu cabelo cor de prata, levava açúcar-cande nas manhãs de domingo, prometia o pavão dourado a quem raspasse o prato, mas nunca trouxe essa ave imaginária. E a minha outra avó, Laurinda, como se chamava, não teve mais tempo de me oferecer um retrato de meu bisavô, de quem tenho a sobrancelha, dizia. Agora, o denso traço negro de minha fronte esvaneceu, perdeu a cor e o viço, nada mais representa de genético ou de hereditário. Os meus tios e as minhas tias se despediram da vida, em maioria e estão nas distâncias infinitas, na outra dimensão, então. 


Vicente Celestino cantando "O ébrio"
E os mais simples convivas, aqueles das ruas e dos becos, dos labirintos da vila da tecelagem, em cujas ruelas experimentei o lúdico desse exercício do existir? Penso que se foram, em grande parte, viajaram, definitivamente, para as moradas eternas! Onde estará o cantor das calçadas de meu bairro, Sabará por apelido, que entoava em voz sonante: “Tornei-me um ébrio/E na bebida busco encontrar/Aquela ingrata...”? Seria essa a razão de suas incursões etílicas? A perda de um amor! Chorava assim a ingratidão que sofrera? Talvez sim ou talvez não!
 
O seu Pedro da banana cortou uma perna, do homem que vendia laranjas num saco de açúcar, bisbilhotando o generoso decote da tia, para ciúmes do sobrinho, não tenho notícias, tampouco do mascate, com a sua carroça de um azul desbotado, preenchida por gavetas, nas quais trazia a linha de cozer e o novelo do croché de minha avó. Do homem da galinha, a cavalo, com dois caçoas repletos dessas penosas sabáticas, sequer imagino o destino. E o vendedor de amendoim, com a farinha saborosa embalada em cônico invólucro de papel de embrulho? Não sei! Essa gente fez parte de minha vida e desapareceu por encanto!

 
Nilo Pereira entre os dois galgos na casa-
grande da usina São Francisco.
Desapareceram, da mesma forma, as pessoas com as quais convivi em criança, os amigos de meu pai. Todos ou quase todos! Sylvio Rabelo e seu irmão, Dácio de prenome, Mário Melo e Gilberto Osório, o mestre Ascenso Ferreira, um grandalhão, com um chapéu de abas largas e um vozeirão de arrepiar, com medo das caiporas: “...Ali mora o pai da mata/Ali é a casa das caiporas...”. O padre Sales, camareiro papal, celebrante agoniado de quinze minutos, somente, sentado no alpendre de casa a discutir e debater o embate eleitoral na faculdade, tornando-se diretor por dois mandatos, orgulhoso do cargo de Deão.
 
Mudaram os atores e trocaram os cenários!

(*) - Hoje é o dia consagrado a São Francisco, o padroeiro dos animais e o pai dos pobres. Por tudo isso é dia também dos bichos e da ecologia, além de ser o meu aniversário. Sendo assim, dedico esta crônica ao santo e a todos que têm trabalhado em prol do meio ambiente. É um texto da saudade dos que eram velhos nos meus anos de menino e morreram, mas não saíram de meu pensar. O leitor que desejar comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira.gj@gmail.com