quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Uma Sociologia de Bairro

Com atenciosa e até afetuosa dedicatória, recebi de Evaldo Donato e Paulo Caldas um livro escrito a quatro mãos: No Tempo do Nosso Tempo - Uma Volta aos Anos 60. São crônicas que retratam a juventude de Água Fria, na sexta década do século XX, abordando a intensa convivência ali, em subúrbio distante, ainda, naqueles anos das grandes revoluções dos costumes e dos hábitos, das mudanças, enfim, a transformarem e a transtornarem, até, o povo pacato do Recife e do mundo inteiro.
 
A leitura dessas evocações, de jovens que viveram, intensamente, o tempo de ouro da existência humana mostra, claramente, o quanto houve de marcante em interregno tão pequeno de tempo! Capítulos de uma sociologia do arrabalde, tomado pelas modificações trazidas no pós-guerra e influenciadas pelos movimentos contemporâneos que fizeram o mundo mudar sob todas as óticas, derrubando tabus e quebrando regras, flexibilizando,então, o comportamento. Há reminiscências, como expressa a dedicatória, que ultrapassam o simplesmente individual, para assumirem papel diferente, o das lembranças de uma coletividade; de uma geração toda.
Foi assim que me lembrei dos automóveis que circulavam na cidade, do antigo Nash e da Rural, como do velho Jeep e do Gordini ou do Sinca Jangada, encantando a gente nova com a modernidade das linhas! E o Candango, rústico e grotesco! Mas, lembrei, sobretudo, dos jornais de bairro ou de rua, que circulavam mimeografados, manifestando, já, algumas vocações que se tornariam depois, senão jornalistas do batente, escritores bissextos ou cronistas, a ensaiarem com o cotidiano da vida, a voz do espírito, que não cala, quando a saudade emerge! Foi dessa forma que comecei a escrever, uma singela publicação de meu lugar, usando pseudônimo diferente, o meu sobrenome ao contrário: "Arierepe". Nem sei mais do nome daquele conjunto de páginas que circulavam a intervalos incertos e muito menos dos meus escritos! O que diziam ou o que expressavam!
Há detalhes, todavia, mais que interessantes, como aquele do Livro de Ouro", que circulava, de mão em mão, buscando assinaturas dos remediados da rua , para angariar fundos e financiar o time de futebol. Ou da rifa, que tinha papel assemelhado e permitia aplicar os recursos na chuteira e no padrão de camisas, na bola de couro nova e nos unguentos, que bem massageados traziam de volta a força do chute a gol ou a defesa bem feita do goleiro dantes machucado. Ou serviam para custear o pavilhão do clube, bordado e rebordado por costureira de nome! E as turmas se organizavam assim, em jogos de todo tipo, incluindo, como está no livro, as partidas de botão, disputadíssimas, reunindo a muitos em torno de um campo bem encerado. Peças fabricadas, algumas, na Casa de Detenção ou forjadas no torno, diretamente, pras bandas de Paulista, quando ficavam mais apropriadas ao drible e à finalização da jogada ou os botões de capa, vendidos no centro urbano, submetidos a uma operação que os tornasse mais presos à madeira e assim pudessem mandar ao filó a bolinha de cordão bem enrolada.
 
E as festas de todos os tipos? O Carnaval e o São João, o Natal e o Ano Novo! Ou os assustados, que marcados com a antecedência necessária, juntavam meninos e meninas, rapazes e moças, proporcionando os encontros e assinalando começos. Dessa maneira me iniciei por cá, com a musa dos meus dias de hoje, em aniversário de casa, com a mesa decorada pelo bolo confeitado e as garrafas de guaraná Fratelli Vita dando um toque regional ao inteiramente universal, a aproximação das criaturas. Beijos que foram roubados num rodopio qualquer na sala de visitas, de jantar também, pactos selados há mais de trinta anos pra trás, que resistiram ao tempo e vão marcando a sucessão da existência, na vida de mais três, que estão virando seis. Três filhas: Fabiana, Patrícia e Carol! E ninguém pode reclamar da falta de histórias, nesse recesso que é o meu lar.
Muito grato aos autores.

(*) Um texto antigo, incluído em livro a ser lançado muito, brevemente, no dia 11 de setembro, na Academia Pernambucana de Letras, reunindo crônicas que foram guardadas por anos a fio por minha mãe. Trata-se de um artigo criado depois que os autores me enviaram um exemplar. Lembranças de velhos costumes e de antigos objetos, a exemplo dos botões de mesa, alguns de chifre, torneados ou não, e outros de capa.