terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Preço da Honra

O Nordeste é uma Região de muitas histórias, de lendas cujas narrativas passam de geração a geração, nas palavras carinhosas das avós ou no frasear lúdico das tias velhas, condenadas ao caritó, quase sempre, no outrora dos anos. Gente do cabelo branquinho, como a neve que recobre a imensidão das montanhas de onde vieram muitas dessas fábulas. A Comadre Florzinha, a Caipora ou o Curupira foram cantados e decantados por Ascenço Ferreira, em versos que resgatam a pureza do popular; de um popular, nem sempre rural, porque urbanizado, também ou rurbanizado. Histórias e estórias que preenchem o imaginário da gente matuta e da gente sertaneja, cujo tempo, tantas vezes, é consumido em conversas fiadas em fim de tarde nos alpendres modestos de simplórias moradias ou nas amplas varandas das casas grandes. Essa arte de fiar conversa ainda persiste nos interiores do Brasil.
É uma história assim que ouvi de quem nasceu e se criou na Paraíba, de nome Margarida Hercílio, lugar como muitos outros deste Nordeste de Deus, sofrido e ao mesmo tempo resignado, cheio de crenças e repleto de assombrações, onde o povo, à falta do que fazer ou em que se ocupar, levanta essas questões ligadas às almas penadas ou aos espíritos zombeteiros. Povo de muita fé, de esperança ainda maior, carregado de amor, de zelo, de piedade e devoção. O caso se passou pras bandas do Sítio Pedra Branca, onde dois grandes amigos tinham se juntado numa sociedade informal para fabricar sapatos e seguiam muitíssimo bem no mister de oferecer ao couro a desejada forma de um calçado, que desse conforto e permitisse o andar ou o passear pelas picadas e pelos atalhos abertos no meio do mato.
Um dos amigos era encarregado de comprar o couro a muitas léguas de distância, e fazia o caminho todas as semanas, em dia e hora acertados antes com o fornecedor, contanto que não falhasse o esforço e a missão. O material já vinha curtido, pronto para a manufatura. Mas no caminho o viajante nunca deixou de flertar com a morena bonita e faceira que morava perto do ingazeiro. Os olhares se cruzavam quando o galope do alazão dava sinais de proximidade daquele passante habitual, semanal sempre. Até que se achegaram e se enamoraram, para depois noivarem. E conversa vai, conversa vem, Mariazinha foi desonrada por Miguel de Santana. E na roça, ainda hoje, prevalecem os costumes da virgindade preservada e da honra sustentada a todo custo. A gravidez despontou e o casal jurava fidelidade eterna.
A fabriqueta dos amigos ia cada vez melhor, com a produção aumentando a olhos vistos. Sapatos e mais sapatos eram vendidos e para a nova demanda o couro vinha se tornando escasso. Era preciso buscar novo fornecedor e a localidade escolhida por Miguel, comprador oficial da quase empresa que se formara, foi Santa Cecília, para onde partiu assim que pôde. Foi esquipando em seu alazão de estimação, mas não pôde evitar que numa ribanceira despencassem os dois, o animal valente e o homem encarregado de trazer o couro: tombaram e morreram. Por lá ficaram, no ermo do lugar. Mas Miguel tinha uma dívida que não se deixa neste mundo de Deus, sequer por morte. Por isso, a alma do moço teve que ficar nos afazeres da sapataria, forjando os calçados todos que podia, numa proporção nunca vista. Sapatos e mais sapatos todos os dias. Ao sócio explicara que passara por um acidente grave, ficara perdido no meio dos agrestes e para não morrer de fome vendera o cavalo.
O companheiro, todavia, Jonas de prenome, achava estranho o fato de seu velho amigo nunca almoçar em sua companhia. No intervalo do meio-dia desaparecia e entrava na mata. Não resistiu, certa vez, e foi atrás de ver o que se passava, o que fazia Miguel, afinal, por entre as árvores. E viu o sócio tomado por um arco de fogo que o consumia, queimando-lhe as carnes e fazendo arder em chamas todo o corpo. Escutou, com os ouvidos bem abertos, os gemidos dele, o sofrimento que passava ali, com aquele castigo que ignorava as razões. Não era possível admitir isso, ficar sem saber desse martírio a que se submetia Miguel e resolveu, então, falar e pedir explicações. E foi com perplexidade que ouviu na voz trêmula do colega a narrativa dos fatos. E escutara, mais do que atento, a dívida que deixara e de que precisava agora.
Não descansaria em paz se Jonas não se casasse com Mariazinha e dessa forma pagasse a desonra que fez. O companheiro de jornada pensou e refletiu com os seus botões. No fim, no fim, decidiu-se pelo casamento, mesmo sem conhecer a noiva, parceira no doravante dos dias e partiu para a casa da família. Chegando lá conversou com a moça em particular, vencendo os protestos do genitor admirado, desorientado, indeciso e contou o ocorrido, assistindo as lágrimas rolando na face jovem da quase menina, como era. Disse que casaria para salvar a sua honra e pediu a mão dela ao pai. Marcaram a data e na igreja do lugarejo fizeram a cerimônia, sempre com a presença, visível apenas para Jonas, da alma de Miguel.
E quando voltaram para casa, Miguel como acompanhante cativo daquele périplo, viram a toalha branca posta na frente da porta de entrada, simbolizando, como sucede nos sertões esturricados, a preservação da honra. E pisando no alvo do pano despediram-se os noivos de seus pais e Jonas abraçou-se com o amigo que sofria com o fogo quase eterno. E ainda viu, mais adiante, o companheiro de tantos anos subindo aos céus numa roda de luz cuja luminosidade encantava a qualquer um que pudesse vislumbrar a cena.
E por lá, ainda, se conta nesses anos de meu Des, que Miguel entrou no reino dos céus, mas garantiu a salvação, também, do amigo Jonas, pela fidelidade de uma amizade que só se encontra nos distantes sertões, onde a honra de uma moça vale o sacrifício de uma vida. Entre os dois está Mariazinha, toda vestida de branco, uma noiva que viveu feliz, teve muitos filhos, netos e bisnetos.


(*) Texto enviado sob a forma de gravação (voz) para o concurso Talentos da Maturidade. Como não fui selecionado, sinto-me livre para divulgar. Trata-se de uma história que me foi contada por Margarida Hercílio, recepcionista do Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (NUSP), da UFPE. Comentários no espaço do Blog mesmo ou para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Literalmente na Fossa

Há tempo pra tudo, está escrito. Tempo para semear e tempo para colher. Há também um tempo das alegrias e um tempo para se curtir uma fossa, com as tristezas todas dessa condenação tantas vezes injusta. Nos meus anos de adolescente ou no meu tempo de jovem, dizia-se que experimentar uma fossa era suportar a dor da ruptura. Muitos amores feneceram e foram chorados na musicalidade dos cantores da época. Waldick Soriano gritava, em alto e bom som: “Eu não sou cachorro não...” E Nelson Gonçalves se deixava embalar por Maria Bethânia, cuja inspiração nasceu do imaginário fértil de Capiba, pernambucano ilustre e talentoso: “Maria Bethânia tu és para mim,/A senhora do engenho/Em sonhos eu vejo/Maria Bethânia/És tudo que eu tenho...”
Já vi muita gente amargar os horrores dessas fraturas do amor. Gente que se senta num canto de bar e bebe todas. Ouve um dos cantores especializados nessas baladas de todos os lamentos e deixa a fantasia ganhar os ares das ilusões perdidas. Até o Carnaval é pródigo – ou foi pródigo no passado – em letras de interminável lamúria, dos queixumes duradouros e do lengalenga do pranto das ruínas ou dos fracassos. Lembro-me de um amigo, apelidado de Cururu Pei-Pei, que chorou horrores, quando a sua musa encantada o trocou por Lambreta. No dia da despedida de solteiro, quase emborca todas no velho bar do Parque13 de Maio: A Cabana. E aquela musa, para quem foram as lágrimas do Cururu, terminou viúva, como a mãe, sem o sapo que lhe amava e sem o outro, com cognome de um veículo hoje em desuso: a lambreta. Não puderam amar aquela musa encantada. E eu nem sei dela hoje, tampouco de Cururu Pei-Pei.
Mas, há uma outra fossa, aquela que se vive literalmente falando, isto é, a do contacto direto com o material escatológico. Foi o que me aconteceu em três ocasiões distintas. Uma dessas, francamente, amigo leitor, não há jeito lembrar, mas das outras duas, recordo sem saudades. É que vinha, certa vez, pela rua Carneiro Vilela, nas proximidades da Igreja Episcopal Carismática, à noite, durante uma chuva forte. Estacionei o carro e quando fui trancar o automóvel, sem prestar atenção, mergulhei numa boca-de-lobo e fui bater no fundo, molhando-me todo, da cabeça aos pés. A sorte é que a água do enorme buraco não era outra senão aquela de origem pluvial. Lá no fundo da abertura, ainda deu para notar que havia dois caminhos hidráulicos, isto é, um para o rio, destino de todas as águas que caem dos céus e outra para a continuidade da encanação. Saí todo molhado, não precisa dizer, mas fui ao compromisso que tinha, em que pese a admiração dos circunstantes.
De outra feita, voltava da faculdade para o almoço e trazia de carona um velho amigo, cujo hábito era esse, o de andar sempre comigo. Precisava antes ir ao centro da cidade, já não lembro mais pra quê ou por quê. A verdade é que estacionei o carro e vim andando à rua que desejava. Não vi a abertura de uma tampa do saneamento diante de um prédio e fui ao fundo, literalmente na fossa. Sai dali sem ajuda de ninguém, porque os transeuntes não param para socorrer um penitente sujo até a alma de fezes. Era o que estava acontecendo comigo. A bolsa ficou a salvo por ter permanecido na calçada, mas eu voltei daquele alçapão imundo, com fragmentos de restos humanos presos à minha roupa branca – roupa de médico –, um verdadeiro horror. Não adiantava parar um táxi, pois não se transporta quem está nessa situação, sujo e fecalóide, pelo que o jeito foi seguir a pé, contando os postes até em casa.
Interessante foi a minha passagem pela Universidade Católica, uma forma que tinha de cortar o caminho para a moradia. As pessoas me olhavam e me passavam a impressão de estarem admiradíssimas. Era como se pensassem, diante da figura de um homem bem vestido, todo de branco, com uma pasta 007 à mão, mas repleto de fezes: “Este senhor costuma passar por aqui tão bem e agora está assim, pior que um vagabundo!”. Gente que me conhecia, ligeiramente, virou o rosto e gente que nunca me vira, com nojo de meu estado, deu as costas e fugiu daquele cenário, cujo ator era eu, um suplicante que parecia expiar os pecados todos do mundo. Ora, Deus do céu, se existe perdão para as minhas faltas, creio que o episódio me serviu à absolvição. Se não me assegura as benesses do paraíso, deve me levar à transitoriedade do purgatório.
É desnecessário dizer que quando abri o portão de minha residência a reação foi geral e irrestrita: “Vá tomar banho, imediatamente, no banheiro de detrás e depois venha cá, contar a sua desdita!”. Que horror!
Eis ai a expiação dos pecados, literalmente, numa fossa! Eu te esconjuro cão dos infernos!

(*) Ofereço essas linhas aos companheiros que já passaram por coisa semelhante e tanto quanto eu se emporcalharam nas fossas abertas nas ruas das cidades grandes. Leia e comente no espaço do Blog mesmo ou para pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

domingo, 11 de janeiro de 2009

Cardíaco e Impotente

Aos sábados, em geral, se não posso ir à Aldeia dos meus encantos, onde posso me deliciar com o verde e apreciar ainda a dança dos pássaros ou o cantar do sabiá, fico no Recife. Gosto de ir a um mercado ou vou, por necessidade doméstica, providenciar alguma coisa capaz de complementar o almoço do dia e manter a cozinha durante o mês inteirinho. Na Encruzilhada abasteço a casa do queijo de coalho bem urdido e da nata que apetece o paladar, mas faz mal à vida, ensinam os livros, condenando a gordura em geral. Ou posso me abastecer da verdura pronta para o consumo e das frutas que chegam quase frescas ainda e nos servem de antepasto na hora do café da manhã. No mercado compro a cachaça que vou enviar de presente à família Herraz, na Espanha, escolho o café de boa partida e um fubá de milho que permita à minha filha fazer o cuscuz de seus agrados, nas distâncias de Madri, além da farinha quebradinha que há de garantir a feijoada.
Lá por Aldeia, em supermercado novo e bem sortido, chego com ares de quem está em férias e solicito, de logo, um mamão podre. O rapaz das frutas acha estranho o pedido, mas compreende a explicação que antecipo: “É para alimentar a passarada de casa!”. É o que faço assim que entro em casa, abro a fruta rica em polpa e abundante em sementes e a exponho no jardim. Fico no alpendre lendo os jornais do dia e observando o movimento dos passarinhos. É o sabiá quem comanda os pousos e o faz com maestria, mas o verdelim, que seu Zezinho chama de verdelindo, não dispensa a hora e se aproxima, dividindo a fruta com os maiores. Uma vez ou outra, a guriatã se achega e o faz acompanhada sempre. Dia desses a vi juntando gravetos para o ninho, mas não encontrei a localização desse ambiente de reprodução. Muito raramente o João Moleque ou a Maria Mulata, juntos os dois, como se vivessem em eterna lua de mel.
Mas, sobre essas minhas incursões à Encruzilhada, vale aludir ao episódio de ontem. É que fui a um açougue de variedade assegurada e já estava no ato de escolher as carnes que traria, quando vejo uma senhora solicitando do vendedor um pedaço de carne de sol, exigindo, porém, que fosse macia. Disse, então: “Moço! Preciso levar um pedaço macio, porque o meu marido não tem dentes!”. Ora, quase digo, como pode quem não dispõe de um elemento dentário sequer, comer uma carne assim, dura, pelo geral? O rapaz do outro lado do balcão não teve dúvidas e virou-se para mim indagando, de pronto: “O senhor não tem dentes?”. E eu, quase à indignação, cuidei em responder: “Não, meu senhor, eu não sou o marido desta senhora!”. Não lhe mostrei os dentes porque ia repetir um gesto animal ou animalesco de expor a dentadura reagindo a um predador qualquer.
A criatura escolheu lá o seu naco de carne, macia como insistia, e passou a se reportar a mim. Ora, meu Deus do céu, porque tenho sempre que aturar conversa de mulher feia e velha? Não aparece uma jovem, bem afeiçoada e bonita, que me olhe e que me dê atenção. É que a penitente em causa, ao me ver escolher um outro pedaço da carne de sol, diferente do seu, perguntou se não seria melhor ela trocar o seu? Não sei, minha senhora, ignoro a capacidade que tem o seu marido para a mastigação com as gengivas, como me parece fazer. Tanto faz como tanto fez, o seu pedaço e ou meu, pois que sendo molinha e macia não comportam diferenças significativas. E ela levou o seu quinhão.
Fiquei lembrando na vida as vezes em que fui abordado assim, por gente a quem não conhecia. Voltou à memória um episódio, em tudo, muito interessante. Aquele de uma certa viagem a São Paulo, com vários colegas médicos e do passeio noturno à conhecida Boca do Luxo. Era um domingo e nesse dia só aqueles que estão se divertindo visitam a Boca. Nós, ao contrário, não estávamos a turismo, mas a serviço e numa hora qualquer, de folga, inventamos a incursão, veja só o leitor. Em certo momento, uma jovem – fazia exceção, então, à regra –, feia, para justificar a regra, de calcinha e sutiã me abraça por trás. Um abraço forte de quem não gostaria de me largar, senão para um momento de amor bem curtido. Foi ai que tive uma ideia e verbalizei para a suplicante em causa: “Minha filha! Me largue, porque eu sou cardíaco e impotente!”. Essa gente tida e havida como de vida fácil, mesmo que enfrentem todas as dificuldades do mundo, tem horror aos homens assim, doentes e em risco. Eu era novo, muito novo, não sofria do coração - não sofro ainda - tampouco tinha problemas com as chamadas partes mais vergonhosas, as quais, imagino, vão bem, de igual forma. Mas a desculpa valeu. E ela desapareceu, temendo o pior!
(*) - Ao leitor, que se ocupa com as minhas crônicas, confesso: sou muito grato. Há quem goste e quem não goste. Se por aqui sair alguma coisa que desagrade ou que possa parecer agressivo, encareço que me escreva e conte o desgosto. Não ignoro a desdita e de logo hei de tirar de qualquer dos textos a parte do desagrado. Leia e comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com O autor agradece qualquer comentário.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A História dos Cachorros

Enquanto eu morava ali, nos limites – já disse isso – da Boa Vista com Santo Amaro das Salinas, mais Santo Amaro que Boa Vista, havia uma senhora muito distinta nas cercanias, viúva, embora muito nova. Sendo assim, precisava trabalhar pra fora e o fazia aplicando as suas habilidades de costureira. Fosse ao tempo de minha avó paterna, Beatriz de prenome, mereceria o pomposo título de modista, como era do costume nomear pessoas assim, com predicados similares. A minha avó tinha uma ou duas dessas modistas e com elas contava quando precisava coser um vestido, fosse preto, de seu quase eterno luto ou azul marinho, escuro, próximo do negro, de um certo abrandamento dos rituais da perda marital. Hoje, acabaram com o costume e após a Missa de 7º dia poucos lembram do extinto. Ninguém usa mais o chamado luto fechado e tampouco o fumo, com o qual os rapazes demonstravam a dor das perdas.
As três filhas da senhora eram amigas das minhas, também, três filhas, na correspondência de uma para uma ou seja a primogênita, a do meio e a caçula amigas e colegas de colégio das respectivas em minha prole. Assim sendo, conviviam numa e noutra casa. Raramente se desentendiam e ai, naturalmente, iam às tapas. Participavam na rua lateral das brincadeiras e dos folguedos inventados por um dos meninos, tido e havido como sendo o Prefeito da Rua, tal a dedicação com que fornecia a bola do vôlei ou os jogos de mesa, à semelhança do Banco Imobiliário. Sem falar que costumavam jogar com o significado das palavras, o que, por certo, as fez mais ricas no que toca ao vocabulário. Quando estava na Universidade Federal de Pernambuco, era comum à minha caçula utilizar-se de palavras próprias da liturgia acadêmica, tais como: capelo e samarra. Ninguém sabia o sentido dessas estranhas e quase jurássicas palavras.
Numa tarde qualquer de um mês que não lembro mais, a senhora recebeu uma visita importante, gente de classe alta, mulher fina e elegante. Visita que chegou trazendo três cães de raça pura, puríssima, os quais se soltaram no jardim e no terreiro da casa de Dona Florbela (nome fictício). Corriam desembestados por todos os cantos e fuçavam os recantos que encontravam, como se promovessem um verdadeiro resgate do espaço que não dispunham no apartamento que habitavam. Uma festa canina, pode se dizer! Um desses encontrou até um rato de grande porte – um gabiru –, passando-lhe os dentes mal afiados. Foi serviço para o cachorro largar a presa magnífica com que se deliciava. Afinal, largou o indesejado animal e voltou para Boa Viagem, bairro nobre do Recife, habitado por gente da burguesia e objeto das tentações da classe média.
Lá pras tantas da noite, passando das 23 horas já, a dondoca liga para Dona Florbela e se queixa que os seus animais de estimação estavam vomitando muito. Indagava se havia o que suspeitar na casa da costureira, modista para outros. A senhora pensou, pensou e lembrou que havia veneno para rato espalhado no jardim e outras doses distribuídas no quintal. Expressou, então, a existência do velho “1080”, de uso proibido pelas autoridades sanitárias, o que fez a outra mulher, Clotilde (nome fictício) de prenome, estremecer nas bases. Um veterinário que morava perto foi acordado e chegou ainda zonzo para atender os bichos. E conversa vai, conversa vem, feneceram todos, morreram nos braços firmes bem tabalhados de Clotilde. Foi um horror! Mas, como toda tragédia tem uma comédia pelo meio, cuidei em fazer uma paródia, imitando uma cantiga velha que ouvia das empregadas de casa nos anos de menino. Começava assim: “A história da maçã é pura fantasia/...”.
“A historia dos cachorros é pura fantasia/Eu li num almanaque um dia de manhã/O cachorro estava com fome/E comeu o tal veneno/Comeu com casca e tudo/Não deixou nem um pedaço...”. E isso foi cantado e decantado várias vezes. Ainda hoje, quando encontro uma das filhas de Dona Florbela, não hesito e vou logo entoando os versos, paródia da velha cantiga. É nisso que dá dividir a moradia com a rataria, como fazíamos todos naquele lugar. Era rato por cima de rato. Catita e gabiru, rato de esgoto e rato doméstico. Tanto rato, tanto rato, que uma vez fui calçar um sapato e havia uma catita acomodada no bico do calçado. A minha filha mais velha também, e ainda hoje tem cuidado, quando vai se calçar de manhã cedo, para sair.
(*) Se interessar comentar, não hesite, comente no espaço do Blog mesmo ou escreva para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Isso agrada o autor. Mas, se não desejar, não comente, nada diga. Mas, leia!


quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Mãos ao Alto

Era uma noite de sexta-feira ou uma noite de um sábado qualquer, quando ele bateu em minha casa pela primeira vez. Bateu e falou de uma forma inusitada: "Vizinho! Vizinho!". Levantei de onde estava e o atendi, ouvindo a inesperada pergunta: "Eu moro aonde?". Querendo fazer blague, sem notar, talvez, que ele estava bêbado, respondi: "Por que o amigo não compra o Guia Prático, Histórico e Sentimental do Recife, escrito por Gilberto Freyre?". Foi pior, pois o meu interlocutor de ocasião conhecia, pelo menos alguma coisa, do sociólogo de Apipucos e quase entra nos detalhes de Casa Grande & Senzala ou quase entra nas peculiaridades ecológicas e edáficas de Nordeste. Era meu vizinho, realmente, mudara-se naquele dia e não fixara bem a sua moradia. Bastou explicar como era seu apartamento, para lhe orientar a voltar para o convívio familiar.
Noutra ocasião, voltou a bater, noite alta já e o pedido foi ainda mais estranho: "Vizinho! Vizinho! Paga o meu táxi!". Ora, mais essa é boa, quase digo. Não disse! Fui lá fora e indaguei quanto lhe custara a corrida, de onde viera e para onde ia? Era pouco, não hesitei, honrei o compromisso do homem. No dia seguinte a esposa atenta trouxe o dinheiro em espécie e me pagou. A verdade é que residia nos limites de Santo Amaro das Salinas com a Boa Vista e, vez ou outra, enfrentava situações assim, em tudo incomuns. Já andei contando outros episódios, como aquele de um vigia, igualmente embriagado, que seqüestrara o meu cão e cobrara R$ 1,00 pelo resgate. Paguei para me livrar da cantilena, mas o penitente tinha uma cadela no cio e o diabo do cachorro voltou ao cativeiro. Diante da nova cobrança de resgate, com preço dobrado, disse-lhe as últimas e neguei o valor de uma bicada a mais na bodega da esquina.
De outra feita, o tio de um vendedor de cachorro-quente, conhecido por Boy, ligou para mim, no final de semana, também e achando que eu resolvia toda e qualquer bronca do mundo, apresentou-se e fez a solicitação pendente: "Boa noite senhor! É o tio do Boy!". Fiz de conta que tinha grande intimidade com o Boy e continuei a conversa: "Diga lá o que houve?". E ele explicou com riqueza de detalhes o seu intento: "É que morreu a avó do Boy, em Vitória de Santo Antão, e eu preciso de uma caminhonete para trazer o corpo!". "Ora, meu senhor, não sou agente funerário, não disponho desse tipo de veículo e de mais a mais, é proibido fazer esse transporte sem a devida autorização!". Mas, dei ao suplicante o telefone de um amigo de minhas filhas, Fofurinha, por apelido, cuja resposta fez o tio do Boy indignar-se: "Diga à avó do Boy que ressuscite, tome uma Dipirona e só morra na segunda-feira!". Foi um deus-nos-acuda!
Naquela rua acontecia o que o diabo duvida de costas em qualquer sexta-feira santa que se preze. Certa vez, abri a porta da garagem e vi uma quantidade enorme de fotografias jogadas fora, juntas, reunidas no pé de um grande oitizeiro. Apanhei os retratos, um por um, e fui observar de que se tratava ou de quem se tratava. Mostravam cenas de uma família em viagem pela Europa e a tirar pelos oferecimentos escritos no verso de cada um daqueles postais, traziam instantâneos e poses da mulher e dos filhos com o novo companheiro, um gringo, tudo oferecido ao marido largado, deixado no Brasil. Coisas assim: "Aqui numa viagem de trem. Eu e Richard! Você nunca me daria isso!". Ou assim: "Aqui, as crianças brincando com a neve, acompanhadas de Richard! Você nunca falou em neve!". E por ai vai! Ora, foi uma pândega, porque as meninas levaram a esquisita coleção de fotos para o colégio e passaram a identificar os colegas em cada um daqueles personagens. Uma verdadeira patuscada!
Numa manhã de segunda-feira, quando os estudantes passavam em direção aos respectivos colégios e os carros que faziam de minha porta o maior estacionamento público de veículos, um padre velho acabara de celebrar sua Missa matinal e voltava para casa. Foi assaltado e gritou. Eu estava à janela e vi, saquei de uma arma - houve tempo em que tinha um revólver - e fazendo como um cowboy, dei um tiro no solo do jardim e diante do susto ou da inesperada abordagem quase litúrgica, gritei palavras com nexo e outras, inteiramente, desconexas, sem que tivessem ligação alguma com o fato:"Ladrão safado! Mãos para o alto! Renda-se! Rogério, Sileno, Vadeco!". Chamei pelos parentes com os quais tinha mais proximidade. Não sei se buscava proteção ou se os convocava assim para pegar o gatuno. Valha-me Deus dos céus!
(*) - Esta é a primeira crônica do ano de 2009. Depois de um ano inteirinho escrevendo e obtendo do leitor a melhor acolhida. Tive perto de 17.500 visitas, o que me satisfez e o que me estimula a continuar nessa faina, a de escrever e a de publicar. Sou grato e desejo aos que acessam o Blog de todas as partes do mundo felicidade e paz. Hei de continuar por aqui, os que se interessarem comentem para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Ou não comentem e não escrevam.