sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Um Pierrô Apaixonado

Onde estão os antigos pierrôs apaixonados, que nas ruas estreitas deste Recife de todos os amores cantavam e decantavam os sentimentos e os desejos pelas colombinas de seus devaneios? Ou que protagonizaram: “Histórias de amor assim/Assim!/...”. Encantaram-se, certamente, desapareceram nas brumas do tempo, nas nuvens de todas as folias, levando na face, sem a máscara já, a lágrima pendente das saudades e das lembranças! Indefinido semblante daqueles que amam e que não merecem mais, da idolatrada musa da paixão desesperada, um olhar sequer, capaz de aplacar os sonhos nunca oníricos. Não há remédio pra essa cura, não há ungüento suficiente para sarar a ferida das frustrações do amor, aberta sempre com o aflorar das lembranças. Basta um acorde que seja, uma nota de Nelson, reavendo “Felinto/Pedro Salgado/Guilherme/Fenelon/...” para fazer aflorar na memória imagens ainda guardadas a sete chaves, momentos de intensidade rara, minutos, às vezes, de muitos afetos. Afagos rarefeitos nas nuvens do ontem, declarações paridas em rompantes do coração em fogo, incêndio das paixões.


“Agora chora pierrô/É tua sina/A sina de pierrô é chorar por colombina/...” E por certo os fantasmas desses apaixonados, nostálgicos sofredores em perpetuidades das lembranças, vagam ainda nas noites de Carnaval, perseguindo roteiros de antigos corsos em automóveis de fumaça, buscando aqui e ali, como alhures, ósculos perdidos da amada no éter das ilusões! Levantam as mãos, fluidas quase, para captar mensagens assim, de beijos jogados, roubados também, lançados no estirar lúdico das serpentinas que se desfazem, estirando-se em longos vínculos das fragilidades dos amores. Ou baixam a cabeça, esperando confetes coloridos das esperanças de todos os reatamentos, impossíveis já! Nada mais resta, nem pode restar, senão as asas do imaginário que refazem convívios! Vivências e convivências da fantasia, felicidades do efêmero! E nos sulcos que marcam as faces dos fantasmas, caminhos dos desesperos, rolam silentes em solitárias lágrimas, lentamente.


E os palhaços, vestidos de branco ou de amarelo, com as bolas da negritude, que simbolizavam, por certo, o luto das irreparáveis perdas, dançavam nas ruas o passo das ilusões, fazendo a coreografia das alegrias, quando estavam de coração dilacerado, escondendo nas máscaras o semblante das angústias e a fisionomia das ansiedades! Aquele rítmico tocar das castanholas, pungente como a despedida dos amantes, era o pranto derradeiro do estabelecido adeus! Faziam de conta que gostavam do alvoroço das crianças, dos meninos e das meninas entoando o coro da alegria, mas por dentro sofriam loucamente, como os largados pela vida e pelos amores. Quando a quarta-feira das ingratidões chegava, tiravam a máscara de pano, como se estivessem fechando a grande cortina do palco e voltavam para as coxias, condenados a mais um ano de realidades, nuas e cruas, como tem sido a vida de tantos! E a colombina encantou-se, também, desapareceu da roda, dos amores e das alegrias.


(*) Crônica escrita há muitos anos, num sábado qualquer de um Carnaval que se foi, encantado nas ilusões do ontem. Crônica que ofereço a Zezé Caminha, às vezes porta-estandarte do Bloco da Saudade, uma pessoa muito especial, porque afetiva e carinhosa, delicada e atenciosa com tudo o que faço na vida.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Um Recomeço a Mais

Um sábado e um domingo dedicados à filha mais velha, à mais nova mamãe do Recife e de Madrid. Na visita ao Mercado da Encruzilhada, o fubá para o cuscuz da família espanhola, a cachaça de boa marca e de embalagem bem cuidada, com a qual há de preparar no gélido clima europeu a caipirinha tupiniquim. Um quilo da farinha quebradinha que vem dos agrestes e o café de exportação, muito melhor que aquele do dia-a-dia da gente brasileira. É sempre assim, exporta-se o que há de bom e deixa-se para o comércio local a segunda classe dos produtos. No outro boxe, o do queijo de coalho e o da lingüiça, doce de leite à vontade, sete embalagens contadas nos dedos, mesmo que se saiba da conta do mentiroso. E o peso da mala, indaguei de logo? Peço ajuda, foi a resposta, contanto que chegue por lá, com todo o material dessas origens.

Na manhã do domingo, muito cedo, uma visita à avó paterna, 88 anos de idade, mulher estóica, que foi capaz de enfrentar todas as dificuldades da vida com a mesma serenidade que tem agora. Nas despedidas, a promessa do regresso dentro de mais dois ou três anos se pouco. Um filho que chega é sempre um trabalho a mais na vida, noites em claro e dias e dias para o bebê se adaptar à nova situação, a de ser um vivente neste mundo de Deus, tão diferente das condições que precedem o nascimento. A vida do casal, então, muda completamente. A nossa foi assim, com ela própria, a primogênita, por quatro anos esperada e assim desejada, mas com os hábitos mudados, como se existissem dois fusos horários, aquele do útero materno e o comum, o do cotidiano das coisas. Dormia com o sol e acordava com a lua. Todos ou quase todos fazem isso. Ignoro por quê? Porque nascem à noite? Não sei! Mas, é uma danação!

Ah, meu Deus! Ainda tinha mais dois supermercados para ir, um no Espinheiro, modesto no olhar da menina quase européia e outro em Casa Forte, grande e pomposo. Desejava um DVD de artista da terra – de Alceu Valença –, figura de meus convívios no pretérito do tempo. Não admite que seja pirata, vendido nas ruas em carroças de uma sonoridade horrorosa. Mas, por lá, na loja boa e de estoque bem prevenido não estava disponível, talvez nem existisse, alegou a atendente de ocasião. Escolheu outra cachaça e resolveu levar, também – Valha-me Deus com tanta coisa! –, uma massa para fazer pão de queijo, mesmo sabendo da peculiaridade mineira da receita do acepipe por todos tão apreciado. Munida de tudo isso, voltou para casa. E as horas se passaram rápidas, sem que respeitassem dos avós a vontade de um pouco mais de tempo que fosse.

No almoço quis servir-se de uma picanha, argentina de preferência, pois que no lugar em que mora e vive não se tem à mão, senão a preço muito alto, iguaria como essa. Fomos, então, aqui na esquina mesmo, no Portal da Picanha, em recanto no qual também aparece o escritor Raimundo Carrero, lido e relido, nascido nos sertões esturricados e criado no Recife dos salesianos. Almoçou com gosto e regalia, serviu-se da picanha e completou a refeição com uma torta alemã bem preparada. Enquanto esperava, via o moço oferecendo coração de galinha, tira-gosto que pras bandas da Europa não se experimenta sequer. Muniu-se da máquina fotográfica e pediu à irmã que lhe registrasse o gesto, o ato e o fato, o degustar do inusitado petisco. E assim foi feito!

A mala foi arrumada, depois de uma preguiça enorme de juntar as coisas – vontade de não ir? –, aquelas do hábito e os presentes, os valores da terra, sobretudo. Foram sendo organizadas roupa por roupa, blusas e saias, calças compridas e bermudas, entremeadas por embrulhos de objetos que seguiram para fazer a figuração do exótico, como tantos já fizeram ao longo dos anos e dos séculos. Terra de muitos detalhes ignorados por ai, de artesanatos cosidos e até cozidos, também, às custas do suor pingando na terra, como as bolsas de palha de milho que se comprou por aqui para presente da sogra e das cunhadas, de uma vizinha do mesmo jeito, da russa que mora parede-meia na largueza do mundo civilizado.

E na pista o avião se colocou, acelerou os motores há muito ligados e fez carreira, subiu nos ares do mundo e cá comigo eu disse pensando: “Vá em paz! Leve a minha filha e o meu neto na santa paz dos deuses, dos querubins e dos serafins!”

E o meu final de ano ou o meu começo de ano, de tantas felicidades experimentadas e louvadas, terminou. A vida há de recomeçar e assim será! Eis ai o meu recomeço!



(*) Crônica escrita depois que a filha mais velha partiu e se foi de viagem para a Espanha, onde mora e onde vive. Agora, grávida como está, vai demorar a rever o Recife e o Brasil. As saudades ficaram nas lágrimas que marejaram os olhos no momento da partida. A vida é assim! Tudo para que uma nova vida possa aflorar!


quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Um Avô a Mais na Conta dos Anos

O ano novo chegou com ares de bom tempo, é o que estamos sentindo em casa, eu e os demais, a constelação parental inteira. As boas notícias se sucedem por aqui. Um genro melhorou no emprego e outro foi chamado a assumir um cargo no serviço público. Mas, nada disso superou a satisfação de que fomos tomados com o diagnóstico da gravidez recente da filha mais velha. Vem por ai um neto, o primeiro dessa geração terceira, metade brasileiro e metade espanhol. Pelo que disse a médica, minha colega de turma e minha amiga do peito, a criança será um menino e nasce a 7 de setembro, o Dia da Pátria. Nasce assim, em data tão significativa, para afirmar e reafirmar uma cidadania que também há de ter: brasileiro como a mãe ou brasileiro como os avós maternos.

A filha que mora em Fortaleza e com a irmã – a nova mãe – tem uma união, verdadeiramente, fraternal, fez uso da modernidade das coisas, usou da tecnologia e digitou uma mensagem para a vozinha neófita. Dizia: “Vou ser titia e você vovó! Bem que sentimos que este ano ia ser maravilhoso!”. As lágrimas correram frouxas. Chorei feito um bezerro desmamado. A filha caçula, então, não hesitou e expressou: "Bota essa coruja pra fora! Pai!" Foi uma animação geral, gente que telefona e gente que bate à porta; gente que sobe e gente que desce o elevador do prédio. Todo mundo cumprimenta, abraça e beija, dá os parabéns e deseja sucesso. “Tenha uma boa hora!”, diria a minha avó paterna, se viva estivesse e por cá viesse ou “Nossa Senhora do Bom Parto lhe dê uma boa hora!”, diria a tia velha, solteirona e viúva; viúva da Guerra do Paraguai.

Houve quem propusesse uma crônica por dia; a cada manhã no Blog publicada. Valha-me Deus, quase digo, para transmitir as dificuldades da criação, uma gestação também na parição do texto. Mas, com isso, com esse estimulo de quem lê as minhas linhas, vou escrevendo sem pausa, devo confessar, tal a felicidade que vivo agora, a de ser avô. O meu co-sogro, o avô das terras de Espanha – Armando Herraz –, cuja família, imagino, antecipa os nossos Ferraz, de Floresta e do Recife, quando teve a noticia errou o caminho de casa e não se recuperou ainda da surpresa. Por lá, na terra de Lorca, chamam de abuelo. Um menino que chega assim, com duas línguas de uma só vez, há de ser feliz com a vida em paises diferentes. Estuda por lá e passa as férias por cá.

De meu avô materno lembro muito bem – não conheci o paterno –, da relação que tinha com ele guardo saudades, das visitas aos domingos, do açúcar-cande que trazia, todo amarradinho com cordão. Era delicioso chupar aqueles pedaços dominicais de doce. O cabelo branco, desalinhado, às vezes, marcava-lhe a face e o terno de linho, com a colorida gravata borboleta, um sinal evidente da elegância que tinha. Mas, fico pensando, então, se o Barão do Ceará-Mirim, meu bisavô pelo lado paterno, de quem tenho a cópia de um retrato a óleo colorido, imaginou um dia ter uma trineta casada com espanhol de nascimento e um tetraneto da terra que inspirou Cervantes. É um fenômeno, realmente! Quase uma volta às origens, se na Península Ibérica – em Portugal principalmente – está o começo de tudo e de todos.

Os avós se sentem velhos quando lhes chega um neto, com toda certeza, mas exultam de felicidade ao reconhecerem que vai ficando por aqui, fincado na terra em que se nasce, o gérmen da família, o tijolo desse edifício social – a sociedade –, cuja argamassa há de ser o bom convívio. A cabeleira está prateando o tempo e o corpo vergando à força dos anos, mas a certeza de que a estrada foi o bom caminho faz a diferença na contabilidade da idade.

Valeu!

(*) Crônica escrita logo depois da notícia de que o primeiro neto estava a caminho, encomendado devidamente e dando bons sinais de mais uma presença na família. Viva! Comente aqui ou comente para pereira@elogica.com.br

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Uma Atualização das Lembranças

É hoje, neste primeiro dia do ano, que o poema de Carlos Drummond de Andrade encontra melhor guarida: “E agora, José?/A festa acabou,/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou,/ e agora José?/ e agora, você?”. Eis que amanheceu 2008 e já vai mudando as feições da gente de casa, a minha sobretudo. É que o sonho, realmente, passou. É hora de acordar e enfrentar a dura realidade das coisas. A fantasia feneceu e o véu das ilusões caiu. Um mês inteirinho de animados convívios com as duas filhas, uma de Espanha e outra do Ceará, trouxeram de volta o rebuliço de casa, a algazarra e a conversa fiada por horas seguidas. Duas longe daqui e uma por cá. Três filhas bem criadas e bem encaminhadas. Lembranças de infância – as delas agora – povoaram os diálogos de todos os dias e de quase todas as horas. Que beleza!

Um passeio aqui e outro ali, uma volta no centro da cidade, como resgate do que faziam nos tempos de menina e um jantar, um sushi bem cuidado, para matar a saudade de quem estando na Europa não tem acesso fácil às comidas orientais e uma picanha ao ponto, para lembrar a carne brasileira ou a carne argentina comida aqui em terras nacionais. As visitas às avós para a entrega de presentes e o ver ou o rever parental. Mais um ano há de se passar com ambas distantes, bem distantes, doze meses de conexões interrompidas e de falas partidas no computador doméstico, de explicações não compreendidas inteiramente. Um período todo de separação outra vez. Mas, assim é preciso, como sucede com os pássaros dos céus, que assistem os filhotes voarem, definitivamente, dos ninhos.

Outros ninhos estão sendo construídos, com toda a certeza, para que o ciclo da vida se perpetue. A globalização que chegou vai mesclando as famílias de um e de outro lado do globo. Gente espanhola de boa cepa, integrada agora a brasileiros quase ibéricos também, pois que descendentes dos irmãos portugueses, vizinhos e dantes incluídos sob o domínio hispânico. Um Brasil de Portugal e de Espanha ou de Espanha e de Portugal. E mais uma vez novos filhos vão se criar e na hora certa voarem com destinos diferentes. Ninguém imagina o que será de um filho aos dez anos de idade, já disse isso mil vezes e já contei que aprendi a refletir com essa frase a partir de um filme que vi numa viagem internacional, vindo da França para o Brasil, de Orly aos Guararapes.

Na contabilidade da balança o saldo é, fortemente, positivo para os quilogramas a mais. Restrinja-se a carne gorda e suspenda-se o consumo da galinha a cabidela, sobretudo aquelas de capoeira. Lá vai a guerra da fome começar. Nada de pão e nada de queijo amarelo, o doce de goiaba em barra nem pensar e o que vem em calda e aceita o creme de leite como complemento, pior. Quem é de um tempo diferente, da saúde e da gordura, estranha esses dias de agora, da magreza e dos cambitos finos andando pela rua. Outrora a mulher – e o homem também – contava sempre com uma reserva adiposa que lhe dava charme e beleza. Na minha rua – já disse por aqui – faziam sucesso as albacoras, mulheres enormes e ao mesmo tempo irmãs, que não passavam sem um assovio: “fiu fiu!”. E o meu pai quando chegou aos 100 quilos, costumava receber os cumprimentos por onde passava. Que coisa!

E o ano há de novamente rodar, mês por mês, até repetir o Natal e o Ano Novo, porque o tempo não pára. Vem por ai o Carnaval e com o reinado de Momo a fanfarra, depois a Semana Santa e o São João, o São Pedro foi cassado do calendário e das festas. A Semana da Pátria quase ninguém liga, senão para curtir a folga e em seguida um feriado a mais, o da Padroeira. Feriado e mais feriado: vem por ai o 6 de março.

O avião fez carreira na pista, levantou vôo e tomou o rumo do Norte. Levou uma das filhas a bordo. Depois segue a outra, do Recife a Lisboa e de lá até Madrid. Deus as proteja nessa vida. A enormidade do Boeing rompendo os ares do mundo leva as minhas saudades de agora, as minhas atualizadas lembranças.

(*) – Crônica escrita no dia 1º de janeiro de 2008, depois das festas e depois que o Ano Novo passou, deixando saudades e abandonando os convívios com as filhas distantes. Uma em Madrid e outra no Ceará. A terceira ainda por casa, para satisfação dos pais e uma alegria a mais com a sua jovialidade.