segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Pombo: Uma ave ou um Ladrão?

Trabalhávamos juntos no velho Pronto Socorro, na Praça Oswaldo Cruz, onde hoje está a sede da Fusam: eu e o Jia. Éramos attaché, que no meu francês macarrônico significa agregado, isto é aquele que não era, exatamente, do quadro de acadêmicos internos, mas desejava e sobretudo precisava acompanhar as urgências e as emergências. Como não tínhamos na faculdade nada ligado a essa peculiaridade da nosologia geral, era prudente, aprender com os médicos daquele serviço, todos ou quase todos de elevado nível na clínica ou na cirurgia. O nosso plantão transcorria às terças no horário diurno e às sextas durante a noite. Não precisa dizer que esse último horário era mais movimentado que o primeiro. Claro que era! O dia das farras ou das saídas todas que o social da vida exigia e exige.
Depois que os ponteiros do relógio se abraçavam e a madrugada dava sinais evidentes de vitalidade, diminuía a demanda mais simples, mais rotineira e cresciam os casos complicados; complicados sob todos os pontos de vista. Ficávamos na entrada do hospital e dali fazíamos apostas em torno de quem chegava. Se desembarcasse do carro com as mãos no abdômen, era certo dizer que se tratava de uma infecção intestinal, comum às sextas. E se o desembarque fosse de um homem com a mão espalmada sobre o peito – sobre o esterno – valia apostar no enfarte do miocárdio. Jovens do sexo feminino envoltas nos lençóis de dormir, cambaleando à entrada, pouca dúvida poderia haver: tentativa de suicídio. Foi assim com uma certa moça muito nova e bonita, de feições delicadas.
Apresentou-se chorando, perdera o amor de menina. O namorado rompera o idílio de alguns anos. Foi instituído o procedimento de rotina – a lavagem gástrica – e a paciente mantida em observação. Lá pras tantas da noite chega um professor da faculdade e reúne a estudantada: queria saber noticias da criatura. Era parente do noivo e havia um clima de desespero na casa dele, com choros e ranger de dentes. Levamos o nosso mestre a uma visita à paciente e ele pôde constatar que ela descansava tranquila, posta num leito chulo, acomodada em colchão de capim. Ainda deu para lhe dizer: “Diga ao rapaz que durma. A moça não morreu e não morrerá!”. E assim foi! Mas, quando a manhã ameaçava raiar, faleceu o vizinho da moça. Ela perguntou, tímida: “Morreu?”. Sim morreu, foi a resposta. Juntou os seus teréns todos e deu no pé. Pra onde foi, ninguém sabe, ninguém viu!
Numa das vezes, madrugada alta já, houve um grande acidente de trânsito em Boa Viagem. Como sempre acontece, o álcool foi o combustível do desastre. Chegou, então, um casal no pronto socorro, ele em coma declarado, mas coma resultante do traumatismo craniano e ela lúcida, falante. Não eram casados e a mulher desejava, a todo custo, sair do ambiente, porque não demoraria muito, chegariam os familiares e a bronca ia ser pra valer. Sucede que o guarda civil de plantão era novato na corporação, tinha entrado naquele dia e não sabia de nada. Chegou junto de mim e comunicou em alto e bom som: “O motorista está preso!”. Depois, como não tinha muita segurança de sua atitude, indagou: “Uma pessoa em coma pode ser presa?”. Respondi que não sabia e que ele consultasse o delegado. Tomou a providência ligando para a autoridade, acordando o policial de hierarquia superior à dele e não foram poucos os desaforos que ouviu.
Decidiu, assim, orientado pela autoridade maior, anotar os números das identidades dos envolvidos. Só que não viu os documentos, limitando-se a anotar o que verbalizavam os parentes. Isso não passou desapercebido e eu o tirei na chacota: “Você é muito burro! Inventaram os números e lhe impuseram as milhares! Jogue tudo amanhã no bicho!”. E para encerrar o plantão com chave de ouro, chegou preso o ladrão de cognome pombo. Escondemos o penitente no gabinete radiológico e comunicamos: “Pombo fugiu!”. E ele: “Estou preso no lugar dele!”.
Pombo: uma ave ou um ladrão? Decida o leitor!