sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Colombinas Enternecidas

As minhas saudades estão guardadas agora em doirados guizos das fantasias dos meus outroras e revivem lembranças dos carnavais que se foram e nunca mais hão de voltar. Ah, recordações dos tempos pretéritos, de amores rompidos assim, sem as antecipações dos rumores e das dores! Onde andarão as enternecidas colombinas de meus anos, que encantavam pierrôs apaixonados e inquietavam arlequins desesperados? E os palhaços, de roupas largas e de muitas cores, de máscaras risonhas, tocando castanhola e acompanhando o frevo de bloco ou o rasgado dos acordes? Nem as serpentinas jogadas bem longe, nas distâncias que embalam os nostálgicos sonhos do imaginário, recuperam aqueles tempos: os salões enfeitados e os pares rodopiando alegria. E nem os confetes, com o espectro todo do arco-íris da vida, flutuando nos ares ao sabor dos ventos, vão trazer de volta os beijos roubados das mascaradas moiçolas, que escondiam a face, mas não podiam negar as formas do corpo! Se o lança-perfume evaporou-se para sempre, deixou pelo menos gravado na memória das épocas o aroma gostoso que aproximava os corações ardentes, inflamando as paixões! E o mais do que tradicional corso, como uma serpente enorme, espalhando-se e se espraiando, carro após carro, caminhões enfeitados com faixas de pano, batucadas improvisadas e músicos de ocasião? O bate-bate de maracujá e a animação tomando conta do mundo pequeno dos meus dias de menino desapareceram também nos ares da vida! Era o frevo no pé e o pé no frevo, contanto que houvesse alegria na fanfarra das horas!

Revejo, então, o sacrário das minhas saudades, depositário das minhas lembranças, para acender os meus devaneios pueris, guardados ali, naquele canto das recordações dos pretéritos do existir terreno. A fantasia azul de marinheiro, da cor do céu, de gola branca e larga estava lá, engomada e passada, pronta para ser usada. Foi a minha mãe quem a manteve assim, embalando as divagações da criança do antes, oníricos, sobretudo diurnos, preservando os mais particulares desejos, de ver e de rever esse tempo encantado. Não adianta querer vestir a roupinha de palhaço, de fazenda estampada, com um coração muito grande preso no pano, representando os amores de uma infância feliz e bem vivida. E de que serve querer ouvir, na velha radiola de casa, os acordes dos frevos de bloco, a musicalidade de Nelson e de Capiba, tão presentes naqueles dias? O disco de 78 rotações não tem mais em que agulhinha rodar, porque cedeu lugar aos avanços e perdeu o espaço na corrida do tempo: “Ah!/Saudade!/Saudade tão grande!/Saudade que tenho...” . Na madrugada do domingo, agora, não posso mais ver chegar a musa de minha rua, vestida com a fantasia de capitão, da mais pura e branca seda, aos beijos e aos abraços com o pretendente emergente, num amor de causar dor e dó a todos que a tinham na mais do que franca maneira de promover no imaginário as enlevações do espírito. Se casou ninguém sabe, ninguém viu! Sabe-se, apenas, que ficou na lembrança de muita gente!

Faço hoje mesmo o itinerário sentimental do corso e viajo pelas ruas do Recife, sem me ater aos indicativos de trânsito, às proibições do tráfego, postas aqui e ali sinalizando a modernidade, contanto que possa rever os meus passos e os meus passados, as minhas andanças, afinal, em tempos idos, acolhidos já na enorme distância das saudades! Posso ouvir o batuque cadenciado dos tamborins daqueles outroras, que no caminhão, ao fundo, animava a meninada toda! E na velha Casa de Detenção descortino os antigos sinais dos encarcerados, da gente presa ali, pendurada às grades, dando adeus à liberdade dos outros. Passo pela a rua da Concórdia inteira, o meu paço da folia à época, do começo à praça, cumprimentando em pensamento os passantes todos, as colombinas e os arlequins, os pierrôs e os palhaços, os mascarados e os papangus que assombravam os meninos nas ruidosas manhãs de sábados encantados. Sento-me, porém, num banco qualquer e vou rebuscar encontros e desencontros dos meus derradeiros corsos! Foi aqui, relembro, falando quase, que vi a musa dos meus dias, que identifiquei o peculiar sorriso, alvo e puro, de incisivos levemente oblíquos, dando vida à beleza nascente, que a vi crescer e desenvolver na corrida do tempo, do implacável relógio marcando as horas e rodando os dias. Quando os nossos olhares se cruzavam nos ares da fanfarra, o riso adornava-lhe a face bem desenhada das esculturas forjadas pelas mãos do Criador! Tomei a mim a missão de amá-la! Melindrosa dos meus dias!

Posso, então, cantar, com o menestrel do amor: “Os melhores dias de minha vida/Eu passei contigo/Minha querida...”. Assim, atualizo as minhas saudades, lembrando os carnavais do ontem e amando a musa do hoje!

(*) Uma crônica de muitos passados deixados nos caminhos do tempo. Escrita sob a inspiração das mudanças que os anos trazem e assim nos contemplam. Viva! Um texto que ofereço a Anita Aline, ilustre professora da UFPE, comprometida com o social e afetiva, terna.