domingo, 2 de janeiro de 2011

Ano Novo

Os que estão na minha faixa de idade têm muitas histórias para contar e muita conversa para fiar, neste ano que chega, vencida a primeira década do milênio. E ninguém imaginava chegar tão longe na vida. É que sou nascido na efervescência da Segunda Guerra Mundial e criado no pós-guerra. Assim, pude assistir de camarote ao desenvolvimento todo da ciência e pude participar das grandes mudanças que sofreram os hábitos e os costumes. Sou do tempo da rádio AM, dos telefones funcionando com quatro números, das ligações para Boa Viagem intermediadas pela telefonista e das radiolas enormes tocando os velhos discos long-play, os quais voltam a cair no gosto dos mais velhos. Ou sou do tempo das cadeiras na calçada, das avós gordas e de longos cabelos, cegas ou quase cegas, com catarata e glaucoma. Ou ainda, dos colégios masculinos isolados dos femininos, da farda caqui e da gravata azul, dos alunos do Nóbrega brigando com os do Marista ou aqueles do Salesiano.
Quando o fim de ano chegava e as férias começavam – três meses de desespero para os pais –, pela manhã havia uma pelada jogada na rua, com bola de borracha ou de meia e à tarde outro futebol, no chão de terra batida da rua Padre Miguelinho ou se armavam os alçapões, um desses de rede, para aprisionar canários abarrancados do Parque 13 de Maio. À noite, a roupa bem passada, calça de mescla e camisa de buclê, tempos depois o nycron e a helanca. E os intermináveis passeios na Festa da Mocidade, sem respeitar as severas determinações paternas: “Tudo! Menos o teatro de rebolado! Tenho escrito no jornal artigos de condenação a essa prática, que atenta os costumes!” Assistíamos a tudo, aos ensaios e às apresentações da
mulherada de Walter Pinto, todas bem compostas, se comparadas às de hoje. Às vezes, uma fé no jogo de azar, às escondidas do Marcha–Lenta, o cabo responsável pela segurança do lugar. Muito raramente, uma dose de Cinzano para animar.
Na noite do Natal, a Missa do Galo era parada obrigatória no mundano das coisas. Prestava-se mais atenção às meninas, de véu à cabeça na pureza do branco, que ao cura celebrante. Alguns dos penitentes, mais precoces que os outros, enlaçavam as namoradas e sussurravam juras deixadas nos ares. À hora do ritual, a confissão antecedia o ato de comungar e ao padre se dizia, aos cochichos, os pecados todos do ano, firmando-se o compromisso de nunca mais falhar. Passava-se uma semana, sempre, evitando os pensamentos, as palavras e as obras, mais os pensamentos que as palavras e mais as palavras que as obras. Vencida essa carência, repetia-se tudo, da mesma forma. E de culpa em culpa a rapaziada juntava remorsos e aguardava a próxima vez, para revelar aos santos ouvidos as malícias de todos os dias. Certo sacerdote dormia a sono solto no momento da escuta e se contava tudo e um pouco mais. Haviaquem confessasse os próprios pecados e os dos outros, dos amigos ou dos colegas! Houve quem aproveitando a oportunidade já sussurrasse as faltas futuras, merecendo o perdão antecipado.
Quando chegava o dia de Ano Bom, era uma festa na casa de toda gente. O peru, cevado às custas de um pirão bem cuidado, empurrado de goela abaixo aos bolões, morto às vésperas, depois de ter sido anestesiado com aguardente da venda da esquina, sofria o necessário cozimento em panela apropriada, sob tempero das avós, especialistas naqueles tempos em aves e noutros acepipes. Preparava-se a mesa e autorizava-se a champanhe, mesmo aos meninos, impedidos pela idade de acesso a qualquer líquido alcoólico. Nas proximidades da meia-noite as luzes eram acesas, pois que se uma única restasse desligada seria de mal agouro, para o dono da casa, sobretudo. O Dr. F. Pessoa de Queiroz pronunciava seu discurso e o relógio tocava as doze badaladas, anunciando a mudança do calendário. Nos postes da iluminação pública, de ferro fundido naquele sanos, a molecada batia forte e o barulho do metal contra o metal estimulava os abraços. Feliz Ano Novo, diziam todos! Não se imaginava que assistir o passar do século! E ninguém deu atenção às histórias das avós, sobre igual passagem noutros pretéritos!

E saleta - havia esse cômodo outrora - o pintassilgo despertava, com o movimento da casa e a claridade da luz. Daqueles acordes maviosos nunca esqueci. Ainda ouço o cantar belíssimo da ave.

(*) - Uma crônica adaptada de outra escrita ao tempo da passagem do século e do milênio. Comente o leitor se desejar, no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com Ou ainda acesse o Jorna da Besta Fubana que faz o grande obséquio de publicar a crônica. Bons anos a todos.