quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O Velho Faceta

Gostava daquele fuzuê, daquele passeio acima e abaixo nesse período do ano, isto é, no intervalo entre o Natal e a noite de Ano Bom. Era a fase melhor da Festa, dizia Fernando, sempre acompanhado por um número grande de amigos. Saíra naquela noite vestido a caráter, usava a calça azul de mescla, cozida pelas mãos de D. Deda, presente de sua mãe e a camisa de linho branca, que não coubera em seu tio de São Paulo e o pai também não quisera usar. O sapato, já se sabe, era um calçado de pano, da marca “Rainha”, de cor bege, precocemente herdado do Dr. Novelino.
Passava de barraca em barraca, olhava uma aqui e outra ali, fez uma fé no burro e perdeu, outra na borboleta e também perdeu. Parou no quiosque das bebidas e pediu um vermute. Nem sabia direito da marca, sequer da bebida, mas bancando o desenrolado, o sabichão, verbalizou: “Qualquer marca!”. Deram-lhe um copo com uma porção de Cinzano. Bebeu de uma vez, quase. Saiu e foi bater perna, encontrou nas veredas do velho parque onde funcionava a festa, a negra Gelda. Como vai Fernando? -disse a mulher. Nada respondeu! Não valia à pena.
Na tarde daquele dia encontrara com Silvana, mocinha vinda dos sertões esturricados que estava no Recife para o mês de férias, andando pela avenida Visconde de Suassuna, pra cima e pra baixo, matando o tempo do ócio. Encontrou com ela e passou a fiar conversa. Falou e escutou, ouviu o rapaz contar que ia fazer medicina e tomou coragem para perguntar: “Que moça é aquela que você anda de mãos dadas na Festa da Mocidade?”. Ora, minha querida, disse o moço, trata-se de uma prima do interior muito tímida, mas muito tímida, que eu preciso passear com ela assim, de mãos dadas!
Mas, ficou nisso, nem foi pra frente nem pra trás, e da moça não se tem noticias; notícia não se tem também de “boca de caçapa”, de quem se sabe, apenas, que viajou para os Estados Unidos, onde já estava seu irmão mais velho, Ednaldo de prenome. Mas, nessas idas e vindas pelas alamedas da Festa, Fernando deu por conta da hora. Eram 23:30h, exatamente o momento em que deveria regressar e passar o Ano com a família. Assim o fez, tomou o caminho da volta, mas com a promessa firme de voltar para assistir ao Pastoril do velho Faceta.
E assim foi, depois do romper de mais um ano, com direito a foguetório e às pancadas no velho poste de ferro, Fernando voltou no mesmo pé à Festa da Mocidade e tomou lugar diante das meninas do velho Faceta. E no meio da dança o desbocado senhor abria a boca a cantar: “Eu passeei com minha amada/Peguei na boquinha dela...”. E o refrão vinha de logo: “É mais em baixo, meu velho, é mais em baixo...”. A turba vibrava e logo começavam os pagamentos para que dançasse a Diana, a Mestra, a Contramestra e as outras pastoras. Tinha menino que vibrava com o rebolado da Diana. Mulher de coxas grossas, de ancas largas e de seios fartos. Era tudo que a rapaziada queria na cama de casa.
Depois cabia ao cura da paróquia o perdão dos pecados. E haja pecado pra contar e ser ouvido!

Amém.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Natal

Acordei hoje ouvindo o trinar distante de um pássaro qualquer. Prestei bem atenção aos acordes e não identifiquei a espécie. Será um passarinho preso na gaiola, evocando a fêmea que ficou pra trás? Por certo que sim! Ou será um exemplar exótico trazido pra cá pelas mãos quase sempre cuidadosas de um exilado dos anos, como eu, que de minha cadeira ouço a melodia com os ouvidos da saudade? As duas opções talvez. Não conheço o trinar porque o exemplar é exótico, estranho aos meus ouvidos e aos ouvidos de todos.
Mas, logo depois, antes que o sol nascesse de todo, um bem-te-vi cantava a melodia que tão bem conheço: “bem-te-vi; bem-te-vi; bem-te-vi”. Eu estava sentado no meu canto e para mim a sonoridade tinha uma interpretação diferente: “é Natal!; é Natal!; é Natal!”. Ao fundo cantava um sabiá, dando o fundo musical ao anúncio do bem-te-vi. Era um sabiá-gonga, penso eu, desses que aparecem ainda no parque da Jaqueira, saudando os passantes.
E ao chegar na mesa dos meus escritos lá estava um e-mail de Harumi Royama, essa japonesa pernambucanizada, capaz de escrever em português fluente e suficientemente competente para dançar o frevo em plena Pracinha do Diário. Feliz Natal, é o que diz e eu me lembro de meus dias em Tóquio, assistindo de minha janela o verdadeiro revoar das pétalas da sakura, a cerejeira dos japoneses. Quando voltei, depois de 28 dias na Terra do Sol Nascente, as flores já tin ham surgido nas pequenas árvores das ruas.
Lembrei também de outros natais. Sempre lembro dessas antigas festas. De meu pai muito novo, as mãos dadas comigo, a passeio até o rio Capibaribe – o rio das Capivaras. De minha mãe, tão velhinha agora, condenada ao leito, nova e bonita, abrindo o queijo do reino e servindo a todos.



E eu pensava naquele tempo que todos eram bons! Não sabia que Caim se repetia a cada passo nesse mundo! De lança à mão, o velho algoz mata mais um Abel todos os dias. Eu era besta! Ria, quando Maria Baixinha cantava: "Quem faz o bem recebe sempre o mal...". Não fora isso que aprendera com os jesuitas. E muito menos em casa. Valem os amigos, aquele da cesta de Natal, que me abraçou pelo telefone, dizendo que não esquece do que fiz por ele. Mandou, em seu nome e em nome da irmã, uma bela cesta de final de ano.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O nariz, o braço e a UTI

Voltei há pouco do hospital, onde passei quase 7 dias internado – seis dias e meio –, depois de ter atravessado a fase aguda de um AVC. No fim, no fim, saio contando a historia e fazendo a contabilidade dos ganhos e das perdas. Não que venha aqui para dizer que foi bom, que valeu. Que o saldo foi positivo! Não! Seria hipócrita se dissesse isso! Mas, especialmente para comentar o que vi e o que ouvi nos dias de meu exílio. Antes de tudo informo que estou andando normal e mexendo do jeito que já mexia. Colega meu, em visita à UTI, dizia assim: “Você está melhor do que antes!”. Exagero! O que me falta são os movimentos finos dos dedos da mão direita, razão para escrever com certa dificuldade agora e motivo para não me arvorar em assinar qualquer documento. E, fiquei fanho! Dizem os entendidos que tudo isso passa!

Mas, a grande lição é a da amizade. Em meu telefone havia uma sobrecarga de 10 recados e logo em seguida a gravação informava que era preciso apagar alguma das mensagens. O telefone de casa tocava de minuto a minuto, disseram as filhas. E o afluxo de pessoas à UTI ultrapassou a expectativa. Como grande parte de meus amigos é médico, eles entravam em qualquer horário, o que fez uma das auxiliares dizer o seguinte: “Esse ai é uma celebridade!”. Em seguida, o rapaz que entrou no lugar da moça, completando-lhe a noite, indagou: “Como o senhor deseja ser tratado: por ‘seu’ ou por ‘doutor’?”. Ora, amigo velho, trate como quiser, respondi. E nessa conversa mole eu fui extremamente bem tratado.

Na hora de fazer uma ressonância a vaca foi pro brejo. Imagine o leitor que não conseguiam colocar uma peça do equipamento sobre a minha cabeça; peça, aliás, a que chamavam de “antena”, não sei por que cargas d’água. Era o meu nariz que ficava, sempre, fora do alinhamento desejável. Ai, tive ímpetos de explicar que desde o meu avô, a proeminência nasal dos descendentes vinha aumentando. Não expliquei! Mas justifiquei que nenhum dos “Marques” entraria naquela máquina, malgrado o fato de que alguns são loucos por ambientes assim, claustofóbicos. Afinal, arranjou-se uma máquina capaz de comportar o meu nariz e o exame foi feito. Para o exame, como a outras dependências da instituição, eu ia sentado numa cadeira e a moça da enfermagem me levando. As pessoas ficavam olhando e numa das vezes, não tive duvidas: “Eu sou da Tamarineira e pego criancinhas pra fazer mingau.”. A senhora que passava parou, olhou pra mim e disse como minha tia velha: “Vote!”.

E quando fui pela vez primeira tomar um banho de chuveiro, a auxiliar de enfermagem me falou: “Vou fazer um embrulho de seu braço!”. E dessa forma, devidamente, embrulhado, fui ao chuveiro tomei o meu primeiro banhinho. Do mesma forma pueril vou por aqui recomeçando a vida, aprendendo a assinar os documentos e voltar a falar sem o jeito fanhoso de ser. Sem esquecer nunca de que no internamento levantei a vista aos céus e disse a Deus: “Senhor deixa-me viver! Ainda tenho dois trabalhos para publicar. Um desses com 100 páginas.”. E o Pai, senhor da vida e da morte, me mandou contar isso aqui, dizendo que não adianta correr, como eu fiz, pois a vida exige reflexão e calma.

VIVA A VIDA!!!!!!

Um texto escrito depois de ter chegado do hospital, onde estive por sete dias ou quase isso, me recuperando daquilo que os meus ilustres colegas chamam de "insulto neurológico". Comente o leitor.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

João da Minhoca, Zé Lezin e Bico de Ouro

Voltei agora (domingo à noite) de uma comemoração dos 42 anos de formado. A minha turma de medicina, considerando que o tempo já vai longo e que vez ou outra fenece um colega nesse carrossel da vida, decidiu assinalar a data magna a cada dois anos, fazendo uma festa maior nas chamadas datas fechadas. Assim tem sido! O grande “Biu Preto”, no encerramento da temporada, não descuidou e se pronunciou dizendo que os mortos já estão fazendo o mesmo no reino dos céus, isto é reunindo os colegas a cada ano, degustando a mariscada dos costumes e tomando a cerveja bem gelada dos hábitos corriqueiros. Depois precisou de lenço para exugar as lágrimas. 
Estiveram presentes 40 colegas, gente como o grande “Baré” e o nosso inquieto “João da Minhoca”, o “Jia” e o “Catarro”, sem falar na presença, também, de “Pluto” e do grande “Quase-Lindo”, ambos dados ao difícil mister da escrita. Impossível esquecer o “Fofa”, que nesse largo período de almoços, jantares e estadias em hotéis de luxo, nunca hesitou em comparecer. Faltaram alguns que há muito não chegam perto das comemorações. O “Chupa-Osso” lá não foi, o “Mongrô”, do mesmo jeito, mas o conhecido “Sulamita”, com suas digressões sobre o SUS, estava por lá e ilustrou o convescote. O nosso constante “Toinho da Cachorra”, também, prestigiou o momento. Fez falta o colega com cognome diferente: "Iracema". Homem hoje mais das finanças e das aplicações, que das incursões na seara da imunologia.  
Na hora do chorinho, a menina encarregada dessa velharia toda reuniu os antigos concluintes e prometeu que um passarinho sairia da máquina fotográfica, contanto que todos se juntassem e posassem para um retrato. Depois, venderam mais de 20 cópias. O ponto alto do encontro foi Getúlio Cavalcanti fazendo uma serenata de frevo, cantando sucessos pernambucanos desde a década de 20 até o hoje dos dias. Mas, antes dele, o “Zé Lezim” da Paraíba, fez um show que arrancou ruidosas gargalhadas da plateia. Ficaram algumas das piadas, mas uma dessas selecionei para o leitor atento: 
  •  "Na venda de seu Miro o empregado Vicente quase engole um rato. Ficou com o bicho na garganta, segurando pelo rabo. Nisso levaram o penitente ao médico, que tinha saído e o seu lugar estava ocupado pelo doido da cidade. O maluco viu o caso, estudou a situação e passou a receita. Não conseguiram despachar em cinco farmácias a que compareceram. Estava escrito: Passar queijo ralado na beira do cu. Comprar uma ratoeira e armar na junção das bundas. Comprar um gato e deixar de plantão no rabo do paciente." 
  • E quando os ponteiros do relógio se juntaram, decretando o meio-dia do domingo, o restaurante abriu. Diante de Brivaldo, não hesitei: “Tudo passa, meu caro amigo!”. E ele, sem entender bem a que me referia, balançou a cabeça afirmativamente. Antes nos reunimos para conferir os retratos e assistir a derradeira mensagem, a da despedida, “Biu Preto”, filho de “Chico da Manola”, levantou-se e invocou os encantados no infinito das coisas. Chamou nome por nome, ajuntando o apelido de alguns: “Bico de Ouro” e “Cachorrão” estavam no comando da turma dos encantados, dançando e frevando, comemorando também as mais de quatro décadas de convívio. As meninas da Bravo, a empresa de eventos, lideradas por Mônica, quase nos fizeram chorar outra vez, com palavras nascidas do coração para nos homenagear.
E mais uma festa se passou, um ano rodou na escala da vida e a esperança de novos encontros ficou.

(*) Uma crônica dando conta de um final de semana na santa paz do Senhor; tempo de lembranças dos começos e hora das reflexões. Texto que ofereço a Zília Codeceira, leitora atenta do espaço, que vendo a demora na atualização do texto, ligou e assinalou que já esperava desde ontem a nova crônica. Ótima companheira das digressões literárias. Comente o leitor no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com