segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Mulher casada

Chegou e foi saudado como uma inesperada surpresa, mas, mesmo assim, apresentado ao senhor que à mesa dividia com ela o caldinho de mariscos bem temperado e a cerveja mais que gelada. Apertou a mão alheia e falou o óbvio e ululante: "Muito prazer!" Não tivera prazer algum, pude concluir depois! Mas, foi ela quem providenciou a cadeira em mesa vizinha desocupada e mandou que tomasse assento, compartilhasse daquilo, de um colóquio que parecia não desejar. Desajeitado e desconfortado sentou-se, realmente, fazendo indagações aos cochichos: Este cidadão é aquele de ontem? O que faz você aqui na beira da praia, com uma pessoa estranha? Respondia como podia, dando evasivas ou reafirmando posições: Um amigo meu! Sou uma mulher séria, nada pega! O companheiro de ocasião, diante da emergente rejeição, deu um tempo, foi ao Orelhão, sem considerar o celular à cintura!
Eu tinha chegado há alguns minutos, apenas e me sentara sozinho, sem companhia, que fosse, para o meu exercício mais que ocioso de admirar a imensidão atlântica nesse tempo das férias. Assim, não me restava outra coisa senão ouvir a conversa e compreender a perplexidade dos circunstantes ao lado. Afinal, escrevo sobre o cotidiano da vida, sobre os atos e sobre os fatos protagonizados pelos penitentes deste mundo de Deus! Aliás, o dono do estabelecimento de beira-mar, antecipando os meus desejos, verbalizou minhas intenções.: Já sei! Vai escrever um artigo! Em determinado momento, no entanto, fiquei tenso, confesso, diante da pergunta do marido incomodado: Você me traiu? Diga sim ou não! E a mulher, com ares de superioridade, respondeu: Não! Não traí! Essa negativa dupla parece ter selado a fidelidade e assegurado a confiança.
A conversa, porém, foi ganhando força e o diálogo esquentando, até que a frase de efeito foi dita e eu tive que me retirar, para não assistir ao desfecho: Boca de mulher casada tem gosto de sangue! Levantei-me com discrição e fiz um cumprimento de despedida, deixando-os a sós, com íntimos votos de que recobrassem a santa paz dos justos. Fui matutando a propósito, fazendo da sentença verbal o mote de minhas digressões. É que o povo tem, por vezes, tiradas assim, mais que interessantes, com sabor de filosofia popular como essa, a do animal ferido, tomado pela preferência diferenciada da fêmea, cuja escolha premiara a outrem e o deixara de lado, desprezado, pois.
A mulher, que nada tinha de bonita, conhecia, no entanto, desejos assim, plurais, nessa singularidade, nunca inteiramente explicada, da existência humana, que faz os semelhantes se atraírem, mutuamente, para a completude do sublime: o amor. Dois dias depois cheguei por lá, pedi um caldinho de aratu e me sentei, aguardei a conversa habitual do Getúlio, especialista nesses convívios de praia, cansado já das cenas desenroladas à sua frente pelos atores do dia a dia, protagonistas das cenas da vida. Lembrei até que de outra feita, uma senhora de idade avançada ali sentara acompanhada de menino novo, cheirando a leite. Beijaram-se tanto que correram o risco de rasgar os lábios e quando a pobre penitente estava ébria, o companheiro surrupiou-lhe o dinheiro da pensão previdenciária, recebida às custas de muito trabalho do finado marido.
Resultado, o nosso diretor do tempo das férias - o Getúlio - foi levar em casa a pobre mulher, rejeitada e triste. Mas, no caso em particular, contou, tudo terminou às mil maravilhas, com a solidariedade de ambos diante da criatura amada em dobro, a merecer elogios e enlevos ao espírito.
É! A carne é fraca, disse o Mestre, antecipando o perdão aos pecados todos dos que estão compartilhando desse banquete enorme, permeado por labirintos de ignorados caminhos. Alamedas dos desejos, sofrendo, às vezes, a metamorfose do, inteiramente, platônico. Desejo felicidades, pois! Que o nativo, vindo à luz sob os coqueirais de Pau Amarelo, possa dizer como o poeta: O teu nome é um poema nas rimas das minhas distâncias!
 
(*) - Um texto escrito há muitos anos, quando passava férias em Pau Amarelo e anotava cenas do cotidiano e diálogos, nem sempre amistosos, em meus alfarrábios reunidos na memória das minhas décadas.