quinta-feira, 19 de julho de 2012

A Derradeira Lição

Este salão nobre do Centro de Ciências da Saúde foi escolhido, propositalmente, para acolher a solenidade de hoje. Aqui comecei o meu curso médico, ouvindo a primeira aula, na voz firme e forte, do Prof. Hélio Mendonça. E aqui eu encerro, formalmente, a minha carreira docente, depois de um percurso, incluindo a graduação, de quase cinquenta anos de bons convívios e de boas convivências. Claro que igualmente depois de muito stress e de muita inquietação. Na vida nem tudo são flores, é natural!



Nesta Casa, que é a de Octávio de Freitas, eu aprendi muita coisa, como aluno e como professor; muita coisa da fisiologia humana e muita coisa também da patologia. Mas aprendi, sobretudo, a importância da integralidade do homem. O ser humano não pode ser visto apenas como um conjunto de aparelhos e sistemas, os quais reunidos constituem o organismo.

Antes este ser humano, que veio dos mares, no pensar evolutivo de Darwin ou que foi criado por Deus, a sua imagem e semelhança, como acreditam os criacionistas, é portador de um psiquismo especialíssimo e depende de um equilíbrio entre seus conflitos e suas soluções de compromisso, para ser feliz e viver plenamente. É também um ser que precisa se adequar ao meio em que vive e aos semelhantes com os quais se relaciona. Só assim poderá ter uma qualidade de vida satisfatória e se considerar feliz. Isso, às vezes, é difícil!

É lamentável que as lideranças desse País continental, nunca tenham atentado para as necessidades básicas de seus habitantes. E permitam que uma mesa como aquela que vi na cidade de Palmares, seja posta com o arroz acompanhando o rolete de cana, que fazia o papel da carne inexistente. Ou nunca tenham atentado para a estatura dos pobres, como a daqueles moradores do Beco dos Casados, em Santo Amaro, nanicos urbanos; gente carente de tudo, de proteínas e de vitaminas, de afeto e de amor. De tudo!

Eram cópia fieis daqueles seres nanicos vistos por Nelson Caves em Água Preta e noutros municípios da Zona da Mata Sul. Um lugar no qual bem antes de Cabral desembarcou Vicente Yañes Pinzon e tendo visto índios de tal forma corpulentos e fortes, que os comparou aos germânicos, deles teve medo e bateu em retirada. Pois é, ali mesmo, naquele massapé garanhão, do dizer de Gilberto Freyre, a colonização portuguesa implantou a monotonia de um vegetal só, como está em Casa Grande & Senzala.

Ou ainda personagens que vivem e sobrevivem em ambiente contaminado e insalubre. Gente como aquela do Sítio dos Quintas, no Bonsucesso, em Olinda, onde fiz a pesquisa de minha dissertação de mestrado e que eram figurantes urbanos da injúria humana causada pela esquistossomose mansônica. Pessoas vindas da Mata, mais do que dos sertões esturricados, porque o sertanejo pouco migra e é antes de tudo um forte, no dizer de Euclides da Cunha. O matuto não, sai de sua terra e vem tentar a vida nesses torrões citadinos, hostis, adversos, em favelas e palafitas. Morar como moram os bichos! Vem se “amocambar”, disse Mário Lacerda de Mello.

A epidemia de Cólera, que chegou pela cidade de Bezerros, só se mantém agora como endemia, porque não existe saneamento no Recife e muito menos nos municípios do interior. O mosquito Aedes aegipty, que hoje responde pelos casos de Dengue, entrou na década de setenta pelo porto e ninguém atentou para os meus reclamos na Comissão Estadual de Dengue, onde representava a Universidade; Comissão que se reunia extraordinariamente para analisar as informações trazidas do centro do poder, por um emissário que foi atender um telefonema e nunca mais voltou.

Essas coisas podem ser cômicas, mas são antes de tudo trágicas, porque dizem respeito ao homem, ao próximo, que deveria ser alvo do amor de cada um de seus semelhantes. O que se tem neste Brasil de tantos contrastes, são os poderosos sentados em gabinetes finos, elegantes e os paupérrimos largados à própria sorte, sem acesso à moradia, à educação e à saúde. Isso desde a colonização. Foi o que vi a vida toda e foi contra esse estado de coisas que me bati sempre que pude. A caridade não é a esmola que se dá no semáforo, mas o amor que se tem pelo próximo e o cumprimento estrito do dever. Nisso reside a alteridade.

A humanização da medicina, como tem sido defendida, é uma prática que exige urgência. O médico precisa conhecer a sociologia e a antropologia, ter noções básicas de filosofia e de história; de história social, sobretudo. O médico deve entender as razões ecológicas da doença, os motivos ambientais das agressões patológicas. Os habitantes de Itamaracá, que me falaram da caça sistemática da raposa, para que degustassem a carne com cachaça, deslocaram a Leishmaniose da intimidade silvestre e incluíram no ciclo epidemiológico da parasitose o cão. Passaram, então, claro, a adoecer com mais frequência.

Sempre chamei a atenção em minhas aulas para o compromisso social do médico, daí o meu apelido de Justo Veríssimo, um personagem de Chico Anísio, que ao contrário do que eu defendia, era contra – rigorosamente contra – pobre. E chegaram a dizer, a uma secretária do Departamento, muito fiel a minha pessoa, que gostavam de minhas aulas, mas como era tudo muito ligado ao social, pelo que deram-me esse apelido. Foi por isso, porque passei a ter uma visão mais larga da medicina, que criei o Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social, o NUSP de meus sonhos e dos meus olhos, como disse certa vez um dirigente universitário.

Lembro que na década de oitenta passei a frequentar o Seminário de Tropicologia, a convite de Fernando Freyre e ali observei o quanto era salutar a convivência dos diferentes. De médicos e de biólogos, de engenheiros e de arquitetos, de antropólogos e de sociólogos, além de artistas plásticos, de escritores e de poetas. Ou de geógrafos e de historiadores. Essas contribuições estão hoje reunidas em diversos números dos Anais do Seminário de Tropicologia e constituem peças do mais alto nível para pesquisadores de variadas vertentes.

Tive na Universidade mestre notáveis, professores do mais alto nível, dos quais recebi não apenas os ensinamentos de Hipócrates ou aqueles de Esculápio, mas aprendi com eles, também, a não desistir nunca e assim venho fazendo, cumprindo o desiderato de meu existir terreno. Lembro das aulas de Ruy João Marques, eruditas exposições de um mestre de muitos saberes, a quem reverencio aqui, porque está completamente esquecido. E Salomão Kelner? E Amaury Coutinho? Ou um Fernando Figueira e seu irmão Antônio. O primeiro, um dos maiores defensores da medicina integral, do ataque às causas sociais como razões causais da doença.

Mas, convivi, de igual forma, com servidores do mais alto valor; valor moral e de seriedade, mas sobretudo de fidelidade. Dentre esses, fiz questão de incluir na Comissão, que há pouco me introduziu no recinto, o nome de Mariza Andrade, que foi – posso dizer – a mais fiel secretária que encontrei, até os dias de hoje, quando ainda me auxilia em certos momentos de precisão de uma coisa ou de outra. Há outras que estiveram muito perto de mim, como Lúcia Venceslau, Luzia ......., Elze Suely, Roberta Japiassu e Edione......

Aqui,nesse convívio diário de Vice-Reitor e de Reitor, devo muito, em termos de aprendizado humano, a figuras do porte de um Mozart Neves Ramos, de quem fui o substituto eventual e que só não está aqui hoje em função de uma viagem que precisou fazer ao exterior. Devo, igualmente, a Amaro Lins, que me deu grandes lições de simplicidade e grandes ensinamentos de generosidade. Desconfio até que ele seja discípulo do padre Edvaldo Gomes e dele recebeu a cartilha de Dom Helder. Anísio e Silvio são dois amigos que já tinha antes e vou continuar tendo; amizade que no primeiro caso nasceu de pouco, mas no segundo vem dos anos de calças curtas.

Cumpri a minha trajetória toda na Universidade, sendo promovido às custas do mérito. Entrei a convite do professor Ruy João Marques, porque era assim que se tinha acesso à carreira acadêmica. Mas, depois, promoção por promoção, sempre fui devidamente submetido a concurso. Foi assim quando defendi a minha dissertação de mestrado e fui elevado à condição de professor assistente e foi assim, depois, quando me submeti a uma comissão examinadora que me promoveu a professor adjunto. O mesmo se diga de meus cargos administrativos. De Chefe do Departamento de Medicina Tropical a Vice-Reitor e Reitor temporário. Passando pela Diretoria do Centro de Ciências da Saúde, que talvez tenha sido o mais prazeroso de todos os cargos.

Foi nessa direção que fundei o NUSP, que reuni vezes e vezes professores de variados ramos dos saberes e com o auxilio deles desenhei a estrutura do Núcleo. Foi ai que um dirigente universitário, tomando conhecimento de que havia um convênio com o Governo do Japão, me chamou e disse: “Geraldo! Acabe com essa história de antropólogos e sociólogos, esse dinheiro vem para o Hospital!”. Não veio, porque a proposta não era essa e nós fomos implantar e implementar o Sistema Único de Saúde em Macaparana, Brejo da Madre de Deus e no bairro recifense do Ibura, com bons resultados.

Hoje, fora desse convívio propriamente acadêmico, não perdi o entusiasmo e espero não perder tão cedo. Por isso estou no Conselho Estadual de Cultura, no qual convivo com gente da melhor estirpe. Foi dali que sai para assumir uma cadeira na Academia Pernambucana de Letras; a cadeira de meu pai, numa noite de muita emoção.

(*) - Publico o discurso que fiz quando recebi o título de Professor Emérito, para mim muito honroso.  O texo é reproduzido pelo jornal virtual Besta Fubana