segunda-feira, 7 de março de 2011

Cornélio: o pacato cidadão.

Nunca se soube o nome daquele homem, senão o seu apelido, em função do abalo moral que se imaginava viver, tal o seu dia a dia, o seu conturbado cotidiano, com Dona Mirandolina saindo todas as tardes, enfeitada e cheirosa. Seu Cornélio era figura conformada, amava a mulher de qualquer jeito e de mais a mais os boatos não tinham confirmação, nunca tiveram. Mas, dizem isso, que o marido é o último a saber. E assim ia levando a vida.
O diabo é que ultimamente um doido, seu vizinho e cunhado de Zé Índio, conhecido pelo apelido de Dedé, vivia se metendo pro lado de Dona Mirandolina, conversando potoca logo cedo, depois que o dia amanhecia. Um danado como aquele não podia fiar uma conversa diferente, era um abestalhado na forma da lei, embora metido a brabo. Metido não, era brabo de verdade. Contava-se que na velha zona do baixo meretrício, deu porrada em duas guarnições da Rádio Patrulha e ainda mandou que chamassem outra, a terceira, quando foi dominado afinal.
Tinha estado no Rio de Janeiro e dali viera com um gingado todo especial. Falava diferente, usando à semelhança dos cariocas, o artigo antes dos nomes. Isso encantou à Dona Mirandolina! A fez ficar cativa do papo furado de Dedé. As histórias dele eram mirabolantes realmente! Ninguém tivera a ideia de coletar as fichas usadas nas lotações do Rio, recolhendo-as de volta para o próprio bolso. Fazia isso com borracha de chiclete envolvida na ponta de um graveto. O chicle arrastava o que podia de volta e o cobrador, no caso o próprio Dedé, tirava em dinheiro o apurado em sua manobra. Dona Mirandolina, mulher nos seus 45 anos, ia à satisfação inusitada. Repetia-se a mesma narrativa duas, três vezes, até quatro.
Numa certa noite, o homem desapareceu. Procura aqui e procura ali, ninguém o encontrava. Bateram tudo, hospital e necrotério, policia e prisão, locais de sua habitual frequência, becos e vielas e nada. Botaram no programa de rádio e com isso localizaram o fugitivo. Estava acantonado na casa de uma mulher, Dona Confeito, cafetina antiga, dona de lupanar, amigada com um tal de Zé do Gato, que era o seu gigolô, figura de muitas passagens nas dependências do já se chamou “Sorbone da Rua da Aurora”, o buque da cidade, o recolhimento noturno dos desordeiros do Recife.
Seu Cornélio continuava a sua vida pacata, acordando cedo, antes que o sol raiasse no horizonte das coisas, para a varredura da frente de casa. Depois, ficava encostado na mureta da vila em que morava, matutando na vida, refletindo sobre os seus dias e as suas noites. As noites, porque o seu vizinho Dedé decidira dormir em sua casa e mais do que isso, em sua cama. Era demais para ele! Não podia suportar tanta desonra! Uma forma de vingança, porém, passara em sua cabeça. Dormiria sim, mas com ele também, os três na cama. E assim foi! Conta-se que à noite, quando começaram os chamegos, Seu Cornélio não podia perdoar e entre os dois se meteu, impedindo a consumação do ato.
Outras noites se passaram com esse frenesi a três, sem que o Dedé nada conseguisse – é o que se diz –, preservando-se a honra já tão abalada de Cornélio, o pacato cidadão.