terça-feira, 24 de setembro de 2013

Uma prática vazia

Tenho confessado, ultimamente, a minha profunda e crescente decepção com a criatura humana. E de outros ouço a mesma coisa! Vejo o egoísmo e o orgulho presidirem as cenas do cotidiano, como se o homem  estivesse mesmo brutalizado, embora  os avanços, a contraponto, tenham chegado para prolongar a existência neste planeta, tão devastado pela incúria do ser que foi dotado pelo Criador de inteligência e talento. De nada disso parece depender o comportamento em relação ao próximo, tão próximo, às vezes, antes o contrário. A sociedade contemporânea contempla os seus integrantes com um valor que depende da riqueza acumulada ou do poder de que se dispõe.

A escritora Lya Luft, em artigo na revista Veja – Os Imutáveis Sentimentos –, aborda o problema de forma passageira, mas comenta o fato de sermos defensores da ética nas relações e nos convívios, porém, de hábito, fazemos do discurso a prática vazia desse necessário exercício do dia a dia. Nos mais simples dos encontros assistimos demonstrações claras de tudo isso. Nega-se, por exemplo, na viagem rápida dos elevadores, o cumprimento amistoso, a conversa fiada no deslocamento veloz desses veículos verticais. E nas relações de amizade ou naquelas dos vínculos parentais de igual forma. Ninguém para e ouve de seu interlocutor as inquietações do espírito. É cada qual por si! E não adianta falar, comentar e recomendar, o individualismo é a tônica do moderno.

Esquecem que o metal é vil e o poder efêmero. Tudo passa, mais dias ou menos dias. Ou esquecemos que a criatura, seja rica ou seja pobre, poderosa ou não, é frágil, capaz de viver momentos de satisfação, mas, também, horas de desilusão e tempos de embotamento do espírito. Exige-se antes um comportamento forte e imbatível, uma superioridade que exceda o comum das coisas. Isso faz sofrer e padecer. Vive-se, então, no palco das ficções! Há ocasiões nas quais um ombro amigo, uma palavra de consolo ou um afeto qualquer pode reacender a chama da vida e estimular a luta, as decisões e as posições. Até a escuta atenta das preocupações tem a capacidade de sanar as dores da alma. Por tudo isso, as confissões lidas na Internet tentam suprir a falta de enlevo nos convívios. A frieza do inteiramente virtual, no entanto, nada tem de parecido com o calor da convivência!          
Os poderosos e os detentores das fortunas pecuniárias são, algumas vezes, tomados pela empáfia, desprezando amigos e relegando a segundo plano a lealdade ou a fidelidade de companheiros dantes tão aproximados, interpretando comportamentos assim – os da lealdade e os da fidelidade – como resultantes da ação que tiveram ou têm sobre os antigos colegas de trabalho ou sobre os parentes e aderentes. Na realidade, o homem que é fiel a seus compromissos traz na alma uma marca de caráter, cujo aprendizado está no berço e não nas aquisições do cotidiano dos convívios e das convivências. Ninguém mexe com esses caracteres, não impõe e não sugere. Esquecem que o poder é efêmero e falece com o passar do tempo, que sinaliza os rumos do inteiramente passageiro ou transitório.    
Até o país tem me decepcionado. A impunidade campeia e quando não, há quem mande reformar um hotel para o transformar em cadeia dos poderosos. Valei-me Senhor!
(*) O leitor pode comentar o texto no espaço mesmo do Blog ou para o e-mail: pereira.gj@gmail.com      

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O rival e o boxe

A sonoridade do interfone é típica e indica sempre que o porteiro do prédio – este profissional novo na roda das coisas – deseja falar com alguém da casa. Ouvi a campainha do equipamento, em tudo contemporâneo, e quando a moça que trabalha por cá disse: “O Sr. Moisés? Um momento!” E me indagou se podia mandar subir a pessoa. De imediato raciocinei que se tratava do meu fraterno amigo de infância Moisés Diniz, irmão de Mozar – Mozar sem o “t” do compositor clássico –, figura das mil estripulias. Inventor do motel móvel, pois que a sua Kombi se transformava, a cada noite, em lugar reservado aos amores emergentes de seus amigos, em tempos de vacas magras. Pois que suba o homem! Mas, chegou acompanhado de um funcionário do edifício, Alonso de prenome, e eu, admirado com aquela medida de segurança, indaguei depois a razão: “Achei que era um profeta. E não ia deixar o senhor sozinho com aquele homem da barbona!”. À porta de casa o recebi, com toda pompa e circunstância. Fazia um bom tempo que não nos víamos e o abraço foi diretamente proporcional à distância em meses ou em anos.
Sentou-se à varanda e começamos a lembrar os bons tempos. As nossas idas e vindas à Festa da Mocidade, o pastoril do Velho Faceta e as pernas das pastoras, sobretudo as coxas roliças da mestra e o busto protundente da contra-mestra ou o jogo de azar, onde se perdia o dinheiro curto da mesada. A pelada na rua Padre Miguelinho, sem que soubéssemos – sequer suspeitássemos –, quem era o sacerdote, além de ser o verdadeiro patrono do bate-bola dos sábados. A briga de Moacir com Nino, numa manhã de carnaval e tantas coisas mais. De repente, levanta-se o meu interlocutor de ocasião e procura nos bolsos um objeto que ignorava o que fosse. Tira um relógio da marca Mondaine, a corda, antigo e modesto, verbalizando o seguinte: “Este relógio você me pediu que consertasse! Eu consertei, realmente! Mas, como já faz 40 anos, nem sei se lembra dele!”. Claro que lembrava, ganhei de meu pai no aniversário dos 10 anos de idade. Mas, não descuidei e disse: “Mas, Moisés, 40 anos para consertar um relógio?” E ele: “Pois é! E está funcionando a contento!”.  Não precisa dizer que o velho mostrador do tempo parou e agora para todo o sempre. E não precisa dizer que desaconselhei a minha mulher a pedir ao profeta para consertar, também, o seu relógio: “Você chega aos 100 e o relógio não volta!”.
O homem tem história que o diabo duvida de costas, numa sexta-feira santa à noite, no portão do cemitério. Lembra de toda gente, do nome e do sobrenome, do jeito de ser e de andar, das fofocas e dos defeitos, das qualidades também. Lembra de Zé Ventinha, um camarada com uma úlcera crônica no nariz, que falava fanho – coitado! – e era ruim da cabeça. A meninada afoita passava junto do pobre homem e puxava o paletó. Era se preparar para a carreira. Uma das vezes eu corri tanto que terminei rodando o quarteirão inteiro. E Sabará? O bêbado da rua – toda rua tem um bêbado – que cantava repetindo o gesto do poeta: “Tornei-me um ébrio/E na bebida/...” Eu saia de casa para as aulas carregando o livro de Anatomia, um volume enorme e ele: “Quando eu era estudante, ia na frente e uma carroça de cavalo atrás carregando os meus livros! Esse ai leva um livro só!”. Lembrou que sonhara, recentemente, com uma crônica a ser escrita por mim, na qual afirmava que a segurança nos anos de menino era tanta, mas tanta, que o guarda noturno que tínhamos era um anão. E era mesmo! Andava com um cassetete do cão, pra cima e pra baixo, apitando e vigiando.
Falou da luta de boxe que promoveu, certa vez, reunindo um rival que eu tinha na rua, interessado numa namorada minha e eu próprio, inteiramente virgem de qualquer experiência em ringues e outros lugares assemelhados. O adversário era um gaúcho renitente, morador novato da rua, mas logo, logo, encantado com a menina que  gostava de ouvir, se balançando, os melhores momentos de Núbia Lafayete ou a sonoridade de Dalva de Oliveira.  Resultado, ganhou a disputa e levou a moça. Mas, não casou e dela não sei o destino. Pra onde foi e o que fez da vida!

 
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sábado, 14 de setembro de 2013

Um enorme vazio

   
Há um enorme vazio em meu ser: a minha mãe encantou-se. Desapareceu para sempre! A minha orfandade completou-se! Parece existir um buraco atrás de mim, como se as referências pessoais estivessem perdidas. Não tenho mais os meus pais dentre os viventes deste mundo. Esse é o destino de toda gente, mas a perda é uma ruptura grande. Rompe-se, de um momento para o outro, esse elo parental, que serviu para reunir a constelação familiar. Não há mais o telefonema matinal, antes das 7 da manhã e a indagação do hábito: “Alguma novidade?”. A novidade, minha mãe, é a pior possível, a sua morte me deixou esmaecido.
Uma via-crúcis de quase de cinco anos, em lento e progressivo padecer, tudo sob a vigilância da filha, Fátima de prenome, que deu grande parte da vida pelo bem estar da mãe. Dias e dias nesse sofrer, sem ganho, porque a condenação à imobilidade chegou logo e ela foi se entregando. Uma professora que fez a opção doméstica, que criou seis filhos e acompanhou o marido dia após dia em sua doença, sem reclamar. Mulher saudável, sem doença, senão uma demência senil que a condenou, no fim da existência, a viver sem saber exatamente as razões.
Uma lágrima que rolou pela face em certa ocasião, foi vista por mim como uma forma de expressar a sua satisfação com a minha presença. Ou o fechar e abrir dos olhos, significando que estava sabendo de minha chegada. Formas, talvez, de se enganar, diante do inexorável das coisas. No derradeiro dia, chamado para a despedida, beijei-lhe a têmpora, mas o gelo da morte mostrou que estava decretado o fim. Ainda pude agradecer as noites mal dormidas, os dias devotados a mim e os momentos em que me acolheu em seus braços. Agradecer, sobretudo, os esforços para que estudasse, tivesse uma profissão e vencesse. Ninguém vence sem ter uma mãe na retaguarda.
Eu fui um menino difícil, levado da breca, dizia a minha avó. Complicado para aprender matemática, a conta de dividir principalmente. E ela sempre muito paciente suportou tudo, inclusive as vezes em que subia no



muro e me arriscava a cair. Pedia que descesse dali e o fazia com uma calma tão grande que sensibilizava. Foi a mais devotada de todas as mães, a mais dedicada e se hoje sou alguma coisa, escrevo e sou lido, devo a ela.

(*) - Texto publicado hoje, 14 de setembro de 2013, no Jornal do Commercio, do Recife, ainda a propósito do encantamento de minha mãe para o infinito das coisas. O leitor que desejar comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para o e-mail pereira.gj@gmail.com  



quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A Igualdade Perdida

Fotografia amarelada essa, de mais de trinta anos pra trás! Cena da existência que o tempo cuidou em desbotar, apagando os sentimentos, as vivências e as convivências! Lembro, muito vagamente, dessa visita ao horto, dos passeios por ali, pelas alamedas de Dois Irmãos, eu e alguns dos meus companheiros dos verdes anos, fazendo uma exploração do zoológico, numa manhã de sábado ou de domingo! Onde estarão os amigos do retrato, meus colegas na rua em que morava? Um deles não consigo, sequer, identificar, os outros, porém, são de nome e sobrenome, em tudo, bem lembrados! Raramente os vejo, no dia a dia dos meus caminhos, inteiramente diversos das estradas desses velhos conhecidos! Não sei, entretanto, como os encararia agora, se perdi ou se não perdi a intimidade do antes, pois, como disse Luiz Fernando Veríssimo: “Com o passar do tempo a gente perde a igualdade que tinha na infância e na juventude.” E é isso mesmo! Mudam os convívios e a proximidade se vai!
Anos e mais anos contados em conversas que foram fiadas na beirada das calçadas! Histórias e estórias, tantas vezes, contadas e recontadas sobre as experiências dos começos, planos de vida nascidos assim, numa roda qualquer! Idas e vindas ao cinema nas noites de domingo, comentários sobre o filme, com enredo ou sem enredo que agradasse. Dramas de amor expostos na tela em roteiros compartilhados, sempre, por adolescentes em flor, jovens que pratearam, agora, os cabelos e vergaram o corpo ao peso do tempo vivido. Jogos de botão em torneios vespertinos, antecipando outros, os de futebol, com o time da rua bem arrumado e bem calçado, perdendo inúmeras vezes, mas sustentando o espírito desportivo o tempo todo. Outros torneios, noturnos esses, de dominó ou de baralho, com a canastra presidindo os interesses nunca pecuniários da meninada. E às dezenove horas, em ponto, o compromisso da novela: “Jerônimo - O Herói do Sertão”. Lúdicos personagens das noites de menino!

 
Passeios de bicicleta em torno do quarteirão, voltas e mais voltas, contanto que a aproximação vencesse a resistência da moça e o namoro pudesse começar ou recomeçar. Sete vezes rompido e sete vezes renovado, o amor dos inícios perdeu-se nas brumas do tempo ou dissolveu-se, simplesmente! Outros passeios e outros amores feneceram, também, na idade dos sonhos e dos devaneios, levando os afetos e impedindo os afagos. De mãos dadas pelas ruas, escondidos de pai e de mãe, com a cumplicidade dos amigos e das amigas, cumpria-se o preceito religioso e se pagava os pecados, depois, visitava-se o centro urbano da cidade, tão diferente dos dias de hoje, pra assistir um filme qualquer. Na face, certa vez, duas lágrimas rolaram lentas, diante do encantamento com a poesia e a música: “Por que não páras relógio/Não me faças padecer/...” E essas rupturas mataram as intimidades, do mesmo jeito! Ninguém pode mais se encontrar e exercitar os sentimentos, por mais intensos que tenham sido!
 
De tudo isso sobraram os retratos, poucos! Fotografias de uma época tão distante já, de amizades e de proximidades que não existem mais, de intimidades agora perdidas, completamente, de novos estranhos restritos aos cumprimentos formais, somente! Encontros casuais, efêmeros, sobretudo, nos quais a , quase, indiferença do gesto qualifica o momento. E o observador, que de longe acompanhasse tudo isso, jamais imaginaria os vínculos do pretérito, laços de tanta fraternidade que se romperam à força dos anos! Ando pelas ruas do bairro, o mesmo em que morei dantes, sem notar a presença dos companheiros, dos antigos colegas ou dos velhos amigos. Faço uma retrospectiva daquelas convivências e sei de alguns encantados, já, no infinito das coisas, gente que ao pó retornou, cumprindo o desiderato da vida: “E ao pó voltarás!”.
 
Eis a metamorfose do tudo e a compreensão do nada!
 
 
(*) - Um texto descoberto nos alfarrábios, agora virtuais, em discos e mais discos, vistos e revistos, à cata de outros textos para comporem mais um livro nessa minha trajetória do inteiramente literário. A minha gratidão aos que escreveram e me renderam a solidariedade dos sentimentos, dos pêsames pelo falecimento de minha mãe, de quem hei de me lembrar por anos e anos. O leitor que se agradar da crônica não hesite, comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira.gj@gmail.com