sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Cerejeiras Desfolhadas

Ainda é madrugada em Tóquio, descubro agora, nesta hora da antecipação de meu despertar, de um levantar mais do que precoce. E um vento frio, gélido, quase, vindo das montanhas distantes, sobretudo da enormidade do Fuji, assobiando a melodia de todos os zunidos, açoita as árvores e parece espantar a noite. Executa, em verdade, a lúgubre musicalidade do recolher dos fantasmas, com o clarear do dia, aos porões dos castelos abandonados, onde antigos casais enamorados, às escondidas dos censores, amaram-se, perdidamente! Ou anuncia, em realidade, o nascer de mais outra manhã de sábado, nesta prolongada estadia em terras nipônicas.
É hora, também, de aproveitar o momento, de se deixar mergulhar, com a integralidade do ser, nas reflexões do Eu, para que não se perca um minuto, sequer, da existência humana, tão efêmera, já! À falta de um interlocutor, pois que todos dormem, no hotel e fora dessas acomodações transitórias, exercito o monólogo ou pratico o diálogo virtual do homem só, que enfrenta indesejadas vigílias. Ensaio, pois, perguntas ao léu e eu mesmo as respondo, cumprindo o destino das insônias, de conotações orientais, agora. Fazendo, então, da vigília a tela da minha única pintura, a qual vou emoldurando assim, com as minhas expressões de neófito, sempre, na literária arte de tomar a inspiração e transbordar o coração. Permito-me, dessa forma, que o imaginário ganhe as asas do lúdico mundo das fantasias e possa bailar na enormidade da criação.

Para quem os galhos das cerejeiras desnudas, ao pé de minha janela, estão dando adeus? Não imagino. Será para o forasteiro ocidental, posto em quarto de hotel, depois de se alevantar, a fazer divagações d’alma em torno da parição dos dias? Por certo que não! Ou esses movimentos largos, de braços desfolhados, mas repletos de botões, representam uma esperança de um novo florescer das cores? É isso aí, imagino agora! Com as flores de março, resgatam-se os amores e são banidas as dores para a tumba do nada. As paixões desesperadas, que se mostraram impossíveis aos olhos do mundo, vão ressurgir, espero, no emergir das saudades, sobre um arco-íris enorme de pétalas largadas ao sabor dos ares, que depois hão de flutuar à distância, em mares do sul, onde os afetos e os afagos se encontram. E as sereias, amantes do imaginário poético, abrem os braços e recebem os versos, como se fossem abraços de jovens silentes ou ósculos de maduros senhores, de cabelos prateados e de corpos a vergarem na conta dos anos, apaixonados, ainda. A nudez da sereia é diferente daquela da cerejeira – a sakura dos japoneses –, pois que dura a vida inteira e representa a utopia da beleza feminina, da cintura para cima. É preciso perseguir a utopia, buscando, porém, em cada uma das mulheres do mundo, o tanto de sereia que possuem. Ninguém se apresenta ao jogo da vida, desprovida, inteiramente, desses atributos míticos. Aos olhos de cada um emerge a beleza, sempre. Basta olhar e ver.

E numa dessas nuvens de agora, na madrugada de Tóquio, flutua, entretanto, o poeta, exercitando o verso e arrematando a rima, mais e mais. Inspirando-se no porvir muito próximo das cerejeiras, a florescerem na largueza urbana, vai buscando as cores que marcam os sentimentos todos. Lembra-se do lilás e vincula a mansidão do tom à nostalgia das perdas, sentidas, mas aceitas, enfim! A conformação das rupturas, pois. E de logo vem à mente o amarelo, do ouro que reluz, trazendo de volta a esperança de encontros e de reencontros, do rever, então, de certas faces dos outroras ou de transbordantes carícias, resgatadas, então. Do vermelho, tira o fervor, com o qual um dia amou, loucamente, esmaecendo os arroubos d’alma na paz do róseo, de cuja placidez nascem os carinhos. E o azul? É a tonalidade das serenidades estabelecidas, reflete, enquanto vai colorindo os céus com o grande pincel dos amores, afugentando o cinza do firmamento, ameaçador, em tudo, aos ares do mundo e aos pares, amantes em flor, apartados, muitas vezes, na hora e no momento dos amplexos. O que dizer, todavia, do preto? É a ausência de cor, pensou o poeta, a falta completa de esperanças, a entrega do homem às frustrações da vida! Dessa forma, estão as criaturas que acusam os outros por seus fracassos, creditando a terceiros as próprias incapacidades do existir humano. Preenchem o dia-a-dia com a ocupação alheia, julgando o próximo, acusando o semelhante e descuidando de si, sem atentarem para a maior das lições, a que impede a interpretação dos sentimentos, das fragilidades de outrem.
E o dia foi clareando, alumiando o tempo, afugentando fantasias e tangendo os devaneios. A realidade se fez presente e matou os sonhos. As divagações desapareceram num sopro e se aninharam nas nuvens da cidade grande e o ruído da vida voltou. E o inverno, em estertores, cede lugar à primavera em flor.
Amanheceu, finalmente, em Tóquio.
(*) Crônica escrita num sábado qualquer em Tóquio, quando estava já há 30 dias num programa de aperfeiçoamento da Agência Japonesa de Fomento. Momento de saudade e de vazio d'alma, na solidão do quarto.
Comente também para pereira@elogica.com.br