sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O Padre Macaco



Amigo meu, com o honroso cognome de Boca da Noite, sem hífen, porque as coisas mudaram e tiraram o traço do apelido desse meu chapa, fez uma ligação telefônica valendo-se do celular e disse que gostaria de ver suas histórias por aqui. É que leu o que contou o meu colega de colégio, o Fagundes, e foi lembrando de coisas do arco da velha. Primeiro precisou dizer como adquiriu o apelido. Tempo houve, contou, que o seu pai adoeceu de hepatite e foi despachado para tomar os ares de uma praia. Ele ficou no Recife, destacado para almoçar e jantar em casa de irmão muito próximo, mas com residência posta em rua distante e penosa, exigindo mais de um ônibus como condução. Uma noite qualquer, parou em casa da madrinha e ouviu dela o oferecimento: “Meu filho! Sirva-se de uma sopinha!”. A resposta veio rápida: “Minha madrinha, quem se negar a tomar uma sopa oferecida por uma pessoa como a senhora, não merece o nome de gente!”. E tomou um prato, repetiu e quase tomava outro. Passou a frequentar essa sopa noturna, a cada noite, semana após semana, ouvindo um dia a notícia que a empregada dava à toda família, antes que chegasse ao portão: “Lá vem Boca da Noite tomar sopa!”. E ele pegou o apelido, desde sempre. Mas, de tanta vergonha, nunca mais foi degustar o caldo, às vezes de carne outras vezes de frango, de legumes ou de massa.



Depois falou do tempo em que os doutorandos de medicina se apresentavam ao Exército, nas proximidades da formatura. Comigo foi assim e até pouco tempo ainda era desse jeito, pois que deixaram de receber esses estudantes no CPOR. Quando se apresentavam, então, recrutavam os que precisavam nos quadros militares. Pois eu fui numa remessa dessa e o meu amigo de todo o curso, Jia por apelido, foi chamado antes de mim para o exame médico, ao que expressei a minha admiração: “Tás lascado!”. O sargento ouviu, porque sargento ouve tudo, o que se diz e até o que não se diz, virou-se e indagou: “Quem falou?”. Não havia outro jeito, senão me acusar. Ouvi a sentença ali mesmo: “Venha buscar o seu certificado! Você não serve para o Exército!”. Eu já sabia disso, mas tinha guardado segredo até aquele dia. A verdade é que o Jia foi aproveitado e designado para a Marinha, de onde saiu com patente alta, aquela do mar e da guerra. Pois o velho amigo recebeu a farda e a espada, comprou o quepe e ajustou os sapatos pretos. Foi ver a namorada! Ou foi desfilar garboso para a moça casadoira. Ora, o Boca da Noite não hesitou e chamando um menino do lugar, fez as recomendações da pilheriada que gostaria de fazer. Foi o Jia sair da casa de sua noiva e o menino se achegar, dizendo: “Já vai dançar fandango. Não é?”. Não apanhou porque uma autoridade tão recente na força, não ia se trocar com um bestalhão do meio da rua. Mas, deu vontade!

Pior que aquela apresentação no Exército foi aquela de outro colega meu de turma, oftalmologista depois, que recebido pelo mesmo militar com as divisas de sargento, ouviu a indagação fatal: “Leia aquelas letras ali!”. Ao que respondeu: “Ali? Onde?”. Na tabuleta complementou o militar, ouvindo do meu companheiro a nova resposta: “Em que tabuleta?”. Na parede, aduziu o sargento encarregado. E o estudante, sem se fazer de rogado: “Nem a parede eu enxergo!”. Foi dispensado, porque o homem das fitas presas no braço não tinha paciência para tanta graça e tanto descaso. Era desse jeito mesmo! Parecido também com isso foi quando me apresentei pela vez primeira, depois de uma noite inteirinha acordado, para chegar ao quartel o mais debilitado possível, o médico me pesou de frente, como seria o esperado e o habitual, depois, me gozando, disse: “Pesa ele de costas para ver se aumenta os quilos?”. O soldado pesou, mas, claro, nada conseguiu a mais. O pior é que estávamos em forma, esperando os resultados, quando passa um recruta varrendo o chão e um engraçado na fila grita: “Varre! Galinha verde!”. Fomos todos presos ou detidos, recostados na parede, de costas. Eu fiquei tão nervoso, porque o tempo passava e não me liberavam, que chorei: “Deixa eu ir embora! Minha mãe está me esperando!”. Depois de muito tempo, vieram e liberaram a molecada.

A mais engraçada, porém, do nosso Boca da Noite, foi com o Dom Libório, o mesmo do Fagundes, aquele amigo que roubava o carrão do sacerdote e se danava para a rua do pecado, como dizia. É que o padre residia no mesmo logradouro do nosso narrador de ocasião, razão para uma vez ou outra merecer dos meninos o que se chamaria hoje de algumas pegadinhas. Uma forma de descontar a raiva do cura com a bola sendo jogada, por vezes, sem querer, na propriedade do sacerdote e a retenção da pelota. Pois não é que chegou um homem com um macaquinho, um macaco-prego desses que no outrora dos tempos escandalizava a mulherada. E o danado do bicho se chamava Libório. Caiu a sopa no mel para os meninos daquela rua. Pagaram o homem que mantinha o símio sob sua guarda, amarrado na corrente e mandaram que fosse fazer piruetas diante da casa do monsenhor. E o homem dizia: “Libório vai saltar de lado! Libório vai comer bolachas! Libório passa a cestinha e arrecada moedas!”. Até que chegou a hora fatal e o dono do bicho sentenciou: “Libório cumprimenta o seu xará e o cebídeo estirou a mãozinha para o cura.” O mundo quase vem abaixo, porque o monsenhor disse horrores ao dono do primata malabarista e ainda saiu de casa para dar, de cacete na mão, em todos os penitentes do meio da rua. Foi um corre-corre do cão!

Aqui pra nós: O padre parecia um macaco!

(*) - O texto lembra passagens pitorescas dos tempos de Boca da Noite e dos meus tempos também; tempos que foram, igualmente, do padre Libório, sacerdote brabo, sem paciência com as coisas do mundo e sem calma com o lúdico que presidia aquela rua de tantas lembranças. Comente neste espaço mesmo ou o faça pra pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Uma Avó Oitentona: Reflexões em torno de uma foto.


Precisei arrumar o meu gabinete! Afinal, o meu neto Pablo de prenome, minha filha Fabiana e o meu genro Gonzalo estavam pra chegar e minha mulher alertou para a necessidade de se ter a casa nos trinques. Foi uma mão de obra, francamente, esse exercício de relocar ou de realocar livros, papeis e textos dando uma certa ordem, quando a desordem facilita o meu trabalho de escrever e de reescrever os meus artigos e os meus livros. Veja só o leitor! Mas, fiz! O interessante é que no meio das minhas coisas encontrei fotos antigas enviadas por meu pai à sua irmã Dalila, em Juiz de Fora (MG). Dentre essas, uma chamou-me atenção: a de minha avó paterna. Já conhecia a pose da matriarca, mas nunca tinha parado e atentado para os detalhes. Embora tenha me detido, particularmente, na genealogia de meu neto Pablo. Talvez eu esteja me arvorando em campos alheios; sociológicos campos de outros autores e de outros estudiosos. Mas, andei meditando a propósito.
Há um oferecimento no verso do retrato. Assim: “Para Dalila, a nossa querida mãe aos oitenta anos – lúcida, vaidosa e bonita. Nilo. 8-1º-957”. Isso faz crer que fosse nascida em 1877 (talvez 1876), a 2 de julho de 1877, o ano da grande seca no Nordeste, sobretudo na cidade em que nascera e vivera grande parte da vida: o Ceará-Mirim. Não lembrava, propriamente, da catástrofe, mas de ouvir dizer, muitas vezes, me contara o drama da gente daquele rincão, fugindo da terrível intempérie. Retirantes que migravam em busca de um quase nada que se podia oferecer; levas e levas de maltrapilhos, esfarrapados e famintos. Mas, o meu pai nunca imaginou que 53 anos depois desse momento para sempre fixado no papel, estivesse eu, seu primogênito, fazendo análises sociológicas ou antropológicas sobre a imagem. Ela própria trisavó de Pablo.

A verdade é que a figura de minha avó, Beatriz Pereira, representa neste retrato, exatamente, a viúva de outros tempos, daqueles anos 50 mesmo, além de que o seu biótipo era, justamente, o comum das senhoras do chamado pós-guerra: matrona, gorda. O preto de seu vestido – talvez fosse um azul muito escuro – representa o traje de que se valeu por toda a viuvez. Era um hábito, depois do falecimento do marido, a mulher manter a vinculação marital assim, expondo a toda gente a sua viuvez. Note-se mais que é um vestido longo, chegando quase aos pés. O broche que traz no decote era um adereço comum, usado frequentemente. Por vezes, esse adereço trazia a fotografia do esposo morto ou trazia os cabelos de um dos filhos, do primogênito ou de um rebento que falecera precocemente, deixando saudades. Veja o leitor que ela traz na mão esquerda, no dedo anular, um anel ou uma aliança, já não lembro. Era costume usar as duas alianças, a de seu uso pessoal e a do morto. Não sei, porque não lembro, se ela fazia assim! Ao lado a fotografia de Manoel Varela do Nascimento, avô de Beatriz e Barão do Ceará-Mirim. No caso, pentavô de Pablo. Feio este homem!
Observe ainda o paciente leitor que o fotografo não teve alguns cuidados que seriam comuns no hoje dos dias. Não mandou retirar a cadeira que compõe o cenário. Isso, se trouxe no passado uma ideia de certo relaxamento estético, pode no presente demonstrar como se fazia para compor o alpendre de outrora. Uma cadeira dura, toda em madeira, pesadona. Em certos casos, como numa dessas peças de balanço, havia um almofadão preso por tiras ao longo do assento e do encosto, tornando o móvel mais confortável. E o fotógrafo, também, não se preocupou com as manchas que estão à direita de minha avó, na parede, prejudicando a estética do retrato. Do lado esquerdo uma fotografia, de todas a mais recente, de meus pais, Nilo e Lila, bisavós de Pablo.
É isso ai! Foi o que vi na fotografia e o que pude escrever a partir disso. Passe uma vista o prezado leitor e diga mais. Diga aqui mesmo, no espaço do Blog ou o faça para os meus e-mails: pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

(*) Ao meu paciente leitor adianto que já tenho uma nova história, em tudo pitoresca, para o espaço. Narrativa que me foi passada por "Boca-da-Noite", figurante interessante nessas paragens virtuais da crônica quase um conto. Comente se desejar! O texto é dedicado a Pablo, meu neto, espanhol e brasileiro, brasileiro e espanhol, ainda analfabeto, porque com 8 meses de idade não poderia ser diferente. Viva!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A Quase Limusine do Vigário


Os meus amigos e colegas, conhecidos, também, costumam contar as próprias histórias, à semelhança da narrativa de Edivaldo Ferreira de Lima, motorista do Núcleo de Saúde Pública e Desenvolvimento Social (Nusp/UFPE). Foi ele quem trouxe o mote em duas de minhas crônicas, ambas incluídas aqui, neste espaço virtual, o meu Blog. Consulte o leitor Carreta Truncada ou Lábios de Mel e há de encontrar o nome dessa figura que dirige os automóveis do Nusp. Agora, dia desses, outro amigo, dessa vez com o nome a ser preservado e o cognome aqui de Fagundes, me contou uma ótima. E eu vou contar por cá, preservando o protagonista, o vigário e o motorista. Tudo sem querer rimar, mas rimando.
Fagundes, na verdade, é um velho amigo, colega dos bancos de escola, companheiro de tardes mal cuidadas nos corredores do Colégio Nóbrega, extinto agora, como tantas outras coisas boas do centro da cidade. Ninguém se lembra da sorveteria Xaxá, na bifurcação da Avenida Oliveira Lima, quando a rua continua e toma o nome de Riachuelo, mas deixa para trás a Corredor do Bispo. Ali, naquela quina de rua, as meninas do Eucarístico e do Arquidiocesano fiavam conversa com a rapaziada do Nóbrega. Foi dali que sai andando, certa vez, para a antiga Escola Normal, e à indagação do meu nome, respondi na bucha: “Me chamo Gerúndio!”. Quando eu passava era uma festa: “Gerúndio! Gerúndio! Gerúndio!”. É que eu tinha um chamego – uma namorada –, não podendo, então, me expor. E por Gerúndio fiquei bom tempo.
O nosso Fagundes era amigo do motorista do vigário, cujo carro, uma quase limusine preta, rabo de peixe, brilhando feito espelho de donzela às oito da noite, ficava disponível na garagem da paróquia. Ele e o chofer do incrementado veículo, com rádio, cinzeiro e acendedor de cigarros, saiam às tantas e bote quantas em direção às ruas do pecado, foi o que me disse. Por lá, depois das 12 badaladas da meia-noite, juntavam Zefinha e Marinete, Gelda e Ciça, todas da pensão de Dalvina. Gente de gabarito, vestida de longo, usando perfume francês e acenando para a Rainha da Inglaterra como se fossem da burguesia decadente. Pois lá iam elas, juntas na limusine, sentadas atrás, apertadas feito sardinhas portuguesas enlatadas no azeite, mas gostosas. Iam passear em Boa Viagem, tomar o fresco do mar e quando encontravam para vender, sorver uma água de coco à temperatura ambiente. Pareciam gente boa, gente fina do lugar!
E o pároco, do alto de sua condição de monsenhor, portador do título de doutor pela Gregoriana de Roma, camareiro papal por derradeiro, inocente de pai e de mãe, dormia e sonhava com os querubins e os serafins; com todos os anjos da guarda celestial. Até que um dia, às 10 horas da manhã, bateram na porta da casa paroquial. Atendeu a irmã do cura, sua secretária nas coisas da igreja. Era Dona Dalvina! Uma figura desconhecida de Alzira, a irmã e secretaria do monsenhor: "Que deseja, indagou?" E a cafetina foi logo se explicando:
- Minha senhora! É o seguinte! Eu vivo do meu trabalho! Tenho uma casa de tolerância com 6 mulheres residetnes e mais 14 frequentadoras! São 20 ao todo! Tem mais um veado e uma agregada, puta velha do pátio do mercado! É que o tal do Fagundes, junto com Eudócio, motorista daqui, devem de mulher, bebida e comida, exatos CR$500,00. E eu quero receber! E a senhora vai me pagar! Se assim não for, meto a boca no trombone e a paróquia toda vai saber.
- Valha-me Deus do céu! Valha-me Nossa Senhora das Graças! Valei-me Santo Amaro da Purificação! Valei-me os santos e os anjos todos dos céus!
E chamou o sacerdote, porque um caso como este não podia ficar no ora veja das coisas. O padre levantou-se de sua cadeira de balanço, onde gostava de ler os jornais do dia e foi tomar ciência do mal feito. Ouviu a dona falar e chamou os dois à sua presença e não houve explicações que justificassem a desdita. Eudócio perdeu o emprego e Fagundes foi renegado, posto pra fora da paróquia, perdendo as benesses da limusine e da mulherada da zona.
Mas o pior foi que Alzira fez as contas do dinheiro, separando cédula por cédula, juntando os níqueis disponíveis e quando já estava com a quantia reclamada, virou-se para o cura, seu irmão, e disse: "Pronto! Tenho em mãos CR$ 500,00. Dom Libório, homem respeitador, figura de uma quase nobreza imperial, deu um esbregue na mulher: "Cuida na vida mulher! Esse dinheiro é o da igreja, foi arrecadado pelo dízimo, são recursos sagrados!". E Alzira largou o apurado e foi buscar a "burra" do sacerdote, na qual ele juntava a grana de seu ordenado de professor, cujo salário, quinhão por quinhão, foi parar nas mãos de Dalvina.
E ficou o dito pelo não dito! Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma de pato, senhor rei mandou dizer que contasse quatro. E eu por cá vou publicando!
Viva!
(*) - Observo ao leitor que já recebi uma nova ligação de leitor desse Blog, com três ou quatro histórias, nunca estórias. Duas dessas já esqueci, porque a memória vai dando sinais de fraqueza, mas publico tudo o que lembrar, numa presteza do grande "Boca da Noite", contador e protagonista das narrativas. Comente por favor, no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

domingo, 10 de janeiro de 2010

Paletó e Gravata ou Saia Godê


Tenho caminhado no Parque da Jaqueira, na flauta, sem contar quilômetros e sem contabilizar o tempo. Quando me perguntam em casa: “Quantos quilômetros?”. Costumo sempre responder: “O meu personal trainer proíbe essa revelação!”. Conversa fiada! Não tenho ninguém me incomodando o processo de andar e voltar para o recesso do lar, como cabe fazer um quase aposentado, pois que dispensado da atividade de magistério, estou muito bem obrigado no Conselho de Cultura. Mas, ninguém imagine que ando sem prestar atenção aos circunstantes, meus companheiros de pista; uns correndo desadorados e outros a passos mais lentos. Faço o que me sugeriu certo vizinho de Aldeia: uma observação participante. Fosse mais novo, confesso, prepararia uma tese: “As conversas durante o esforço do andar!”. Ou "Fofocas e fiascos na pista do parque".

Abriria o meu ensaio com um relato interessante. É que à saída, nos bancos entre a banca de revistas e a barraca de coco, há sempre gente sentada fiando conversa. Mas dias desses foi diferente, levantou-se uma suplicante muito jovem, bem parecida e bem feita, bonita,diria, porque nem gorda e nem magra, mas na medida boa das coisas e das linhas femininas recomendadas no hoje do tempo. Pediu o coco gelado e enquanto esperava ligou o telefone: “Você vem?” Não ouvi a resposta, claro, mas imaginei: “Estou atrasado, mas chego!”. E a interlocutora, a quem podia ouvir, foi breve: “Venha logo, se não vier, ele sai do trabalho e me procura!”. Ora, estava mais do que claro; era uma “gaia”, para usar a expressão da galera. Tomou a água da fruta cuja origem se discute, e saiu correndo. Acompanhei com os olhos, mas não pude identificar quem dirigia o veículo que a levou. Ignoro o destino, sei do fato, mas não sei do feito.
Nas alamedas do parque, não é difícil escutar assuntos os mais diversos e ouvir temas variados. A última que pude anotar em meus alfarrábios mentais, foi a indagação da jovem mulher de ancas protuberantes a seu companheiro, talvez o cônjuge: “Marcou o hotel?” E ele: “Não não marquei!”. Explicou, então, ao parceiro a beleza do Hotel Enseada dos Corais, desde o atendimento e a recepção aos quartos, aos restaurantes e ao mar; sobretudo o mar, pela limpidez das águas e pela possibilidade de um passeio de barco, parando em lugares privilegiados e degustando camarões e outros acepipes do lugar. Um paraíso, disse! E a resposta foi seca, dura: “Não! Não quero!”. Deu até pena! Não intervi, porque deixei de indagar de meu vizinho que comportamento devo adotar diante desse sentimento.

Duas senhoras ainda jovens passeavam juntas. Uma dessas, loura de cabelos bem tingidos, dizia à outra, negra de pixaim encaracolado, desses que são transformados em tranças bem cuidadas e às vezes mal lavadas: “Me comuniquei com ele durante 20 anos!”. Depois, acrescentou novas palavras, elucidando melhor o caso: “Quando ele arranjou a segunda esposa, desisti! Ele ainda ligou para mim e disse: 'Mariana: Que pena! Uma amizade de 20 anos e nada! Não nos juntamos!'”. Ora, comentava, antes de se distanciar: “Foi demais! 20 anos!”. E a amiga, admirada, dava a sua opinião, optando pela rejeição, também, daquele candidato a marido que por duas décadas hesitara em relação às escovas juntas e aos trecos reunidos. Paciência, concluiu! Perdeu tempo!
Há figuras exóticas para o lugar. Gente andando de roupa mais adequada aos afazeres do trabalho, de calças e camisas de mangas compridas ou mulheres de saia godê – godê? – e blusa de seda. Dia desse, à saída, tive a impressão – só impressão – de que um senhor de paletó e gravata ia entrar no parque e andar na pista. Valha-me Deus do céu!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Dom Qintino


Nos meus anos de universidade, foram vários os amigos que fiz; gente da melhor qualidade, quase sempre. Um deles, evangélico convicto, desses que senta no carro e liga em estação religiosa, médico de trato humano diferenciado, era uma figura tão fina, mas tão fina que os seus antigos companheiros da instituição, na qual começara como mecânico, não dispensavam os pedidos quase diários. Atendia mulher e marido, os filhos sem dúvida alguma, os parentes e os aderentes, o papagaio, às vezes e até o cachorro se disso precisasse. Vivia sobrecarregado! Trabalhava no hospital e fazia o mesmo no consultório, pagando, quase se pode dizer, para exercitar a prática de Hipócrates.


Pela forma como atendia os doentes, pela disponibilidade no trato, fora designado para o ambulatório de AIDS, uma doença nova que vinha surgindo e que fizera a primeira vítima em Pernambuco no começo dos anos 80. Ai, coitado, amargou da banda podre! Acompanhei de perto o seu desempenho. Os pacientes notaram as suas características e o aperreavam, imagino, de propósito. Era uma reação esperada de quem tinha a vida por um fio. Um desses, portador do vírus e ainda sem sintomas, sabendo de seu caso e das recomendações do médico de não manter contacto com ninguém, a não ser com a camisinha, implicou com ele. “Olhe doutor! Vou lhe dizer uma coisa: hei de disseminar a doença o mais que puder!”. E voltava à consulta dizendo a quantos tinha contaminado. O meu amigo só não puxava os cabelos, porque sendo negro os tinha encarapinhados, colados à cabeça. Mas, ficou tão angustiado que me procurou: “O que faço Pereira?”. E eu, cumprindo o que determina a lei, mandei informar à polícia, sob rigoroso segredo profissional. Mas, como já esperava, ficou o dito pelo não dito.


Outro veio à consulta acompanhado da mulher. Como já estava com o diagnóstico firmado, ouviu a pergunta que se fazia a todos, antes que as características epidemiológicas da doença mudassem: “O senhor teve algum contato homossexual?”. Foi quando a mulher interveio e respondeu pelo cliente: “Não! Este homem é um galinha! Não pode passar um rabo de saia que ele vai atrás!”. E o pobre o penitente concordava com tudo, sem titubear. Mas, a esposa precisou ir ao banheiro e no intervalo o doente falou: “Doutor! Eu sou macho! Mas, certa vez, passou um menino por mim e bateu na fraqueza, eu tive uma relação homossexual!”. O banheiro foi providencial. E o paciente submetido a tratamento obteve alta depois. Coitado! Ou coitada!



Era uma figura! Certa vez, um professor mais velho passou mal e me pediram um médico para vê-lo. Designei o nosso protagonista e ele: “Pereira! Não posso, ele me chamou de negro safado, quando eu era estudante!”. Pois, vai você, para que ele aprenda a respeitar o ser humano. Ele foi, era uma crise hipertensiva, e a medicação tirou o doente do sofrimento. Nunca mais ninguém se arvorou em tratá-lo mal!

Eu o tratava com toda deferência e sabendo de seus conhecimentos bíblicos, sendo solteiro, mesmo que noivo há mais de 30 anos, dizia que lhe conseguiria um lugar no clero católico, para que entrasse como bispo ou em categoria semelhante. Ria com isso e se negava a aceitar, tal as convicções. E Dom Quintino também se aposentou!

(*) - Aos meus colegas de Universidade, que foram também meus amigos. Comentários para o Blog propriamente ou para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com





segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Uma Limusine Preta


É desse jeito, sempre! O ano termina por cá - aqui por casa mesmo -, com as filhas reunidas em verdadeiro resgate do tempo que se foi. Juntam-se e passam a fiar a conversa do ontem das coisas. Lembram de um dia a dia tão recente ainda, recordam das brincadeiras e das brigas, dos momentos em que se juntavam e assistiam aos filmes de terror escolhidos pela mais velha, Fabiana de prenome. Depois, já deitadas para dormir, o medo. Assustadas, ainda, com as cenas e as passagens dessas películas dos horrores. Fabiana, enquanto tomava banho, lembrava da cobra que no rodar de um desses filmes saltava do chuveiro e à entrada da irmã Patrícia quase se esgoela de tanto gritar. Pegaram uma briga, após o susto e o medo. Invocavam a cena e a arte do enredo, a ação do ofídio espreitando o dia por entre os buraquinhos pelos quais a água vai fluindo. Veja só o leitor!

Mas, surgiu uma história diferente, de cuja futrica nem lembrava. É que a mais velha, sendo também a mais forte, de hábito batia pesado nas irmãs, sobretudo em Carol, a mais nova da prole. Um dia, conforme contaram, pediram à assessora para assuntos domésticos que segurasse pela mão a braba do pedaço. E assim foi feito. Sustentada levou a maior pisa de toda sua vida e deixou de puxar encrenca com as irmãs. É pouco, disseram! Fabiana era meio estabanada, mesmo, por qualquer coisa fazia um sarceiro danado e em certa ocasião eu falava ao telefone e ela incomodava o meu diálogo, conversando muito perto de mim. Fiz um gesto com a mão, pedindo que parasse, com o braço todo estirado. A sombra lhe pareceu que se tratava de um morcego em revoada dentro de casa, e ai gritou a plenos pulmões, atrapalhando, ainda mais, o contato com o interlocutor de ocasião. Era assim, uma pândega!
E no jantar de despedida contaram coisas boas, os ganhos de cada uma e os predicados das três. De Carol, a mãe, coruja como sempre, disse da independência e falou da necessidade que sempre teve de privacidade. Brincava com as bonecas de pano que se comprava em Olinda e as tinha guardadas e à mão, para quando quisesse, novamente, brincar. Hoje tem o seu quarto de tal forma arrumado, que faz gosto e dá escrúpulo em mexer, tal o cuidado e tal a distribuição de seus pertences. Fabiana é atirada e já morou na França, constituiu família na Espanha e vai chegando com o filho Pablo. Patrícia arribou para o Ceará, acaba de passar em concurso e vai trabalhar no serviço público.
Mas, o tempo passa num sopro do nada. No ontem dos anos eu era um menino, cresci e virei gente, trabalhei o quanto pude e me aposentei, arranjei outra ocupação, o Conselho Estadual de Cultura , e vou andando pelo mundo de cabelos brancos como a prata, de corpo vergando e de passos um pouco – só um pouco - mais lentos. É assim mesmo! Dia desses até, conversando com minha mãe, num quase monólogo, ouvi dela o seguinte: “O meu pai morreu! A minha mãe morreu! E eu fiquei velha!”. É verdade, vai completar 90 anos e na cama, em casa mesmo, cumpre a finitude de seus dias, padecendo e sofrendo neste vale de lágrimas. Deus a dê um destino acertado!


Em loja de atacados, com a mulher e a filha, o genro também, fizemos compras para o neto que vai chegando, Pablo de prenome. Um quadrado, dizia-se outrora, um cercado se diz hoje, como se criança fosse gado ou se gado fosse criança. E mais uma banheira, um colchonete na medida e outros apetrechos que possam estar disponíveis à chegada de Pablo, espanhol e brasileiro, brasileiro e espanhol. Ele mesmo posto ao lado com o avô da banda de lá do oceano enorme. "Abuelo" se diz! E eu, envolvido nesse rolo do peru, quase não encontro mais tempo para nada, para os meus estudos e, sobretudo para as minhas escritas. Procuro repetir um pouco as coisas de Aldeia, mas a sabiá daqui, do Rosarinho, sequer vem bicar o naco de mamão que deixo na varanda.

Chamei a mulher de parte, diante da afirmativa dela, a de que repetíamos o que fizemos faz muitos anos pra trás, quando as filhas chegaram, uma após outra. É diferente, expressei, naquele tempo fazíamos com uma dificuldade financeira enorme e hoje, com os dois salários juntos e menos a contabilizar nos gastos, é de mais facilidade o custo das coisas. Ela concordou! E vamos receber a família que vai chegando de Espanha com pompa e circunstância. O tapete vermelho de nossas emoções há de ser estendido para a recepção.
De nada serve lembrar o tempo que passou, senão pela satisfação do que se viveu e não se vive mais. Menos pelas recordações das coisas ruins, das angústias e dos medos, da inquietude dos dias e das horas. Mas sim, dos presentes que meu pai deixava na cama da infância, da ansiedade pelo Papai Noel de aspecto nórdico, um São Nicolau das paragens gélidas, sentado em confortável cadeira na Viana Leal, enganando as crianças de classe média e engabelando os pobres de Jó. Nunca esqueci a espingarda que recebi um dia ou uma noite, cuja munição era de cortiça e o tiro um espocar seco. “Mãos ao alto, era o que dizia! Renda-se, era o que repetia!”. E o carrinho preto, uma limusine, de brancos vermelhos? Uma beleza!
(*) - Uma crônica que reúne o ontem dos anos com anteontem dos dias. Uma lembrança que as minhas filhas já têm e as recordações que sempre tive. Feliz ano novo. Pablo chega a 17 do mês. Viva! Comente aqui mesmo ou para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com