sexta-feira, 23 de maio de 2008

Torre de Babel

Eu sou do tempo em que o francês era o idioma tido como a segunda língua e o meu pai falava muitíssimo bem, a ponto de em visita à Paris, andando, pra lá e pra cá, nas galerias do Louvre, ser confundido com um natural da cidade luz. Fez o que pôde e o que não pôde para me ensinar – chegou a comprar o Berlitz –, mas, como santo de casa não faz milagres, eu nunca aprendi a língua que permitiu a Victor Hugo criar Les misérables, uma das mais importantes obras da literatura. A minha mãe não, era bamba no português e tinha – ainda tem – uma letra linda, bem cuidada e bem desenhada. Esteve também na França e a moça que servia de guia a meu pai, dirigia-se a ela em castelhano. E ela repetiu por anos a indagação: “Quem disse àquela senhora que eu falo espanhol?”. Não falava, mas suportava, como suportou tantas agruras.
Depois, com a influência dos Estados Unidos, o inglês assumiu a liderança no mundo. Os textos, dos documentos internacionais ou mesmo da literatura especializada, científica, passaram a ter na língua a primazia. Eu fui, então, encaminhado para um curso considerado muito bom e de conceito reconhecido no Recife, no Edifício Iran, na avenida Conde da Boa Vista. Em seguida para a Cultura Brasil-Estados Unidos, onde, penso eu, estudaram os recifenses todos ou quase todos e aqueles que de outras plagas vieram e passaram a morar por aqui. Finalmente, o Yásigi, tido e havido como avançado e de metodologia apropriada ao aprendizado do neófito. Numa certa noite, diante de minha luta contra a dicção, para pronunciar o artigo the, ouço a pergunta grosseira do professor: “Você tem a língua pegada?”. E o pior: eu tenho! Nunca mais fui lá! Com esse inglês me virei e me viro là fora!
O episódio de hoje, todavia, passou-se no Japão, a terra do sol nascente, onde tenho bons amigos, sobretudo gente do porte de Harumi Royama e Seiki Tateno, figuras que residiram neste burgo por alguns anos, enquanto dirigiam um intercâmbio da Universidade com a agência de fomento Jica. E é de Harumi o texto que segue adiante, de uma correspondência eletrônica: “Acredito que as pessoas são feitas para se comunicar. A comunicação é algo lindo, interessante, dinâmico, mas também complicado. Mesmo entre as pessoas que falam o mesmo idioma, às vezes comunicação é algo difícil. Ainda mais quando não se fala o mesmo idioma. Só que ao mesmo tempo quando não entendemos muito bem a língua do outro, descobrimos que não é só através das palavras que nós nos comunicamos. Quando realmente estamos juntos e queremos entender o outro, o coração fala.”.
E na minha estadia em Tóquio – passei 28 dias por lá – eu me comuniquei de todas as formas, senão com o coração, mas como podia e me permitiam os japoneses. Talvez tenha sido a experiência que mais me marcou a vida. Foi ótimo! Mas, isso é outra coisa. Eis que estando em meu quarto, numa manhã de sábado, combinava com minha mulher o nosso destino, se um passeio ao comércio ou se uma visita aos templos budistas, de súbito entra um funcionário do hotel, fardado a caráter, de uniforme e quepe, tudo em azul. Vira-se para mim e faz uma indagação em sua língua de origem. No meio repetia, quase seguidamente, a palavra caaten. Perguntei se falava inglês ou se sabia português, espanhol? Com a cabeça respondia que não. E eu, sem entender absolutamente nada do que ele dizia, resolvi falar em português bem cuidado:

- Meu senhor! Acho lindo o seu caaten! Confesso que a palavra, realmente, me emociona, mas não sei de que se trata e por isso, nada posso fazer. Explique de forma a me fazer entender, que lhe responderei! O que danado é caaten?


Ele insistia com o desejo e apontava para a janela. Entendi que poderia ter medo que eu me suicidasse – a janela só abria até a metade –, decidindo pelo fechamento da fresta. Não resolveu. Continuou a insistir e finalmente foi buscar o tão falado e decantado caaten: era uma cortina. Ele queria mudar as cortinas de meu quarto. Valha-me Deus, quase digo, estamos diante da Torre de Babel, que tanto encantou Ciro, O Grande, na invasão da Babilônia. Fizeram uma construção de 90 metros de altura e achavam que poderiam chegar aos céus e com isso encontrar o Criador. Tiveram como castigo um verdadeiro embaralhar das línguas e hoje no mundo há centenas delas, dificultando a comunicação, mesmo sem impedir, como disse Harumi.

A crônica de hoje, mais uma das "Histórias Pitorescas de um Reitor", é oferecida a Harumi Royama e a Seiki Tateno, dois amigos fraternais que estão do outro lado do globo, no Japão, mas atentos, sempre, a tudo que se passa no Brasil. Se desejar comentar, comente, nesta página mesmo ou pelo e-mail que lhe chegou a informação ou ainda pelo e-mail pereira@elogica.com.br Ou não comente, não diga nada, não fale e se cale. Ou ainda, fique com raiva. Mas, tenha um final de semana tão pródigo quanto será o meu.