terça-feira, 29 de julho de 2008

Um Agente Secreto Tupiniquim

Era uma tarde de uma semana qualquer, cuja característica mais importante talvez fosse a de terminar com um feriado na sexta-feira: O Dia de Tiradentes. O herói da Inconfidência. A secretária, então, avisou que eu deveria receber, ai pelas 17 horas, um representante do “Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra”, o MST. Considerei a informação rotineira, isto é, sem maior valia na contabilidade do dia. O cotidiano era assim mesmo. O Reitor tinha viajado e eu estava ocupando a Reitoria, substituindo o titular, como frequentemente acontecia. Mas, parecia um caiporismo danado estar na titularidade, mais uma vez, frente aos fatos mais inusitados possíveis. É isso mesmo! Refletia, então, diante de mais esse impasse ou desse enfrentamento a mais na minha carreira de substituto eventual. Ossos do ofício! Coincidências da vida!
Na hora aprazada chegou o penitente, líder do já aludido “Movimento". Aliás, a bem da verdade, eu tinha feito a abertura de um encontro deles na Universidade e havia pedido de presente um boné característico das invasões que levavam a cabo. Foi difícil conseguir. Tive a impressão que não era habitual alguém como regalo um desses apetrechos do grupo. Menos habitual ainda receber a lembrança. As pessoas, na verdade, corriam léguas dessa evocação e sobretudo desse simbolismo. Terminei ganhando e guardando em casa, como se fora um troféu desses anos diferentes de meu viver. Só que a minha mulher, inadvertidamente, saiu para caminhar, sem que se apercebesse, com o chapéu e no Parque da Jaqueira, no Recife, os olhares que se cruzavam na pista recriminavam a senhora que andava com semelhante boné. Um horror! Só se deu conta quando voltou e foi recriminada pelas filhas.
Mas, recebi o líder do “Movimento de Trabalhadores Rurais sem Terra” (MST), sentado em conjunto de estar no Gabinete, ouvindo, pacientemente, o que desejava expressar. Disse, em alto e bom som: “Vamos invadir a Universidade!”. Fiquei perplexo e quase digo que não, mas seria prudente analisar o fato e o feito, aguardando as demarches. Adiantou que viriam em missão de paz, acampariam na instituição e ocupariam – ai sim! – as dependências do Incra. Marcou dia e hora! No meio da conversa, pedindo desculpas, avisou que seria grosseiro, que diria alguma coisa mais ríspida. Eu fui forte – nem sei como! –, respondendo que ele estava numa universidade, onde se trata com cortesia e com urbanidade. Aprende-se a lidar com o próximo dessa forma. Mais uma vez pediu desculpas e nada mais disse, nem lhe foi perguntado.
Decidi ligar para as pessoas com experiência no assunto, gente especializada em encarar os “Sem Terra”, ouvindo os mais diversos conselhos. Desde a recomendação de nada fazer e de me ater à possibilidade de algum distúrbio, até às orientações para ocupar o Campus com a polícia ou a força federal, antes que eles chegassem. Um rolo na minha cabeça. Mas, reuni o que chamei a posteriori de Colegiado de Crise – os pro-reitores –, pedindo a eles o apoio necessário nas horas daquela quase ocupação. Mandei preparar o Núcleo de Educação Física e tomei outras providências. Considerando o fato de contar, possivelmente, como sucedia nas invasões anteriores, com crianças, decidi convocar o Corpo de Bombeiros, que manteve um soldado permanentemente ali, em função da piscina olímpica do lugar.
O pitoresco da história foi um funcionário da segurança, que tinha uma idéia fixa de que era militar. Convoquei-o, imediatamente, dando-lhe instruções peculiares. Ele foi um suporte importante nas 48 horas que durou a permanência dos integrantes do movimento. Acompanhou o deslocamento do préstito, desde cerca de 10km antes. Fazia de forma bem cuidada. Assim, pelo rádio: “Atento Reitor! Atento Reitor! A marcha está a 10km. Previsão de chegada: 13 horas.”. "Atento Reitor! A marcha está passando sob o viaduto da Ceasa. Previsão de chegada às 14 horas". Isso foi se repetindo até chegarem com um atraso de mais de 2 horas. Contava, também, com o auxilio da policia, que colocara à disposição um oficial e uma guarnição para o acompanhamento. Afinal, apareceram e depois de uma volta de reconhecimento no Campus, sem muita animação e sem algazarra, acamparam no Núcleo. Saíram no dia seguinte, repetiram a volta e foram ao Incra. Tudo em paz.
Mandei sondar o grupo através de meus agentes secretos tupiniquins, disfarçados em radiola, como fazia Bolinha, personagem dos quadrinhos de minha infância, e confirmei a saída para até a meia-noite do dia 21 – o feriado –, acompanhando de casa toda a evolução dos fatos. Passava da uma da manhã do dia seguinte, quando recebi a ligação do tal chefe da segurança: “Boa noite Reitor! Confirmo a retirada do grupo que ocupava o Núcleo de Educação Física. Positivo?”. E eu do outro lado: “Positivo! Operante!”. Foi um alívio, mas o convívio nesse pouco tempo não trouxe danos, sequer arranhões na relação com o "Movimento". Tudo correu na santa paz.
No fim, no fim, o "Movimento" busca o que nunca se teve no Brasil: a terra. Os latifúndios infestam a paisagem da Zona da Mata em Pernambuco e nada ou quase nada oferecem aos trabalhadores, senão o sofrido salário, sem que possam plantar e criar. Que pena!
Mais difícil foi com o chamado "Movimento dos Trabalhadores sem Teto". Mas, isso é outra coisa e há de ser motivo para nova crônica. E foi uma encrenca grossa.

domingo, 13 de julho de 2008

Um Carneiro Donzelo


Era um homem baixinho; baixinho e franzino, simples ou mesmo simplório. Ingênuo, melhor dizendo. Puro e sem maldades, como imagino. Trabalhava no velho Hospital Pedro II, a princípio no laboratório do serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias, que ficava no quintal do nosocômio. Ali cuidava de um tudo, da limpeza do piso e da lavagem da vidraria, vez ou outra enveredava pelo exercício, mesmo que ilegal, das chamadas análises clínicas e arriscava fazer um exame. Tinha uma peculiaridade que lhe era própria e em tudo muito natural a quem como ele tinha uma timidez de doer, sequer olhava para as pessoas. Apaixonara-se por uma médica e fizera desse amor platônico uma razão a mais de sua vida. Trabalhava com ela, a quem devotava uma dedicação ímpar, mas quem lhe pedisse alguma coisa e fosse diferente dela ou de seus assistentes, podia desistir, porque o penitente nada faria.

Manuel, certa vez, atendeu um telefonema meu e não identificou a voz. Bom! Como sempre faço e essa foi uma característica que mantive a vida inteirinha, aproveitei a ocasião para um trote, dizendo, de logo: "Sr. Manoel! É o Reitor! Gostaria de falar com o Prof. Geraldo Pereira!". Eu era um jovem médico e um auxiliar de ensino, sequer considerado, ainda, como professor. Mas, o interlocutor não teve dúvidas, respondendo prontamente: "Ainda não chegou!". Ah, disse o pretenso Reitor, ele costuma, então, chegar tarde assim. E o homem simples, mas sério, honesto e ético, me defendeu, expressando que raramente isso acontecia. Finalmente o Reitor sentenciou: "O senhor fique de pé para falar comigo!". E ele - Coitado! - justificou-se com a desculpa esfarrapada de que já se levantara da cadeira assim que tocara o telefone. Quando eu cheguei, quase tenho um troço de rir.
Uma das missões de Manoel era cuidar do carneiro. Criava-se um animal assim com a finalidade de se utilizar as células sanguíneas. Com essa parte sólida do sangue fazia-se à época – tome época nisso! – o exame para diagnóstico da sífilis. O pobre do bicho devia viver irritado, enfezado, porque todas as semanas se obrigava à colheita de material para uso do laboratório e a ração de todos os dias, o capim cortado na beira do rio por Manoel, talvez não lhe satisfizesse as exigências de reposição das perdas. Que pena! Sendo um espoliado, nunca teve o apoio ou o auxílio das associações de proteção aos animais. Viveu com uma missão especifica, a de servir ao homem e ao homem serviu a vida toda. Isso é que é um destino ingrato, viver amarrado no terreiro de um hospital, à disposição, todas as semanas, para ser sangrado e nunca se apegar a uma fêmea que fosse, uma ovelha de sua cor, branca como a neve ou mesmo um animal negro como a noite de sua sofrida solidão.
O problema é que o carneiro soltou-se numa bela manhã primaveril e como era um bicho irritado, impaciente, agitado e inconformado, passou a atacar um fusquinha estacionado adiante. Não se sabe bem as razões que teve para eleger o carro, mas a verdade é que não deixou uma parte sequer do veículo sem que fosse chifrada. Deu marrada pra todo lado, nas portas sobretudo, mas nas laterais também. O automóvel quase virou uma folha de papel amarrotada. Qualquer um pode imaginar a reação do dono, quando chegou para ir embora e viu o serviço do carneiro em seu automóvel.
Foi um "Deus nos Acuda!" e o meu chefe terminou pagando o prejuízo tirando do próprio bolso. Acertou-se, então, que Manoel - agora já Mané do Carneiro - levasse o animal para casa e cuidasse dele, gastando com a alimentação o que despendia no hospital. E assim foi! Um belo dia, chega o penitente para trabalhar, numa segunda-feira qualquer, e comunica: "O carneiro morreu!". Daí por diante foi uma pândega. Ninguém acreditava que a família não tivesse se refastelado com uma buchada no final de semana e a gozação quase leva o homem ao desespero. Chegou-se a inventar uma cirurgia que esclarecesse de uma vez se o bicho fora ou não fora vítima da fome e da ânsia da turba parental, irritada já com o indesejado ovino. E a encrenca estava numa situação que ele me procurou e falando baixinho confessou: "Dr. Geraldo! Eu não comi o carneiro. Eu não como carneiro donzelo! Faz mal!"
Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma perna de pato ou de um carneiro e o Senhor Rei mandou dizer que contasse quatro.
(*) Crônica que dedico ao meu colega por anos a fio Geraldo Machado, parceiro em algumas das minhas brincadeiras com Mané do Carneiro.
(*) Venho acompanhando, rigorosamente, os acessos ao Blog. De várias cidades do Brasil há visitantes e de alguns países do mundo também. Isso me honra, como explicitei recentemente. Sendo assim, os que não recebem de hábito o e-mail de atualização e desejem a inclusão do endereçamento eletrônico em lista nova que estou desenvolvendo, favor escrever para pereira.gj@uol.com.br Grato

Outras Noticias das Cheias do Recife

Dois dos meus leitores de primeira hora fizeram observações interessantes sobre a crônica anterior e estimulado por esses conteúdos, decido repetir a dose: escrever outra crônica. Em primeiro lugar, contando o que mandaram me dizer, pedindo perdão, de logo, pelos acréscimos nascidos do imaginário do autor. Por isso – pelos acréscimos – preservo-lhes os nomes. Um desses, figura finíssima, diz que foi a primeira vez que pôde ler comentários bem humorados sobre as catastróficas enchentes dos anos setenta. É! É o tragicômico da existência humana. Depois de alguns anos a tragédia cede lugar e a comédia passa a presidir o espetáculo das coisas. Já o outro, delicadíssimo comigo desde sempre, conta um episódio engraçado na sala de casa de um de seus irmãos: o penitente acordou em plena cheia e havia uma vaca sobre a mesa de casa. Sendo assim, teve acesso gratuito ao leite na manhã do novo dia. Essa é pra valer! Mas o rio aprontou muitas.
O então Secretário de Saúde tinha assumido há pouco tempo e vencido o momento das águas nas ruas do Recife, estava desesperado. Tirou os sapatos na escada de acesso ao Gabinete e mandou me chamar, manifestando a sua inquietação: havia seis cadáveres no Hospital Correa Picanço e ninguém queria de tirá-los. Tinham medo da meningite e não dispunham de apetrechos que os isolasse. Ouvi o problema da autoridade e fui para o meu canto maturar a solução, pensando com os meus botões. Os botões que tantas vezes me trouxeram o desejado encaminhamento. Só havia um jeito, procurar a polícia e o IML já havia se negado, também. Ora, fui à Delegacia de Plantão e o delegado de serviço me ouviu atentamente, indagando ao final: “E eu? O que tenho a ver com isso?” O que eu desejava era simples: “Um camburão para a remoção dos defuntos!” E a conversa foi pra lá e veio pra cá e o policial cedeu. Foi a primeira vez, então, que os mortos vieram presos.
No dia em que fui escalado para passar a noite no Palácio dos Despachos, quando terminei indo a uma cidade do interior, fiz logo amizade com toda gente; gente das mais diversas profissões, do engenheiro à assistente social, do bombeiro à enfermeira. E lá por baixo – tínhamos uma visão larga no primeiro andar – um PM, a cada volta que dava na ala dos mantimentos já arrecadados, tirava uma lata de leite Ninho. Ai, um dos companheiros – sem alusão a partido político –, virando-se para mim, disse: “Você ai que fala muito! Que solução se pode dar ali? Ao caso do leite Ninho!”. E eu, num rasgo de inteligência que raramente consigo: “Escale um policial andando num sentido e um soldado do exército noutro e tudo estará resolvido!”. Foi um santo remédio. Nada mais se viu e nada mais se soube, porque as forças diferentes não se unem e também não se bicam.
Mas, para o interior, eu fui com um engenheiro e com uma assistente social. E às folhas tantas decidimos parar e escrever um relatório. O Prefeito, com um imenso revólver à cintura, queria assim. E assim fizemos, eu e o engenheiro. O meu colega, muito cioso de seu compromisso, fez a medição dos muros que foram levados pelas águas: 50 metros. O Prefeito ouviu a metragem e chegando perto de nós dois – eu era o datilógrafo de ocasião – contestou e multiplicou por 10 a medida do zeloso colega. “O senhor viu 500 metros!”. E eu, considerando a arma do homem e a indisposição do profissional, cuidei em arrumar as coisas. Chamei-o de parte e revelei: “Veja! Isso de nada servirá! Já fiz o mesmo relatório outra vez! Tanto faz seis como meia dúzia!” E o homem acedeu, contou 500 e o datilógrafo aqui, formado na rua do Lima, por recomendação paterna – “Se você não der pra nada, sabe datilografia!”- datilografei a metragem, evitando ingresias.
A assistente social, no entanto, como toda e qualquer profissional que se preza nessa área do humano, estava sentada e bem posta fazendo entrevistas de um por um, achando que dava conta de tanto flagelado que havia. Escutava, atentamente, as histórias todas, com a vã ilusão de resolver tantos impasses. E a hora passando! Passando! Passando! O profissional de engenharia, então, me procurou e mostrou que íamos chegar ao Recife dia claro, com essa demora da criatura. Eu, não tive dúvidas prometi fazer um susto, obtendo com isso o desejado e esperado resultado. Fui lá, bati na porta e expressei a minha preocupação com ela: “Olhe! Nós já terminamos o nosso trabalho e estamos indo. Nos veremos depois, em qualquer lugar desse mundo de Deus! Quem sabe numa enchente mais branda e menos braba!”. A mulher deu um salto e respondeu rápido: “Eu vou também!”
Ainda tem muita história pra contar e muito conto pra historiar.

(*) – Artigo que ofereço a Silo de Holanda e a Girley Brazileiro, figuras que me acompanham neste espaço virtual. Silo, porém, desde os anos setenta segue comigo, desde nossa convivência no Sindicato dos Comerciários, onde foi meu chefe e no Cremepe, onde também foi, Presidente como era. Mas, que ofereço, também, a Carlos Dantas (CD), a cada nova crônica um comentário a mais

(**) - Os meus registros têm apontado a presença neste espaço de pessoas de países diferentes e de estados diversos no Brasil. Isso me honra muito. Como estou preparando uma nova lista de destinatários, haja vista ter esgotado a capacidade da atual, peço aos interessados informarem os endereços eletrônicos para: pereira.gj@uol.com.br Enviarei, então, as atualizações de cada sexta-feira com muito prazer.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Notícias das Cheias no Recife

Nos anos 70, em duas ocasiões diferentes, o Recife foi tomado pelas águas do rio Capibaribe, o cão sem plumas de João Cabral de Mello Neto. Já tivera uma experiência semelhante, em 1967, se a memória não me trai, estudante de medicina ainda e funcionário do Centro de Saúde Gouveia de Barros, quando fui destacado para trabalhar no Grupo Escolar Frei Caneca. Mas, formado e de anel no dedo foi diferente, porque assumi nos dois os casos responsabilidades bem maiores que aquelas dos tempos de acadêmico. Da primeira vez, fui designado para trabalhar no Jockey Club de Pernambuco, no bairro do Prado e na segunda, terminei me deslocando a Limoeiro. Mas, depois dessas ocorrências todas, ainda cumpri um treinamento de enchente, coisa que nunca imaginei pudesse existir e sob o comando de um major do exército, quando pensei que essas coisas fossem da alçada dos bombeiros. Mas, vamos aos fatos.
Com o Recife tomado de assalto pelo rio enfurecido, fui escalado, como já expliquei, para trabalhar no Jockey Club de Pernambuco, onde tantas vezes vi a minha avó materna apostar nos cavalos da sua preferência. Instalado e determinado, comecei a atender aos chamados flagelados da enchente. Nada ou quase nada ligado ao fenômeno da natureza, senão uma queimadura em função de um acidente com um fogão ou com um bujão de gás. Era uma criança, na faixa dos seus 7 ou 8 anos, com grande parte do corpo queimado. Chamei, então, um tenente que comandava uma guarnição do exército e o encarreguei de transportar o garoto ao Hospital da Restauração. Foi e voltou, bateu continência e disse: “Missão cumprida! Infelizmente, derrubei dois muros, em função do deslocamento da água e bati num fusquinha.”. Homem de Deus! Pra que tudo isso? Foi o que perguntei. Levara o pequeno em carro de combate, desses que passa por cima de pau e pedra, derrubando tudo que encontra pela frente. Valha-me Deus do céu!
Com esse mesmo oficial, num raro momento de folga, conversava sobre o sistema de rádio que era usado por ele. Sempre gostei de rádio e esse era o meu hobby, se assim posso chamar. Eu tinha conseguido captar a rede deles, chamava-se Espora e a cabeça da rede tinha a denominação específica de Espora Dourada. Captei o sistema através de um harmônico, uma falha na transmissão que faz a onda mudar de freqüência. Comentei com ele e quase saio dali preso. Fez inúmeras indagações, mas terminou se conformando quando lhe pedi: “Homem! Faça de conta que nada ouviu e que nada disse. Isso foi um acidente de percurso. Fica o dito pelo não dito.” E ele, mais ou menos de minha idade, conformou-se, esqueceu o problema. Deve ser hoje em dia um coronel e reformado ainda mais.
No segundo episódio mandaram que fosse passar a noite no Palácio do Governo. Quando a escuridão do tempo chegou, vieram me avisar que deveria ir a Limoeiro, de helicóptero. A cidade estava debaixo d’água e não havia estrada disponível. Aceitei a missão, mas no veículo aéreo, de jeito nenhum. Fui de caminhonete e lá cheguei com um engenheiro e mais uma assistente social. A primeira coisa foi receber um homem que desejava falar com a pessoa do Governo. Ora, sempre fui muito falastrão e me apresentaram como tal. O pobre homem, gente humilde do interior, expressou o seu desejo: “Gostaria de uma ordem para dormir!”. Por que isso? Foi o que indaguei. “É porque faz três noites que não durmo, só medindo as águas na ponte.”. Ah! – complementei – é por isso que no Recife a cada minuto tem um boato de nova enchente. É o senhor dormindo, enquanto mede o nível do rio, disse. “Vá dormir, imediatamente!” E o homem foi! Coitado! Cumpria o seu dever por cima de tudo, de sua própria exaustão.
Quando as coisas serenaram, resolveram montar uma equipe e fazer um treinamento. É claro que nesse momento eu tinha que ser, novamente, escalado. Tudo que é diferente e estranho é comigo! E fui! O meu papel seria chegar à ponte do Sport Club do Recife e dali passar para o outro lado de lancha, me dirigindo para um abrigo na Cidade Universitária. Bom! Fui ao treinamento, chegando atrasado, pelo que o major responsável não gostou, óbvio, mas suportou. Quis, todavia, me testar e virando-se para mim verbalizou em alto e bom som: “O senhor veio de lancha?” Era para que simulasse a situação como verídica. E eu: “Não senhor! Vim na Rural Willis do Centro de Saúde!” O militar, sem notar que eu estava levando na graça, complementou: “O que traz em sua maleta de emergência? Soro anti-ofìdico?”. A maleta estava na mão da auxiliar e nada havia em seu interior. Respondi da forma mais serena possível: “Nada trago! Só a maleta vazia e nada mais!.” E o penitente fardado complementou à sua maneira: “Não entendeu!”.

Essas são as notícias das cheias no Recife. Anos 70, tempo de muito aperreio e dias de muita encrenca.


(*) Um texto de lembranças, ao mesmo tempo trágicas e cômicas. Um mundo d'água tomando conta do Recife, o povo correndo apavorado e se abrigando nos colégios e eu, jovem médico, aguentando o pau, trabalhando feito um burro de carga, mas, vez ou outra, distraindo o juízo, porque, como já disse Ascenso:"... ninguem é de ferro/...". Desejando comentar o faça aqui mesmo, neste espaço virtual ou escreva para pereira@elogica.com.br


quinta-feira, 3 de julho de 2008

Um Sapato Rainha

A idéia da crônica nasceu com uma música que ouvi no carro. Cantava Núbia Lafayette, repetindo canções que eram as mesmas de meu tempo na Festa da Mocidade, onde a cantora fazia par com Dalva de Oliveira nos alto-falantes do lugar. Eu ia todas as noites, nos dias de semana e aos sábados e para completar a semana, nos domingos também. Afinal, a movimentação nas alamedas do velho Parque 13 de Maio só começava com as férias de dezembro, início do mês, na primeira quinzena sempre. Ai, já estávamos livres das provas no colégio e pelo geral passados de ano. Uso o plural, porque não ia sozinho, mas acompanhado pela turma toda, pela galera, como se diz hoje em dia, usando o vocabulário da moçada. Entrava com um permanente do tipo família, entregue em mãos de meu pai pelo fato de ser jornalista de batente. Mesmo assim, com um permanente na mão e com essa facilidade toda de ir e de vir no ambiente da Festa, ele combatia no Jornal do Commercio, em sua coluna diária, o teatro rebolado, condenando a sensualidade das vedetes. Danado isso!
Era proibida em casa a minha presença ali – nem precisava dizer isso –, mas eu nunca perdi um espetáculo, sequer. Devo ter contabilizado uma centena de pecados veniais, nunca mortais, pois via aquilo tudo com a alma lavada e ensaboada, para lembrar o Coronel Odorico Paraguaçu, um personagem interessantíssimo vivido por Paulo Gracindo em novela de televisão. Mas, nasceu com a música de Núbia Lafayette, porque certo dia o meu pai recebeu de presente um sapato Rainha e não gostou. Era comum chegarem esses regalos em casa, o trabalho no jornal estimulava a prática. Livros, então, chegavam em quantidade. Certa vez até, tendo recebido uma linda camisa branca de linho, enviada por um tio materno de São Paulo, onde morava, não gostou do corte; corte, aliás, que imitava roupa semelhante àquela usada pelos clérigos, com a gola em pala: o clegyman. Eu achei a peça bela e gostei que me enrosquei de tê-la comigo, para usar nas passarelas tupiniquins da Festa da Mocidade. Usei tanto que abusei. O número igual dos sapatos e das roupas facilitava os repasses.
Sobre essas camisas assim diferentes, tive depois outra – só duas na vida –, de linho também, mas azul na cor, belíssima e viajei com ela, certa vez, junto com outros colegas médicos. No meio ia um companheiro, que sendo contra-almirante tinha prioridade em todo canto que chegava. E na fila do aeroporto tive um estalo e me dirigindo a ele disse: “Peça prioridade para mim também! Diga que sou o bispo de Petrolina.” E o rapaz do balcão da companhia de aviação concedeu a prioridade, quando deu a resposta: “É! Tem o mesmo direito!” Fui lá e tive o descaramento de dizer que me fazia acompanhar de uma penitente, criatura que integrava a minha diocese. E o homem, sem deixar de vazar curiosidade, falou: “Traga a penitente aqui!”. E entramos todos com essa prioridade estabelecida. O despachante rindo e eu justificando que sendo um sacerdote, precisava de companhias que me fizessem certa corte. Era minha mulher! Ainda o é!
Mas, a verdade é que ganhei o sapato. Um belo par dos primeiros tênis mais diferenciados que chegaram ao comércio. Não era comum se usar tênis, senão nas aulas de educação física do colégio. Mas alguns estavam disponíveis, chulos, se assim posso me expressar, como o célebre e tão usado Conga. A minha tia velha – tia Deolinda – era pessoa pobre, habituou-se às alpargatas Rhodia, as quais mesmo sendo de uma simplicidade ímpar, eram confortáveis. O meu não, era de um tecido encorpado, meio crespo, na cor marrom e com uma sola de borracha sintética que dava gosto de ver. Naquela noite estava satisfeitíssimo, não cabia em mim de tanta vaidade com aquele sapato. Calcei-o sem as meias do cotidiano e fui para a Festa. Andei pra lá e pra cá com a namorada, olhando sempre para os pés e mostrando a ela o meu presente, orgulhoso, mas muito cuidadoso para não estragar.
Estava sentado na mureta de uma das fontes do parque, quando o serviço de rádio anunciou: - Atenção! Atenção! Geraldo Pereira!
De pronto me levantei e disse, quase aos cochichos: “Sou eu!” A namorada admirou-se, mas esperou o desfecho com calma. O auto-falante continuou:
-Volte para casa, pois seu pai precisa sair com os sapatos!
Foi um horror! Ainda maior porque eu tinha me acusado, levantando-me na hora do chamado, denunciando-me, então. Para aquela namorada, parecia que tínhamos em casa apenas um sapato e dividíamos o bem: o meu pai e eu próprio. Sendo – é claro – a prioridade reservada a ele, mais velho e chefe da família.
Mas, não era nada disso. Fora um velho amigo, companheiro das peladas rasgadas em tardes mornas nos quintais do Pombal, que levara a informação até à coxias do serviço de rádio. E disso – de quem fez a arte – só vim saber muitos anos depois, décadas após.

E o meu pai, na varanda de casa, proximidades daquele lugar de tanta animação, ouviu o chamado e ficou rindo sozinho, com os seus botões.

Eis a história de um sapato Rainha.

(*) - O Blog vai oferecido ao meu companheiro de infância, adolescência e juventude João Trindade, com quem joguei bola - ele sempre melhor que eu na pelota -, joguei botão e fiz a ronda das paqueras e dos flertes. O artista dessa história!