quarta-feira, 8 de abril de 2009

A Bebedeira de Judas

Bateu em minha porta numa sexta-feira santa, faz uns 40 anos, pouco mais ou pouco menos. Julgava que eu era um exímio conhecedor das regras canônicas e por isso me procurava: “Geraldo! Você que é católico e entende das coisas da Igreja, é proibido beber hoje?”. Ele estava iniciando um processo, que terminou por levá-lo ao alcoolismo. Eu disse que na realidade não sabia disso e que achava melhor ele se abster – eu era meio carola –, haja vista o fato de se exigir, à época, jejum e abstinência. Mas quem está prestes a enveredar pelo vício, tem as justificativas todas. Argumentou que considerava a proibição em causa, mas para a cachaça e o conhaque, julgando que o vinho, propriamente, estava liberado, bastava lembrar que fora o próprio Cristo quem transformara a água em vinho – ah se ele tivesse esse poder! – ou fora Nosso Senhor quem consagrara o pão e o vinho. E tomou um dos maiores porres de sua vida.
Era uma figura conhecida na rua, transitava em todos os grupos, trazendo o infortúnio de ser considerado o mais feio dos amigos daquele lugar. Isso não era uma brincadeira qualquer, mas o resultado de uma eleição feita na Festa da Mocidade, quando o locutor pediu que fossem apresentados nomes de rapazes assim, horrorosos, sendo o dele vítima do maior número de sufrágios. A molecada o aplaudiu até não poder mais, numa vibração mórbida, quase funesta, de um título macabro para um adolescente. Dessa forma, ganhou o concurso – nem sei se houve prêmio –, mas carregou o estigma a vida toda. Por onde passava havia sempre quem lhe apontasse: “Lá vai o campeão da feiúra!”. Talvez – Quem sabe? – esse trauma tenha concorrido para o vício com o qual se pegou.
Mas, continuando com o mote da Semana Santa, tema que abre a crônica pascal, houve lá pela rua uma malhação do Judas; lá pela rua, em termos, porque chegava até os domínios da Afonso Pena e por todo ambiente do Pombal. E o nosso penitente foi detido, levado para a Delegacia de Plantão e recolhido. Outro amigo, esse habituado a ajudar toda gente, pau pra toda obra, como se dizia, proprietário da Kombi que servia de motel à rapaziada, se dispôs de logo a soltar o colega, companheiro de rua, comparecendo à delegacia. Chegando por lá, indagou a uns e a outros, recebendo sempre como resposta a negativa: “Não costumamos prender quem faz malhação! Chega por aqui, é advertido e solto!”. Mas, o amigo, cioso de seus compromissos quase filantrópicos, pediu para vistoriar o buque, como se costumava chamar a prisão, encontrando o mais feio de todos os homens conhecidos naquele lugar. E o delegado: “Se eu não pensava que esse era o Judas eu cegue!”.
Certa vez, no entanto, saiu com a turma – hoje seria uma galera –, sendo decidido pelo grupo passar na rua do Príncipe e tomar um chope. Era costume servir a bebida com uns ovos coloridos, cujo processo de cocção, francamente, nunca entendi. Isso caiu de moda. Disseram então a ele, ao feio, que já estava decidido a tomar dois chopes com dois ovos, que o plural de ovo era aberto: ovos. Sendo assim, achegou-se do balcão e fez o pedido abrindo o plural logo das duas palavras: dois chopes e dois ovos. Foi uma gozação sem par e ele, simplório como era, apenas explicou que se uma palavra tem a pronúncia como lhe fora dito, naturalmente a outra seria do mesmo jeito. Não lembrou que a língua, o nosso vernáculo, é cheio de atropelos de última hora, que funcionam mais as exceções que as regras. E por ai vai!
Dias antes da revolução de 1964 e da instalação da ditadura, conseguiu um emprego na previdência social, a partir de uma amizade de seu irmão com um mandachuva do PTB, partido, então, dominante. Empregaram-se os dois e o nosso personagem passou a ser colega de sala – imaginem isso! – de uma amiga de minha mãe, frequentadora habitual da casa de meu pai. Resultado, com a instalação do estado de exceção, o seu irmão foi demitido e ele mantido, razão pela qual ainda hoje é funcionário. Ignoro se já está aposentado, mas com toda certeza recebe proventos do governo. A sorte, pelo menos ai, lhe foi companheira.

Eis o vinho da bebedeira de Judas e as razões da prisão do traidor.
(*) Uma crônica pascal. Escrita sob a inspiração de meus amigos de infância e de adolescência, feios ou não. Desejando comentar, o faça no espaço do Blog ou use os e-mails pereira@elogica.com.br ou ainda pereira.gj@gmail.com Boa Páscoa a todas e a todos.