quinta-feira, 19 de junho de 2008

Com Sirene ou Sem Sirene?

O meu batismo de fogo foi um atendimento externo, mesmo que nas cercanias do pronto socorro, centro ou quase centro de Paulista. Tomei assento na ambulância e segui em direção à casa do chamado. A família estava em desespero, a filha mais velha, depois de ter rompido o namoro, estava dura, durinha, em cima da cama, os olhos vidrados e revirados, sem falar e sem bulir. Entrei e examinei a criatura. Tudo bem, refleti com os meus botões, mas a mudez era completa e o estado permanecia o mesmo. Tomei, então, a decisão: levar para um exame mais detalhado. Na verdade, a intenção era outra, a de buscar o auxilio do médico. Eu era, apenas, um estudante e nunca tinha visto aquilo. Que horror! Mas, como ali todo mundo entendia um pouco de tudo, consultei o motorista e ele concordou. Levamos, então, com o acompanhamento da genitora da paciente.
Chegando ao Samdu, comuniquei ao enfermeiro – enfermeiro prático – a minha iniciativa e pedi que convocasse o profissional de plantão. A resposta foi imediata: “O que? De jeito nenhum! O senhor vai aprender comigo, porque isso é uma besteira. Uma crise de histeria!”. E era mesmo! Aprendi ali e nunca mais esqueci o diagnóstico, simples e besta. Depois, ele me convocou para demonstrar a sua destreza e com um algodão embebido em formol deu um porre na moça, a qual, para se livrar o cheiro insuportável da substância química, levantou-se em um pulo e com isso sensibilizou a mãe e os que chegaram depois, todos sentados na sala de espera aguardando o desfecho. Os louros, não preciso dizer, foram meus, mas o mérito fora dele, do enfermeiro. E os próximos casos, daí pra frente, durante toda a vida, eu resolvi com a mesma destreza daquele personagem.
Certa vez, eu dormia a sono solto numa cama hospitalar reservada aos acadêmicos de medicina – os estudantes eram sempre mal acomodados –, quando fui acordado pelo mesmo enfermeiro: “Doutor! Tem um Zuza ai!” Meio leso e sem entender bem de que ou de quem se tratava, fiz a esperada indagação: “O que? O que é um Zuza? Ou quem é Zuza?” E mais uma vez o artífice das noites do plantão me gozou: “Um defunto, doutor!”. E lá fui eu constatar o óbito e encaminhar para a necropsia, como exigia a lei, para melhor esclarecimento do falecimento. Esse camarada era uma figura e como funcionário antigo da previdência sabia de muita coisa; coisas que conseguiu aprender nos anos de trabalho e pôde transferir como conhecimento prático aos seus discípulos mesmo que informais. E ninguém lembra desses anônimos! Nem eu, que disso reclamo!
Nós almoçávamos no clube dos tecelões de Paulista, de saudosa memória, porque não existe mais. O domingo no clube era morgado, sem graça, pelo geral, mas o sábado, ao que sabia, tinha um jantar dançante que encantava os médicos e os estudantes. E, certa vez, um velho amigo, colega de turma, decidiu trocar o branco do jaleco pelo colorido da camisa e convidou uma penitente qualquer para um rodopio no salão. Ao se apresentar, mentiu e passou o meu nome, em lugar do dele. Resultado, a moça era colega de minha namorada e eu precisei controlar a reação, sem dano algum, que fosse. Nem lá nem cá! E ele fez um acerto comigo: vindo por uma calçada e eu estando na mesma direção e no mesmo sentido, que me retirasse para o outro lado. E hoje, rimos às bandeiras despregadas com a história. Cala-te boca!
O motorista – ninguém lembra seu nome também! – era outro figurante excêntrico dos plantões. Corria feito um desadorado na ambulância, sem respeitar sinal de trânsito e sem querer saber de mão ou de contramão. Era um desabusado, um quarentão que me confessava os seus casos de amor, com as mocinhas da Ilha do Maruim, onde passávamos, freqüentemente, à toda, rumo ao Hospital da Restauração. E eu recomendando que fosse mais devagar, não havia tanta urgência assim, mas ele era como aquele outro que conheci e que dizia: “Não precisa me orientar em nada, fui motorista de ambulância!”. Ele era o próprio, o rei das ruas de Paulista, de Olinda e de parte do Recife. Tinha uma pergunta que era sistemática, bastava entrar no veiculo: “Doutor? Com sirene ou sem sirene?” E de nada servia a negativa, era com a sirene ligada que transitava.
Descobriu, porque eu disse mesmo, que a minha namorada morava em Santa Tereza, caminho dos nossos percursos. E quando se aproximava do lugar, sugeria que passando por dentro do pequeno bairro eu poderia me mostrar, se ele de sirene ligada fizesse uma pirueta qualquer, para deleite – segundo ele – da moça apaixonada pelo estudante, materializando aquela frase do meu colega de turma, apelidado de "Fofa": “Namore com estudante e case com doutor!”. Nunca fez, mas cá por dentro, confesso, eu tinha vontade que fizesse, isso me levaria a estufar a auto-estima. É! Os valores mudam! Hoje, essas coisas são tão pequenas, mas tão pequenas que nada mais representam no todo da criatura.
Doutor? Com sirene ou sem sirene ? Sem sirene meu caro! E nunca saimos sem o estridente ruído.(*) -

Eis uma história pitoresca dos meus anos de estudante. Com o texto homenageio todos os anônimos que passaram por minha vida, os motoristas e os enfermeiros, mas sobretudo os doentes, com os quais aprendi. Comente aqui, no Blog mesmo ou comente para pereira.gj@gmail.com ou ainda para pereira@elogica.com.br Ou não comente, não diga nada.