segunda-feira, 23 de junho de 2014

Outras fogueira e outros rojões

A cachoeira do açude grande.
A mata fechada. Pequena reserva.
Este será um São João diferente, um resgate de outras festas assim, urbanas; diferente do que estou habituado, ultimamente, porquanto tenho passado essas noites dedicadas ao santo em Aldeia, sacrossanto lugar de minhas tertúlias, tomadas aqui como encontro de amigos para fiar conversa.  É o que temos feito nos sábados naquele santuário, nos reunindo em grupo, no clube do condomínio ou em casa de um dos condôminos. Dessa forma, são contadas as piadas mais inocentes e registrados casos mais picarescos que pitorescos. Isso regado a vinho de boa origem. Há de um tudo naquele conjunto de casas do quilômetro 16, no qual um grande açude garante a umidade e o açude pequeno assegura a pesca.

Quadro de Murilo La Greca - A primeira
aula.
Mas, com essa mudança nos esquemas e nos destinos, lembrei, de logo, de uma noite assim, vivida nos começos dos sessenta, quando eu era ainda estudante de medicina. É que eu e o meu colega Jia, achamos por bem dedicarmos o feriado ao estudo das matérias dos inícios do Curso. E a noite dedicada ao santo tornou-se o tempo de um estudo em tudo muito complicado. Fomos, os dois, para a Faculdade, passando pelas fogueiras que ardiam e pelos rojões que zuniam nos ares, para estudarmos, especificamente, a histologia e a anatomia. A primeira restrita a algumas lâminas, de interpretação difícil e a segunda vista, da forma mais dedicada possível, no cadáver.

Lição de anatomia de Rembrandt
O diabo é que ai pelas 10 horas da noite, o vento forte da Cidade Universitária, ainda descampada, corria por entre as frestas das janelas das salas de anatomia e zunia, verdadeiramente, dando a impressão que aqueles cadáveres iam se levantar e exigir que a vida lhes fosse devolvida de pronto. Alguns dos estudantes, diante dos ares macabros que se instalaram nas salas de dissecação, resolveram voltar e foram para as suas moradias, com o objetivo de curtirem os derradeiros acordes do forró. Eu e o Jia, além de outros, ficamos por ali, estudando um detalhe a mais, para a prova da semana. E eu já não lembro desses quesitos e daqueles requisitos, mas passamos e fomos aprovados.

No comum dos tempos, quando eu era menino, a véspera de São João era meticulosamente vivida em minha casa. O milho, comprado na feira de Santo Amaro, era cuidadosamente raspado para se fazer a canjica e a minha avó paterna vestia-se a caráter, com o seu avental branco, para dirigir os trabalhos na cozinha, preparando a massa para o pé-de-moleque, que às 17 horas vinha presidir a mesa da sala de jantar. Era uma beleza, porque vinha repleto de castanhas de caju e a meninada cuidava em roubar uma a uma, contanto que se comesse toda a munição daqueles acepipes nordestinos. Ninguém podia esquecer as garrafas de guaraná, do Guaraná Fratelli Vita, de raro sabor à boca.

A molecada, porém, esperava pelas 12 horas da noite para fazer as adivinhações. Não se podia esquecer da faca na bananeira, cuja explicação de como interpretar os resultados me foi dada recentemente por Silvio Costa, amigo meu de anos pra trás. Usava-se uma faca que não fosse inoxidável e se tinha no dia seguinte uma mancha, como se fosse uma nódoa e ao interessado ou à interessada restaria descobrir a letra do pretendente na mancha. Era a mesma coisa que se fazia com a cera de uma vela numa vasilha d’água, que formavam também uma letra. Era uma forma curiosa de se antecipar o casamento.

A fogueira era acesa às 6 da noite, com o cuidado de não se perder a hora e a ocasião, porque se assim não fosse, o dono da casa morreria naquele ano. Era uma crença que havia! E um conjunto de gravetos e de madeira das estantes de meu pai, que tinham ruído à força dos cupins e das polias, inimigos célebres dos livros e dos papeis, queimavam até não poder mais, chegando à brasa.

      Assim eram as fogueiras e os rojões no antes do tempo.

domingo, 15 de junho de 2014

Outras copas e outras datas


Outrora as copas eram transmitidas pelas emissoras de rádio. Cada qual que se habilitasse a ouvir nessa ou naquela estação. Depois, quando a televisão chegou, ouvíamos o jogo pelo rádio e aguardávamos a chegada do vídeo, para que pudéssemos entender o desenrolar da partida, sabendo já do resultado. Era uma vibração geral, como hoje ainda acontece, mas com essa precariedade toda tecnológica. Os tempos mudaram e a transmissão em tempo real agora deixou pra trás as carroçáveis épocas do rádio e do vídeo - tape.

Na minha cabeça as copas sempre foram nesse tempo das festas juninas, daí a coincidência de eventos: os jogos e as fogueiras. Este ano há uma diferença, os chamados Black Bocs têm imperado e tome protestos, um em cima de outro. Também, não se entende como é que um país com tantos problemas, sobretudo de educação, de saúde e de segurança se atreve a gastar rios de Reais com as arenas. Ao que parece, houve desvio em quantidade razoável e as verbas públicas rolaram ao sabor da corrupção. Sendo assim, entende-se, muito bem, os protestos aqui e ali. O povo não aguenta mais tanto descaso!

As datas são as mesmas, embora as comemorações tenham assumido as transformações do tempo. O dia de Santo Antônio sempre foi motivo para as promessas, nas quais se rogava a interseção do santo por um casamento que valesse a pena. As igrejas se enchiam de gente suplicando o matrimônio. Aqui no Recife, a Igreja de Santo Antônio, aquela que fica na esquina da av. Guararapes, passava – acho que ainda passa – o dia inteiro aberta, para receber a gente interessada nos pedidos, que propiciassem a aproximação de um bom partido. Muitas vezes, o pedido era seguido de uma fotografia deixada no altar, para que houvesse continuidade no pleito.

Certa vez, achei uma dessas fotos, que não parecia ser de uma moça casadoira, mas a de uma senhora já mais velha, futura sogra, talvez, de alguém interessado em pedir e rogar. Não tive dúvidas e furtei a foto, trouxe para casa e preguei uma peça em parente meu que tinha uma namorada por perto. Fiz um oferecimento mais ou menos nesses termos: Estou lhe enviando a foto de minha mãe, sua quase sogra, com o vestido que você mesmo deu em seu aniversário! Foi um sarceiro danado, porque mandei entregar ao parente em casa da noiva. Valha-me Deus do céu, quase pega fogo, com a moça querendo explicações e indagando de onde era aquela sogra.

O São João era uma beleza, pois que o meu pai comprava fogos em quantidade e a minha mãe cuidava em soltar. Nunca entendi as razões para ele não acender os vulcões, que davam cor aos céus de minha infância? A grande verdade é que a minha mãe fazia esse papel! Uma fogueira mixuruca queimava, sempre, no começo do terreiro e fazia um papel importante, pois que se acreditava que o dono da casa, se não se acendesse a lenha, tombaria morto naquele ano. Em Olinda, na rua da namorada – hoje minha mulher – o ambiente era um pouco rurbano, para usar a expressão gilberteana e era comum as pessoas atravessarem a fogueira, depois do fogo apagar e as brasas ficarem firmes, acesas. Eu passei muitas vezes, mas hoje, francamente, não passo mais por dinheiro nenhum. Antes do ato quase heroico, as pessoas faziam uma oração, coisa de quem quer tornar mais dramático ainda o ato e o fato. 

E por ai vai!

         

sábado, 7 de junho de 2014

Tipos inesquecíveis

 




Nas cidades do interior, ensina o mestre Ariano Suassuna, há sempre tipos que são peculiares às ruas e ao lugar, os quais terminam se integrando ao chamado dia a dia da cidade. Gente pobre, digo eu por cá, sem eira nem beira, imagino, que perambula pelos quarteirões, assinalando a presença, apenas. Gente que depende de um naco de carne ali ou de uns mil reis acolá. Na metrópole, também, sobretudo nos bairros do centro ou mesmo em logradouros dos subúrbios, pontificam figuras assim, quase folclóricas, que terminam passando à posteridade, tal a força com que marcam as gerações contemporâneas. Conheci muitos desses tipos e só não os conheço mais, porque deixei o velho hábito de transitar pelo comércio ou de andar nas periferias, por conta das minhas ocupadas rotinas. Trago alguns guardados na memória, ainda, caracterizados,pois, com as roupas de suas fantasias ou com os gestos de seus desejos.

Como esquecer do altivo “Dono da Rua do Imperador”? Homem franzino e de tez morena, vestido com uma mistura de fardas das várias corporações militares, incluindo o quepe, o qual nem sempre combinava com a indumentária escolhida. Trazia, ainda mais, o peito coberto por condecorações, as quais atestavam de seu imaginário as bravuras, em campos de batalha de seus devaneios. Conversei com ele inúmeras vezes na Festa da Mocidade e terminei entendendo o seu desvario, na condição de hipotético proprietário de uma via pública e portador de patente hierárquica superior: General da Cavalaria Submarina! Uma coisa, verdadeiramente! Patrulhava a Festa toda, na condição de auxiliar o Cabo Marcha-Lenta, comandante-em-chefe do pelotão local por anos a fio. Mas, passava ao largo da ilicitude dos meninos jogando o dinheiro dos pais na viciada roleta. Perdendo em todas as rodadas!

Lolita era outro e talvez tenha sido o primeiro homossexual assumido do Recife. Brabo como uma capota choca, pronto para enfrentar quem lhe desacatasse os brios. Lutava com gente nova e gente velha, dava na Radiopatrulha, mas terminava curtindo as agruras do xilindró, na velha Sorbonne da rua da Aurora, como chamava Paulo Malta, sede da Secretaria de Segurança. Fazia os maiores saracoteios na via pública e aí de quem lhe interrompesse os espetáculos. Pelas ruas do centro, também, circulava o “Reitor da Universidade Livre”, um homem negro, alto e forte, gordo, vestido a caráter, de paletó e gravata, sempre, não raramente de colete. Usava uma medalha pendente no peito. Em uma solenidade da Universidade do Recife, que precedeu a atual, UFPE, não foi chamado para a mesa que presidia os trabalhos e retirou-se do recinto em sinal de profundo protesto. Não suportou a desfeita de se misturar aos comuns; comuns do tempo e da hora! Fez muito bem!

Na rua em que morava existiam alguns desses tipos inesquecíveis. Um desses, Sabará, por apelido, de quem nunca soube seu nome, sequer o prenome, comparecia, todos os dias, completamente embriagado e cantava a plenos pulmões, a cada manhã: “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer/Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou./ Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer./
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou...”. Fazia de Vicente Celestino o seu ídolo, mas nunca descuidou da ironia fina com que tratava os circunstantes. Foi assim, que me vendo sair para a Faculdade, carregado de livros e cadernos, não hesitou: “Quando eu era menino, ia para a escola com uma carroça de cavalo cheia de livros. Esse ai, pensa que vai ser gente com quatro livros e três cadernos.”. La pela rua em que morou minha mãe, ainda circula “Piuite”. Já morreu, teve missa de 7º dia, orações gregorianas e ressuscitou ao trigésimo dia, sob as lágrimas pungentes de Paulo Brusky. Rebate falso da violência reinante!

E Zé Ventinha? Um pobre homem com uma lesão no nariz e que se indignava se lhe puxassem o paletó. Fiz isso diversas vezes e corri, sempre, feito um louco, para me livrar da ira e do desvario. Deus me perdoe dessa maldade!