sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Retratos ao Léu

Diante da porta de minha garagem, ao léu, literalmente considerando, descubro dezenas de fotografias espalhadas, dando cor à rua, à calçada emporcalhada, ardendo quase em desejos masoquistas por uma varredura, nunca sensual, do poder. Não resisto à tentação de apanhar algumas, confesso, para identificar expressões ou para encontrar justificativas para ato assim, tão diferente do corriqueiro, o do desprezo pela imagem fixada no papel, instantâneos de vida perpetuados. Terminei achando que posso resgatar um pouco das histórias ou das estórias daquela gente, com certa fidelidade até, a tirar pelo colorido das coisas e a julgar pelas dedicatórias e comentários apostos no verso de muitas poses. Tempos e espaços de amores e de desamores, de ódio e de vingança, de paixões fincadas sobre laços rompidos e de desejos – quem sabe? – da reconciliação. Por sugestão, então, de leitor deste espaço, em noite de fogueira acesa, milho assado e canjica, transformo o episódio em crônica, dividindo devaneios, realidades de outras criaturas, filhas de Deus, igualmente.

Eis que mãe e filhos, brasileiros todos, da miscigenada raça gilberteana, moram agora em terras frias, gélidas, do Velho Mundo. Deixaram a pátria à reboque da paixão avassaladora de que se tomou o gringo brancoso, fidelíssimo acompanhante da família original em momentos assim, preparados para o milagre moderno da fotografia, quando viu a morena de olhos verdes. Mais pra feia que pra bonita! Representante magricela da província em paragens d’além mar! Narcisicamente orgulhosa da tez pigmentada pela melanina d’África, da íris lembrando o viço tropical de folhas de orquídeas em parasitismo florestal, à semelhança dela mesma, em exagerada simbiose com o gringo: amor e sexo, corpo e dinheiro. Filhos paridos da maternidade tupiniquim, mas incluídos agora na modernidade do continente antigo, ávidos, então, por anos de glória. Do futuro daquele homem, agregado à célula familiar, depende o porvir de todos, como está num dos oferecimentos. Esperanças pairando em ares distantes e horizontes desvirginados em grandes vôos do imaginário pueril! Adolescentes bailando ao sabor melódico de muitas harpas, valsas do devaneio, na marca do progresso e da técnica, desabituados, por certo, com o carinho paterno, que é a expressão, também, do afeto. Tudo isso, pode acreditar o leitor, dedicado ao pai ou ao marido de outros anos, da ex-esposa ou da “eis” mulher, na permissão do erro que vernáculo admite aos quase analfabetos de um mundo em terceiro lugar.

Tinha mesmo que jogar tudo fora, às favas, como fez, desesperado e desiludido, perdido, verdadeiramente, nas olimpíadas de um amor rompido, na disputa já vencida, também, do lúdico das paixões. De que serve rever assim, teria dito, ouvindo Dalva ou entoando com Núbia canções da perda! De léu em léu deve andar o homem largado, com as fotos que davam cor à lua, afastando pensamentos e afugentando momentos, enquanto a radiola, cantando desgraças, marca a sina. Não podia por cá comprar o vestido negro e brilhante que veste ou a folhagem a esconder-lhe a face, tampouco bilhetes aéreos e passagens em confortáveis trens. Ah, passeios, nunca, praticamente, os teve, senão ao zoológico tupiniquim, tão diferente daqueles que via. Visitas a cachoeiras muito menos, congeladas, como a da foto, somente em sonhos, no onírico da vida.

Em permeio à felicidade emergente, pensa ela – imagino – reconquistar amores e repor pendores, enviando as poses. Ou alimenta o ódio, praticando a vingança com a arma do instantâneo e o projétil veloz da postagem. Retratos ao léu, eis o que descobri na porta de minha garagem.

(*) Crônica publicada em 29 de junho de 1992, depois de ter encontrado na porta de minha garagem, na Boa Vista, dezenas de fotografias do passeio de uma família na Europa. Uma família brasileira, cuja mulher, certamente, deixara o marido e se reunira a um senhor estrangeiro. Fotos oferecidas, quase todas, fazendo pouco do ex-marido, em péssimo português.
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