sábado, 3 de maio de 2008

Ainda o Pitoresco nas Histórias de um Reitor

Para o Gabinete do Reitor, vejo agora, convergiam todas ou quase todas as ingresias do Campus e havia, também, o que seria em patologia as chamadas barafundas autóctones, isto é, aquelas nascidas no seio do próprio lugar, em tudo muito apropriado para esses desalentos do espírito. O clima era de aparente tranqüilidade, havia – ainda há – uma sala de espera, verdadeiro hall de entrada, no qual estavam bem acomodadas as secretárias e onde se podia atender os que chegavam e sobretudo responder às ligações. Os telefones não paravam, era uma loucura e as meninas davam conta de tudo com uma invejável competência. Recebiam as pessoas ao vivo, falavam na invenção de Grahn Bell e respondiam e-mails, transmitiam fax e recolhiam esses fotográficos papéis. Ainda por cima, precisavam estar a postos para os chefes todos. Mais chefes que índios, naquela aldeia nem sempre de paz.
E aquele dia não fora de tranqüilidade. Uma das funcionárias da frente entrou em minha sala e disse: “Tem um tarado ai! Está olhando as mulheres quando vão ao banheiro! O senhor precisa resolver isso!”. Mas, como? Por que eu? Foram as indagações iniciais. Afinal, eu não era da polícia, não era psiquiatra e não tinha a menor experiência com tarados. Ou tinha?! Será que tomaram conhecimento de certas e determinadas incursões quase pueris de minha parte? Aquelas idas à Festa da Mocidade, para assistir aos ensaios das peças de Walter Pinto, quando nas laterais do teatro via – ao vivo e a cores – uma mulherada linda, vestida em biquínis que hoje seriam elogiados pela mídia conservadora, cantando: “E o boi!/Pra onde é que ele foi/E o boi!...”?. Ou será que souberam de um companheiro dessas tardes distantes, queixoso com um colega seu, tarado também, que se aproximara, exageradamente, de sua irmã? E me perguntava se era castigo dos céus? Não sei! Foi a resposta que dei!

O tarado, na realidade, como pude apurar depois, seguia a penitente precisada dessa utilização sanitária e pinotava na meia-parede do banheiro masculino, deslumbrando-se com o quase nada que via. Melhor tinha sido a visão daquele menino, que na pensão da rua Barão de São Borja olhara Dona Matilde tomando banho. Ela ficou enlouquecida de tanta satisfação. É que sendo uma solteirona convicta, com mais de cinqüenta e menos de sessenta, ainda sustentava a esperança de casar. Coitada! Nunca usou véu, nem grinalda! Éramos estudantes de medicina e no posto de saúde dávamos expediente à noite, no Serviço de Domésticas e ela nos servia de atendente. Chegou exultante e reuniu a estudantada para noticiar o grande feito. Disse a mim: “Dr Geraldo! Eu vi! Ele me olhou pela fresta da madeira e eu enxerguei a réstia dele por baixo da porta.” De nada adiantou a felicidade, efêmera como foi e sempre parece ser! Continuou no caritó!

Melhor ainda, posso assegurar de camarote, aconteceu comigo, no tempo das grandes valsas. Quando Maria Baixinha tomava banho, nunca descuidei em olhar pelo buraco da fechadura. Enchiam aquele orifício minúsculo com papel higiênico, atochando-o com uma massa de matéria fibrosa, como está no Aurélio, para impedir a visão, às vezes incauta, de um voyer de ocasião. Nada que um clip aberto não resolvesse. E eu cheguei a parodiar Bandeira – que atrevimento! – versejando assim: “Maria Baixinha era tão pequenininha que cabia todinha/Nuinha/Nuinha/No buraco da fechadura do banheiro.” Ela era, mesmo, toda pequenina, mas toda bonitinha, bem divididazinha e bem feitinha. Uma gracinha! Na sexta-feira, porém, depois daquela higiene corporal habitual, seguia-se a confissão auricular ao cura da paróquia e o homem, na sua perplexidade eclesiástica, repetia: “Outra vez! Seu caso não tem solução!” Acho que não era bem assim!

Mas, chamei o tarado, iniciante talvez, na arte de ser voyer e de descortinar a boniteza da mulher na solidão do ato. Melhor quando no isolamento de um banho, com o sabonete escorregando, caindo feito muçu. Por mais que se abaixe e consiga pegar no apetrecho de limpeza, mais encrencado fica. Foi por isso mesmo, que o poeta Gilvam Chaves cantou a beleza feminina numa cena inusitada: a do enfarte do espelho. A mulher era tão bonita, mas tão bonita, que o espelho não suportou e se espatifou com a incrível surpresa do corpo desnudo sob o chuveiro. Falei sério com ele e verbalizei: “Há um tarado por aqui! Vem olhando as meninas no banheiro!” E ele prontamente: “Eu não sou! Mas, estou disposto a lhe ajudar a encontrar!”. O homem tinha uma pabulagem inteligente. Veja, continuei, eu confio, firmemente, no senhor, mas é melhor que desapareça, porque estão pensando que seja o pervertido e vão lhe prender. Daqui que possa explicar, muita água já passou. E a criatura nunca mais apareceu!

E uma de minhas tias, certa vez, com os rigorosos pudores de uma quase nonagenária, sem saber dessas desgraceiras todas da vida, reclamou de um quadro em minha sala, uma tela de um pintor famoso em Pernambuco: Ploeg. E eu: "Pior, minha tia, se olhar a pintura por trás!" E ela: "Não precisa se dar ao trabalho!". Claro que a inspiração do artista só comportava uma face.

(*) - Texto escrito como forma de lembrar o pitoresco ou o gracioso no dia-a-dia pesado, nos meus tempos de Vice-Reitor. Crônica que gostaria de oferecer a algumas pessoas, como cheguei a ensaiar, mas por escrúpulo, apenas, deixo de fazer. Todos e todas que compartilharam comigo os anos de convívio, no Gabinete e no Gouveia de Barros, sintam-se homenageados ou homenageadas.