quarta-feira, 29 de julho de 2009

Asa Branca

Nos ares do Recife correm soltos os acordes de Gonzaga, entoando a poesia de Zé Dantas, de Humberto Teixeira ou de João Silva, chova ou faça sol. Lições que o tempo não há de destruir. Das convivências humanas e dos convívios com a natureza, sobretudo com os sertões e os agrestes secos, esturricados, onde "...a lama virou pedra/E o mandacaru secou/Quando a ribaçã de sede/Bateu asas e vuou.../". Mas, de tudo o que cantou, nos versos dos amores e dos desamores, impressiona a volta pra casa, o encontro com Januário, com quem aprendeu os segredos dos oito baixos. “Quando eu voltei lá no sertão/Eu quis mangar de Januário/..../Mas antes de fazer bonito de passagem por Granito/Foram logo me dizendo/De Itaboca a Rancharia, de Salgueiro a Bodocó/Januário é o maior/.../Luiz respeita Januário/...”
É isso, o pai nem sempre é reconhecido pelo filho, senão quando a voz das ruas chama a atenção para um saber assim, transferido nas horas de casa, alertando, então, a criatura que se julga nos patamares dos êxitos e das glórias, tantas vezes inglórias. Mas, Luiz teve a grandeza de contar e de cantar, aos quatro ventos, a sua sina, a de ter desprezado os dotes de Januário e a de reconhecer, em seguida, a grandeza do pai, antecipador de si próprio, em tardes ensolaradas, enquanto consertava sanfonas alheias ou em noites de lua cheia, arrancando do fole a melosa sonoridade do baião. Toda gente teve ou tem um Januário, pessoa que muito ou pouco transmitiu a experiência do existir terreno, marcou os dias de infância e aqueles da adolescência, traçando caminhos e apontando estradas, ajudando a superar percalços, que são pedras nas alamedas do cotidiano.
E Gonzagão, voltado que foi para as paixões femininas, chorou as perdas e exaltou a mulher, a de seus desejos e de suas vontades, nem sempre satisfeitos. Eis o pranto de quem não conseguiu firmar parecerias: “Nem se despediu de mim/Nem se despediu de mim/Já chegou contando as horas/Bebeu água e foi-se embora/Nem se despediu de mim/....” E no poema do Assum Preto, cego dos olhos pra cantar melhor, faz a metáfora das rupturas: “Assum Preto, o meu cantar/É tão triste como o teu/Também roubaram o meu amor/Que era a luz dos olhos meus...” Mas, o romantismo do homem aflora nos versos de Zé Fernandes: “.../Foi numa noite igual a esta/Que tu me deste o teu coração/O céu estava, assim em festa/Pois era noite de São João/Havia balões no ar/Xóte, baião no salão/E no terreiro/O teu olhar, que incendiou/Meu coração/...”
Na flexão da rima de Zé Dantas está a beleza dos sertões recuperados, quando volta a asa branca, sob a força luminosa dos relâmpagos e a sonoridade retumbante dos trovões. O sertanejo, então, um desertor das secas, chega e vem cuidar da plantação. Para o poeta foi Deus quem se “alembrou” de mandar a chuva. E na improvisação da hora, insiste que o povo segue alegre, mais alegre que a natureza. Que beleza! Na criação das rimas, forjando o poema que virou cantoria, o autor foi buscar na memória a imagem de Rosinha: “...A linda flor do meu/Sertão pernambucano/...” E convoca o vigário, pois que se não forem atrapalhados os planos e a boa safra chegar, com certeza, vai casar. E depois, já com Helena das Neves tomada por esposa, deu o nome de Rosinha a uma de suas filhas. Se foi de boa lembrança não se sabe e não se viu!
Há vinte anos o homem se foi, encantou-se na dimensão definitiva, mas continua no dia-a-dia da gente do Nordeste, no embolador das feiras, que resiste nos rincões matutos, nas caatingas sofridas e nos desertos desolados. Na palavra de esperança do sertanejo de muita fé, que deposita no banco dos céus as economias de seu espírito, prometendo sacrifícios d’alma, esforços paridos do imaginário, se as nuvens que enchem o firmamento se abrirem, deixando correr as lágrimas de chuva que molham os campos, fazem crescer do gado o capim. Que permitem o milho botar boneca e o feijão ramar, de cada lado uma vagem. Deus permita que chegue a asa branca!

(*) - Uma homenagem a Luiz Gonzaga, o rei do baião, o cantor dos sertões, dos convívios e das mulheres. Comente no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Ciência e Fé

O momento de agora, de um amanhecer preguiçoso nos domínios de Aldeia, com a chuva compondo a paisagem de uma quase meia-luz e o frio garantindo o aconchego necessário à reflexão, dedico-me à leitura de um livro especial: "Quando a Ciência Encontra a Religião". Talvez o autor – Ian G. Barbour – realize uma tentativa de resgate de minha fé, tão frágil como é. Ele próprio um entusiasta dessas aproximações modernas entre o fato científico e as posturas religiosas, mais flexíveis e menos rigorosas. Profundo estudioso das relações entre a fenomenologia carregada de ocorrências não explicadas pelos postulados naturais e um Deus que não precisa ser mágico ou bruxo, antes um espírito de absoluta completude, que usa as leis da natureza para criar.
Barbour mostra o quanto as relações entre a ciência e a religião foram variadas. No século XVII mostraram-se amistosas, já que a revolução científica foi obra de estudiosos que eram cristãos devotos. Mas, relações hostis nos anos 1800, em que pese o reconhecimento de Darwin a propósito da interveniência divina na evolução, mesmo considerando essa participação no enfoque do geral e menos no detalhamento dos passos. No século XX, entretanto, buscou-se uma interação maior entre a ciência e a fé. Por certo, a maior flexibilidade da Igreja, a partir de João XXIII, influenciou a desejada proximidade. E neste milênio que ainda emerge, há uma inclinação nítida a um intercâmbio cada vez maior entre cientistas e teólogos. Queira Deus não venha o cardeal alemão atrapalhar!
Tudo porque determinados fenômenos não se explicam pelas leis conhecidas. Exemplo disso é o Big-bang, a grande explosão do universo primitivo, a partir de uma minúscula bola, resultando na enormidade do macrocosmo. Os postulados da física não justificam essa fenomenologia original e só a intervenção de uma força maior, suficientemente capaz de ultrapassar o natural das coisas, pode justificar a gênese. De outra parte, se a física clássica é reducionista e determinista, sobretudo quando propõe que o comportamento de cada objeto resulta do conhecimento preciso de seus componentes, a física quântica admite a incerteza intrínseca, demonstrando a impossibilidade de previsão dos eventos a níveis atômicos e subatômicos. E a física quântica nega a possibilidade das reações de um objeto resultar da soma das partes, sem contemplar as leis do sistema.
Já na questão da evolução, fruto da observação e das reflexões de Darwin, parece possível crer, firmemente, no processo de aperfeiçoamento das espécies e no surgimento de novos seres, desde as formas mais rudimentares de vida ao homem, sem se afastar da idéia de Deus e das crenças religiosas. É medieval a posição estática em relação ao Universo e há uma tendência moderna por parte dos teólogos em aceitar uma postura dinâmica da criação continua e de um Deus que é imanente à natureza e que também transcende. No século IV, inclusive, como refere Barbour, Santo Agostinho fez um comentário a propósito dos choques registrados entre a interpretação literal da Bíblia e o conhecimento provado, recomendando, em caso de conflito, uma interpretação metafórica do livro sagrado.
Deus permita que os homens de boa vontade reconheçam a transcendental existência e abandonem o mundano das coisas e a tão freqüente teologia do sucesso.





(*) - Crônica de minhas tentativas de retorno ao seio da religião católica, depois de anos e mais anos afastado. Comente: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gj@gmail.com

terça-feira, 14 de julho de 2009

Subcarimbador Geral

Depois de formado fui fazer um curso em São Paulo. Viajei de ônibus durante quase três dias e chegando à cidade que se autodenomina a locomotiva do País, fui descansar das mazelas da estrada, mas minha mulher sugeriu o inusitado: queria passear. Gostaria de conhecer a noite, de saber do centro e de ter o contacto inicial com o burburinho de que se fala. Não estava disposto a nada disso, mas como deveria começar uma vida de muitas saídas e de muito estudo, resolvi atender e tomei o destino indicado. Desci do coletivo em pleno centro e fui andar por ali, espairecendo, como diria o caipira bem versado. Resolvemos, ao cabo de algum tempo, jantar e escolhemos o restaurante. Notamos, de logo, que não havia toalhas nas mesas e que a nossa entrada por lá causou espanto. Sentamos e pedi o cardápio. O garçom quase toma um susto, verbalizando o seu sobressalto: “Cardápio?”. Finalmente nos pôs a par do que havia e nos serviu.
Enquanto comíamos uma pizza, cujo sabor não me ocorre lembrar, notamos que havia um casal à nossa retaguarda e um homem solteiro – digo melhor sozinho – aproximou-se da mulher e a trouxe pelo braço, roubando-a do companheiro inicial. Reação não houve e um novo casal se formou. Ao nosso lado duas moças se abraçavam e vez ou outra ensaiavam um beijo na face. De súbito, beijaram-se na boca, demoradamente. Fiz uma reflexão e cheguei à conclusão óbvia: estávamos na zona do baixo meretrício. Ora, se percorremos parte da Av. São João e tomamos a direção de uma rua transversal, estávamos em plena zona mesmo. Recomendei à patroa que não olhasse em volta, que não se virasse e que se abstivesse de qualquer comentário, afinal sentamos em plena área conflagrada. No dia seguinte, contando a história no pensionato, a família ficou perplexa e o almoço serviu para os comentários dos riscos que passamos. De toda forma, como disse depois do guarda sanitário: “Boi em terra alheia até as vacas lhe dão!”
Eu ia todos os dias às aulas, saia muito cedo de casa – uma república na Teodoro Sampaio –, subia o quarteirão e antes do cemitério tinha acesso à Faculdade de Medicina. Sentava e participava da programação toda. Sucede que nesses momentos em tudo didáticos e pedagógicos, os professores e os colegas não dispensavam a gozação, pois me tratavam, de hábito, por baiano. Em certa tarde, depois de ter sido apresentado um caso clínico de Febre Amarela, cujo diagnóstico eu não daria de forma alguma, porque da doença só sabia da cor, o nobre e ilustre professor disse: “Baiano! A sua opinião?”. Respondi de pronto: “Prezado! Eu sou pernambucano!”. E o penitente ainda teve coragem de dizer que tanto fazia Pernambuco como Bahia. Homem tenha paciência, quase digo. Era esse teitei o tempo todo!
A convivência com os colegas, porém, era ótima. Havia um grupo grande de brasileiros e alguns – não lembro quantos – estrangeiros. Um desses, em jantar de despedida que nos foi oferecido, já não sei mais nem por quem, aproximou-se de mim e indagou o que fazia no Recife, se atendia em hospital ou se trabalhava em saúde pública. Esclareci que atuava nas duas frentes de trabalho e o meu interlocutor de ocasião verbalizou: “Noto que é importante na cidade! Que cargo ocupa?”. Não tive dúvidas e inventei um lugar para mim em Pernambuco: “Eu sou subcarimbador interino ad hoc, no exercício da carimbadoria geral!”. Ele, então, entusiasmou-se e disse que sendo da Organização Mundial de Saúde (OMS), gostaria de marcar um encontro comigo em Genebra, para o final do ano. Estávamos em abril. Ora, meu caro amigo e colega da pós-graduação, respondi delicadamente, estou habituado a marcar encontro na frente da igreja de Santo Antônio, na praia do Pina, nas areias de Boa Viagem, em Santo Amaro, mas em Genebra, francamente, não dá. Não sei nem onde é direito. Ele queria me contratar para a Organização, para trabalhar na Ásia, pras bandas do Vietnam ou nas proximidades da guerra. Seria um emprego pra valer, no qual além do bom salário e do passaporte de diplomata, teria direito a voltar ao Brasil uma vez por ano, com a promessa inclusive de um salário adicional para a patroa. Ela queria de todo jeito ir, mas eu, com os meus temores, preferi ficar no Brasil, encafurnado no Recife. E assim foi! Nunca mais vi o meu quase anfitrião na OMS.
(*) - Vou encerrar por aqui as minhas crônicas pitorescas. A partir da próxima hei de tratar de outros assuntos, de outros temas. Noto que o leitor saturou-se com o lado pitoresco de minha vida e pouco escreve, pouco comenta. De mais a mais, o repertório vai se exaurindo e é tempo de mudar para novas crônicas e novos temas.Vou arrumar os trapos, reunir os farrapos e juntar tudo em livro, até o final do ano. Desejando comentar, não hesite, use o espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com O autor aperciaria se a decisão fosse discutida e se a temática nova fosse sugerida.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

“Chorando por que?”

Sou do tempo em que ia se concluir o Curso Primário em colégio diferente, contanto que se pudesse, ali mesmo, fazer o chamado Exame de Admissão ao Ginásio, extinto no hoje do tempo. Sendo assim, sai do Grupo Escolar “João Barbalho” no segundo semestre, ai pelo mês de setembro ou já no mês de outubro e fui matriculado no Colégio Nóbrega. No primeiro dia de aula, voltei para casa e dei a triste notícia a meu pai: “Tirei zero no ditado!”. Foi um horror, mas me expliquei a contento, imagino, pois justifiquei que o professor falava de uma forma diferente, completamente diversa do que aprendera. E meu pai justificou que o sotaque do homem era o de Portugal, por isso pronunciou, como ele, varias palavras e eu fui me habituando ao vernáculo desigual. Era o Irmão Fonseca, homem mais velho, muito alto e magro, vestindo enorme batina preta e que nunca largou a vara de bambu com que batia nos rebeldes.
Levei dessas tabicadas, como se costumava dizer, em variadas ocasiões, mas nada me incomodava tanto como os castigos do Irmão Fonseca. Ora, ficar virando para a parede, de braços abertos, como o Cristo, horas a fio, foi das punições a que mais me doía. Era horrível, porque com o passar do tempo o peso dos membros superiores ia se tornando insuportável e o penitente deixava que caíssem, ao bel sabor da gravidade. E ainda pior, era ajoelhar-se em caroços de milho. Três ou quatro caroços, a depender do erro ou da falha, em cada um dos joelhos. Uma hora assim valia como expiação pelo pecado do comportamento inadequado em sala de aula. Mas, certa vez, já era menino mais taludo, meu pai me contou que fora professor no Colégio Nóbrega e punira um aluno que se atrevera a responder a presença em canto gregoriano. Não tive dúvidas e prometi: “Amanhã desconto a petulância!”.
No dia seguinte, esperei para responder e me esmerei no eclesiástico cântico: “Preeeeeeesente!”. E o professor não teve dúvidas: “Pra fora! Apresente-se ao Subdiretor!”. Quase não escrevo a última palavra, tal as mudanças que ocorreram. Mas, é assim mesmo. Como não acordei para tratar da reforma ortográfica e sim para escrever uma crônica, volto ao tema. Indagou-me o padre as razões para ter sido tão inconveniente. Contei que fizeram isso com o meu pai e eu estava, apenas, cuidando em me vingar. Não foi bom! Veio um sermão sobre a vingança que me lembrou as cantigas de Maria Baixinha: “Eu gostei tanto, tanto, quando me contaram/.../O remorso, talvez, seja a causa do seu desespero/.../Só vingança, vingança, vingança/Aos santos clamar/.../ Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada/”. Ouvi aquilo, dei o dito pelo não dito, e voltei para a sala. Eu sempre tive uma fantasia ao lado para ilustrar os meus momentos mais difíceis. Não sei se foi bom ou se foi ruim! Mas que tinha, isso tinha!
Na ordem dos jesuítas o prestigio dos irmãos era menor, certamente ainda o é, porque não ministravam os sacramentos e tinham como atribuições os chamados ofícios domésticos. Na verdade, ofícios menores, pois a sacristia era entregue a um desses, bem com a horta. Lembro que o Irmão Pires era o responsável pela agenda das missas e pela manutenção da igreja ou da capela, como queiram chamar, além de ser o fabricante das hóstias. Era ai que eu me fartava, levando pra casa os retalhos do trigo, cortados para dar forma às partículas a serem consagradas. Era uma lata de biscoitos cheia para comer. Aquilo, porém, não me contentava. Afinal, eu estava numa fase de transgressão e precisava fazer alguma coisa errada para caracterizar a violação da ordem. Foi assim que passei pelas grades da sacristia, numa tarde qualquer, entrei no lugar e fiz um furto. Tirei inúmeras hóstias e levei pra casa. O meu pai indagou, conforme os costumes, como tinha conseguido o material quase sacro já. Não falei do furto, neguei a priori e disse que tinha recebido de presente. Fartei-me de tanto comer o trigo puro do pão ázimo e na segunda-feira aguentei a investigação. Ninguém sabia quem fora e eu nunca me acusei.
No cotidiano das coisas a situação era pior. Um dia, fiz uma anarquia qualquer em sala de aula e o professor mandou sair. Fui lá fora e na quadra de basquete consegui outra camisa. Voltei e o mestre não hesitou: “Mandei o senhor pra fora agora mesmo!”. Eu respondi na bucha: “Eu? O senhor está enganado! Quem saiu daqui agora foi o meu irmão gêmeo!”. E o lente – iludido, coitado! – pediu desculpas e mandou que entrasse. De outra feita, o professor de geografia mandou que todos abrissem os atlas. De minha parte, como não tinha o livro em questão, decidi que melhor seria abrir no choro, ao que o docente indagou: “Chorando por que?”. Respondi de logo: “É que meu pai não tem dinheiro para comprar e eu não posso estudar os mapas!”. Era mentira, claro! Aquilo tocou o coração do homem e eu fui autorizado a frequentar as aulas sem incomodo algum. O meu atlas chegou ao final do ano íntegro, como foi comprado.
(*) - Foi um tempo bom! De muito aprendizado e de convivência salutar! Agora, distante desses anos da adolescência, integrando o Conselho Estadual de Cultura, vou assumir o processo de tombamento da Capela de Nossa Senhora de Fátima. Ainda não estudei o caso, mas estou aberto às sugestões, sobretudo de ex-alunos. Comentários para o Blog, diretamente ou para pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com