quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A Tragédia Anunciada ou A Comédia Denunciada

O meu pai estava muito doente. A bruxa de todos os horrores se aproximava mais e mais. Eu ia todos os dias em sua casa, providenciava os médicos necessários às medidas paliativas e fiava a conversa que desejasse. Afinal, compreendia a situação e a gravidade da hora. Mas, certa vez, a minha mãe estava quase em desespero, haja vista as ligações telefônicas que vinha recebendo do cemitério da cidade, a propósito de uma tia minha, tia paterna. É que tendo falecido já há algum tempo, não havia como ficar na sepultura que lhe estava reservada, senão com a autorização por escrito de um filho, cujo nome constava de seus documentos. Não havia jeito da funcionária entender que o meu primo tinha morrido também e não poderia firmar o compromisso desejado pela criatura. E a minha mãe, naquele aperreio todo do momento, perdera a paciência já com aquela figurante quase macabra de uma cena muito próxima do funesto.
De mais a mais, o filho dela fora em vida um doente mental que quase enlouquece, também, a mãe e sendo assim, não houve como aprender a ler e a assinar o próprio nome. Era surdo e falava muito pouco, quase sem conseguir se expressar. Tinha uma mania por relógios, os recebia íntegros e em pleno funcionamento, desmontando-os por inteiro e nunca conseguia remontá-los. Quando se descobriu este detalhe, passou-se a levar relógios de pulso que já estivessem quebrados e com isso se distraia. Era de seu hábito, quando tinha acesso, folhear revistas semanais, como O Cruzeiro ou Manchete, que circulavam no Brasil todo. Mas, a minha tia, mãe cuidadosa, arrancava as páginas nas quais estavam fotografias de mulheres em trajes menores. Mulheres que hoje estariam sentadas nos bancos da praças, porque os conceitos de moral mudaram! Não sei as razões, mas todo doente dos nervos tem especial predileção por mulheres.

Vez ou outra ia vê-lo nas masmorras do hospital psiquiátrico em que vivia. Ele me identificava de logo e me recebia com a maior festa. Fazia um sinal característico de parentesco, friccionando os dedos indicadores das duas mãos. Os companheiros de enfermaria se achegavam e se candidatavam a um trocado que fosse ou a outra lembrança qualquer, capaz de os distrair por alguns minutos. Às vezes dava e às vezes não dava! Quando entrava no hospital perto das 18 horas, me arriscava sempre a ouvir um terço rezado pelas irmãs na capela do nosocômio enorme e irradiado para todos os setores, através de auto-falantes distribuídos pelos corredores. Era um horror à parte e só contribuía para piorar o estado de saúde daquela gente tão sofredora. Gente – vejo hoje – que não viveu, que não teve qualidade de vida suficiente. Gente sofredora e marginalizada.
Mas, eu tinha que resolver a questão de minha mãe ou de minha tia – mais de minha mãe que de minha tia –, fosse como fosse. E fiz uma reflexão curta, tendo a idéia que me parecia brilhante, a de passar um telegrama sobre o assunto ao Secretário de Saúde, responsável, então, pelos chamados campos santos do Recife. E a redação do documento ficou mais ou menos assim: “Meu pai gravemente enfermo. Administração cemitério incomodando minha mãe por autorização manutenção tumba minha tia. Desejam assinatura filho dela já falecido, doente mental em vida e analfabeto. Encareço indicar centro espírita credenciado, capaz manter contacto com aludido defunto, alfabetizando-o e obtendo a desejada assinatura.” Enviado o telegrama, ao que soube depois, quase provoca uma apoplexia na autoridade. Mas, a servidora municipal que tanto incomodava, calou-se para sempre.
Eis a tragédia anunciada: a de meu pai. Ou eis a comédia denunciada. Atores de um único ato no teatro da existência: o exercício da vida e a prática burocrática da morte.