sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Um bafafá do cão

Dizia meu pai que as pessoas pedem uma graça e deixam o retrato, imaginam que dessa forma a imagem continua pedindo em nome do penitente ou da penitente. Realmente, certa vez atendi uma figura que trouxe a fotografia de sua mãe e verbalizou: Doutor! Como a minha mãe está impossibilitada de comparecer, eu trouxe o retrato dela.”Eu achei aquilo ótimo e com muito jeito disse a ela que eu não podia atender a sua genitora olhando somente a foto, não era milagre de Deus ou dos santos. E a criatura conformo-se, levou a fotografia de volta e providenciou a vinda da mãe. São passagens que não acontecem mais, porque o tempo está diferente e globalizado, o que se passa na Paulista, em São Paulo, repete-se na Encruzilhada de São João, isto é hábitos e costumes são os mesmos nesses anos de pós-modernidade.
Agora, depois que comecei a estudar os ex-votos, sobretudo aqueles de Igarassu, vistos e descritos pelo Imperador Pedro II, tenho visto retratos postos nos santuários a título de agradecimento. Isso não dispensa a tese de meu pai de que antes mesmo da graça a imagem ficaria pedindo. Pelo contrário, reforça a afirmativa. Mas, sendo assim – se fica para pedir – foi o caso daquele retrato ¾ que encontrei na Igreja de Santo Antônio, antes da Missa do Monsenhor Nogueira, posto assim, junto a uma imagem qualquer que já não lembro qual. Eu confesso que vi aquilo e tive vontade de tirar, de embolsar, para fazer uma brincadeira qualquer por ai. Trouxe pra casa o material retirado da Igreja; material com as bordas picotadas, como antigamente. O meu pai recomendou: “Volte com isso e bote onde achou!”. Não voltei!
Tive a ideia de azucrinar o juízo de namorada muito dedicada de primo ilustre – já àquela época ilustre – e preparei um pequeno bilhete com dizeres mais ou menos assim: “Meu querido Felisberto. Ai vai o retrato de sua ex-sogra, a quem você tanto dedicou-se, dando-lhe inclusive o vestido da foto. Guarde essa imagem como prova do nosso amor. Maria da Anunciação”E como havia na rua um camarada em franco processo de transformação de católico não praticante para protestante de hábitos diários, cuja prática incluía andar com um exemplar da Bíblia sob os braços, mandei que entregasse ao primo diante da namorada. Foi um bafafá do cão e quase o namoro termina, rompido pela simples foto tirada da igreja.
 
No fim, no fim, os Cr$5,00 do trato pagaram o serviço. Esse camarada é o mesmo que uma vez ligou para o meu celular e disse: “É o seu amigo Valter”. Ora como ia identificar, passados tantos anos, aquele prenome? Mas, quando verbalizou o apelido, “Coruja” não houve mais dificuldades. E por coincidência eu estava numa igreja também.

Um texto escrito depois da lembrança de episódio ocorrido nos idos e vividos anos sessenta, quando encontrei numa igreja - Santo Antônio - um retratinho 3/4 de penitente, que segundo meu pai deixara a foto pedindo a graça de seus desejos. Os leitores que desejarem comentem no espaço mesmo do Blog ou o façam para os e-mails pereira@elogica.com.br ou ainda pereira.gj@gmail.com A crônica tem sido reproduzida pelo Jornal A Besta Fubana.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

NETITE

O vocábulo talvez tenha sido criado pelo meu pai, o qual diante do nascimento de tantos e tantos netos considerava-se tomado pela síndrome da Netite. Procurei nos dicionários todos a que tenho acesso o sentido da palavra e nada encontrei de positivo. O mais próximo que cheguei do vocábulo foi: netita. E a explicação era vaga. Dizia respeito apenas a neto ou neta. Mas, a verdade é que vou ingressando nessa legião dos que têm o acometimento afetivo. Só os avós (o avô e a avó) podem ser tocados pela síndrome. E é o que sentimos nessa hora de todas as transformações.  Vem por ai mais uma para se juntar à legião parental.
Este é um sentimento único: o de ser avô ou o de ser avó. Pai e mãe cumprem a missão de educar e criar, precisam estar sempre atentos aos rebentos, os quais dependem em tudo desses ancestrais próximos. É a alimentação, a higiene, a roupa e os demais afazeres: levar à escola e de lá trazer, de providenciar as vacinas e os médicos. E por ai vai! Os avós não estão disponíveis para receberem os netos em casa e apenas brincam com esses pequeninos. Riem e fazem rir, jogam e aceitam as barbeiragens dos meninos e das meninas. E não têm compromisso com nada mais nesse mundo de meu Deus! Se ficam em casa, para que os pais saiam e cumpram também seus compromissos, há sempre uma babá por perto! E os avós de hoje são diferentes, sobretudo as avós, porque jovens e bonitas.
Que coisa boa ter avós. Eu me lembro muito dos meus. Do avô materno e da avó paterna. Aquele era uma figura ótima e eu seu afilhado. No dia de meu aniversário, esquecendo a data em função das inúmeras atribulações de sua vida, era lembrado por um amigo da rua e ai, pode crer o leitor, eu ficava abonado com o dinheiro que tirava de sua carteira. Foi ele que me fez conhecer o mar. E eu meio tonto com o movimento das ondas, ouvi dele a explicação de que aquilo passaria. E, é claro, passou! A minha avó, também, era uma personagem que nunca poderia dispensar em minhas lembranças. Foi ela que disse a meu pai, diante de uma namorada que pintava os olhos: “Geraldo está namorando com uma moleca de rua! Imagine que pinta os olhos!”. Veja só! Tratava-me por Geraldinho, no comum dos dias e não admitia que batessem em mim.
Pois é, amigo leitor, está chegando uma neta, a filha de minha filha Patrícia e de seu marido Cláudio, a segunda na linhagem parental. Tem quase três meses na barriga, mas é de uma movimentação tão grande, que parece com o avô aqui, sem parar o dia inteirinho, procurando o que fazer. Não sei bem o que faz naquele ambiente hídrico, vivendo assim como se fora um peixe – é quase isso! – se alimentando do que lhe chega pelo cordão umbilical e de restos celulares que circulam por lá, na intimidade uterina. E os recursos da modernidade já mostram o quanto esse bebê que vai surgindo tem de bom e saudável. Vale conferir.
Nome não tem ainda, porque como sempre acontece, há uma série de prenomes que as pessoas buscam em diversos lugares, na Internet hoje, para nomear o ser que vai chegando. É um movimento grande de gente que liga e propõe, de outras que sendo tias do rebento que vai emergindo têm uma proposta a mais. Assim foi com a minha primogênita, que tem o nome de Fabiana, mas que nasceu Adriana e assim saiu nas páginas. Depois se trocou o prenome. Nem sei de qual gostava mais! Eu tive um irmão que morreu muito cedo e nome não chegou a ter. E a minha mulher, a mesma em quatro longas décadas, perdeu quatro – um horror! –, mas no fim pariu três belíssimas moças.
(*) - Homenagem que faço à neta que vai chegando. Não lhe tenho ainda o nome, mas já a tenho no coração de meus afetos. O texto é reproduzido no Jornal A Besta Fubana. Desejando o leitor, comente a crônica no espaço mesmo do Blog ou o faça para os e-mails pereira@elogica.com.br e pereira.gj@gmail.com

  

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O cheque errado e o cartão de crédito bloqueado

Tem umas coisas na vida que só acontecem comigo, disso não duvidem. Refiro-me ao recente caso de um cheque de minha mulher, que sem pestanejar preenchi e entreguei, para pagar as sessões de hidroginástica. Não hesitei em apor a minha assinatura! Bom, como o banco é o mesmo, não dei por conta, mas ela sim. Quando viu queixou-se e num ato de generosidade completou: “Faz mal não! Eu pago!”. Mas desfiz a troca! Como uma história chama outra, lá vai mai uma similar.
Chegou aqui um médico francês e não sei bem porque cargas d’água me mandaram tomar conta do penitente. Aliás, esse camarada me deu um trabalho brabo. Primeiro, por não ter o hábito de tomar banho e comparecer todos os dias ao estágio com um mal cheiro do cão. Foi ai que me chamaram e deram um ultimato: “Ou toma banho ou desiste!”. E eu fui obrigado a solicitar dele a fineza de se banhar. No outro dia, quando foi trabalhar, estava de tal forma cheiroso que fizeram uma festa.  
Mas, o pior disso tudo, foi o jantar que eu me senti na obrigação de oferecer. Convidei-o para o antigo “Rei da Lagosta”, que os mais velhos lembram. O camarada comeu feito quem está em jejum há uma semana ou mais. Ao final, veio a conta, cujo valor eu não tenho mais de cabeça, porque o dinheiro mudou. Saquei o talão de cheques do bolso e notei que era de outro professor da Universidade. Ora, o banco trocara os nomes ao entregar o talão. E eu fiquei sem saber bem o que fazer, se pagar assim mesmo ou não pagar. E quem iria pagar? Não se usava ao tempo o cartão de débito ou de crédito. Paguei. O garçom recebeu e não percebeu. No outro dia procurei o estabelecimento de crédito e contei, o gerente ficou doido e o pior é que o colega achou que eu tinha usado o talão dele mais vezes. Olha só!
Mas, esse negócio de banco é interessante. Dia desses ligaram pra mim e disseram: “Os seus talões foram bloqueados!”. E tome cheque a voltar. Fiquei zangado, ai me contaram: “É que clonaram seus cheques.” Respondi: “Não me admira não!”. Admirava, isso sim, se não clonassem nunca os meus cheques. Mas, uma outra moça, com sotaque carioca, em resposta a meu pedido de novos talões, disse: “E aqueles do talão de número tal a número qual? O senhor ainda não gastou!”. E foi preciso procurar a casa inteira para encontrar esses cheques sumidos. De outra feita, ligaram do cartão e disseram: “O senhor fez agora uma compra de R$ 5.000,00 em Porto Alegre?”. Não, porque estou no Recife, foi a resposta. Mas, a compra foi pela Internet e o cartão bloqueado. Isso é o cão, quase digo!
 
Quando eu era menino, o meu pai tinha um talão de cheques, mas era uma coisa tão escondida e tão preciosa, que raramente saia da gaveta dele. Nunca o vi passando um cheque. Interessante isso! Talvez por lá, em sua casa, ainda exista essa raridade, que foi tão bem guardada no antes do tempo. E ele a cada mês depositava um dinheiro para mim no banco. E eu, já formado, fui ver quanto tinha. Fiquei surpreso, não dava vinte centavos a dinheiro de hoje.
 
(*) Desejando o leitor, comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira.gj@gmail.com ou ainda pereira@elogica.com.br  
 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Médicos na Literatura

É de se dizer que a medicina é a única das profissões que conta com uma sociedade literária a congregar seus escritores; sociedade – a Sociedade de Médicos Escritores (Sobrames) – que tem feito encontros nacionais nos quais a produção intelectual é escoada. Não se vê, por exemplo, sociedade de enfermeiros escritores ou de fisioterapeutas ou ainda de advogados, de arquitetos, de engenheiros. A Sobrames em Pernambuco reúne-se regularmente a cada mês e tem uma pauta tão extensa que muitas vezes é difícil dar conta de tudo.

O médico sempre escreveu, como se tem  na literatura universal! É interessante a referência que faz Leduar de Assis Rocha, em seu livro Historia da Medicina em Pernambuco – 2º volume, livro, aliás, a ser reeditado pela Academia Pernambucana de Medicina este ano. Diz o autor que no século XIX quase não se escreveu em Pernambuco; não se escreveu, adianta, no tocante à escrita mundana, enquanto na Bahia e no Rio de Janeiro os médicos foram mais pródigos.

É notável a citação de Orígenes Lessa, esse jornalista, contista, novelista, romancista e ensaísta brasileiro. Diz Orígenes Lessa: “Sem sofrimento, não há literatura”. E, admitindo o fato de nunca ter se distinguido nesse terreno, justificava-se: “Eu nunca sofri o bastante; por isso preciso sofrer mais para escrever melhor.”. Realmente, é o sofrimento que desperta o sentimento e faz o escritor transbordar o coração; sofrimento de qualquer natureza. O sofrimento amoroso, por exemplo, o da perda de um amor que se desejava eterno.

Quando o meu netinho Pablo voltou para a Espanha, deixando aqui toda uma experiência nova em minha família, fui tomado por uma saudade agradável, por um sentimento de falta necessária, porque o infante precisava voltar ao convívio do pai, dos tios espanhois e dos avós, escrevi uma crônica intitulada: “Saudade”. Mas a perda de meu genitor, depois de uma noite inteirinha com ele, acordado, acomodando-o da melhor forma, me fez sentir a minha própria impotência diante da “Proximidade do Inexorável” e escrevi uma crônica com esse título, sentado na mesa de jantar de sua casa, antes de me recolher com ele.

Se o sofrimento inspira o verso ou faz transbordar o coração numa crônica, é claro que outros sentimentos também são inspiradores. A alegria, a satisfação de espírito, a plenitude d’alma permitem a criação literária também. Quando se trata de sofrimento, há quem acredite que o profissional da ciência de Hipócrates é um insensível, isto é quando cessa o trabalho ao lado do leito do seu cliente, passa também a angústia ou a ansiedade que a dor alheia produz. Não é bem assim! Quando a AIDS apareceu, abrimos alguns leitos no Hospital das Clínicas; eram doentes que serviriam ao ensino, mas também teriam que ser assistidos. Todos morriam, então! Os profissionais de saúde entraram em parafuso, não conseguiam salvar ninguém. Angustiaram-se e entraram em grande ansiedade. Foi necessário chamar um psiquiatra que os visse em grupo.

Mas, muito mais interessante que isso, é a experiência descrita no opúsculo “O Sofrimento do Médico: Ontem e Hoje”, publicado pela Academia Pernambucana de Medicina, escrito por Gilda Kelner e Clézio Sá Leitão, no qual há depoimentos verdadeiros do último autor, em torno de seu sofrimento diante da doença alheia. Vejamos: “Para completar o fim de semana, um paciente, Fernando, me foi encaminhado pela Dra. Érica, competente e dedicada hematologista...Faleceu no sábado e fiquei muito mal.”. E mais adiante: “Neste mesmo domingo, me ligaram da UTI, eu estava no sítio, pintando um barco, não pude voltar, não tinha forças, precisava de energia. Falei com o colega de plantão, que sedou, entubou, depois disso não se faria mais nada...”. Os depoimentos são apenas para demonstrar que há um sofrimento do médico, um padecer ao lado de seu doente; um sofrimento que inspira, tantas vezes, o exercício da escrita.

O esculápio, por força de seu mister, tem sempre o que contar, tem sempre uma história a mais para acrescentar numa roda de fiar conversa. Eu, por exemplo, tenho centenas de histórias que poderiam ser narradas sob a forma de contos, sem ferir a ética, porque não há necessidade de se revelar o nome dos protagonistas e nem tampouco as circunstâncias em que aconteceram. À senhora, que desenganada com seu casamento foi recomendada a se vestir de forma sensual, mas o resultado da orientação redundou numa grande surra que lhe aplicou o marido. Ou aquela outra que tendo se apaixonado por mim, me presenteou com um bolo e um queijo do reino de boa marca. A minha mulher considerou que o bolo poderia estar envenenado, mas a latinha do queijo foi de logo aberta. E assim por diante!

O grande Tchékhov, médico que fora, inicialmente profissional de uma área rural – médico rural – em alguns de seus contos dá a nítida impressão de que viveu aqueles fatos. Se não viveu propriamente, talvez tenha visto em outras famílias ou talvez tenha sabido. Em certo congresso de médicos escritores ouvi o comentário de um psicanalista, de cujo nome não lembro mais, que dizia não se inventar a narrativa por inteiro, mas lembrar fatos que se vivenciou, que soube por ouvir falar ou que tomou conhecimento de outra forma qualquer.

Pois é o escritor - Tchékhov - em “Inimigos”, conta que um médico da área rural, Dr. Kirílov, perdeu filho um com seis anos de idade, vitima da difteria, o crupe, que a tantos roubou o existir terreno. Quando a criança ainda está em seu leito de morte, toca a campanhinha e surge o Sr. Abóguin, completamente desesperado com a mulher doente. A esposa desmaiara na sala de casa e como estava com visita cuidou juntamente com o forasteiro, o Sr. Paptchinski, com ele deixou a mulher enquanto trazia o médico. O profissional tinha perdido o filho e disso dá conta ao visitante, mas a insistência foi tão grande e os apelos tão fortes, que mesmo assim ele se dispõe a atender à senhora doente. Seguem na carruagem rumo à casa da infausta mulher. A surpresa, quando lá chegaram, foi muito grande, porque tudo não passou de uma simulação, para que ela fugisse com o amante, o Sr. Paptchinski.

Em outro conto, intitulado de “Angústia”, o mesmo autor conta a história de um cocheiro que também perdeu um filho e sofre com aquilo enquanto trabalha. Precisa desabafar com alguém e puxa o assunto várias vezes com diferentes interlocutores. Ninguém dá ouvidos, porque a desgraça do outro quase não interessa. Disse Nilo Pereira, em “Reflexões sobre um fim de século”, a tragédia humana é como um filme, terminado o enredo, passou também o sentimento. E o pobre do cocheiro termina contando seu padecer à sua égua. “A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono...”.

(*) Um texto que me serviu de base para a leitura em mesa-redonda patrocinada pela Academia Recifense de Letras. Desejando o leitor pode comentar no espaço mesmo do Blog ou para os e-mails pereira.gj@gmail.com ou ainda pereira@elogica.com.br