sábado, 26 de maio de 2007

Reitor da Universidade Livre

Noutros tempos, neste Recife dos rios e das pontes, quando a gente grã-fina e os remediados da sorte circulavam pelo centro comercial, pontificavam por lá, também, certos e determinados tipos mais do que peculiares, pois que mesmo sendo diferentes, engajavam-se, perfeitamente, na paisagem urbana. Alguns apresentavam nítidos sinais do desvario, mas outros não. Eram mais contidos ou eram menos exaltados. A verdade é que se tornaram personagens constantes do grande espetáculo do centro, com especialidade nos períodos de festas, de Natal, por exemplo, ou de Carnaval, perambulando nas calçadas e nos passeios da cidade. Hoje, não os vejo mais e ignoro de todos o destino. Compreendo, todavia, que não possam fazer o footing, como dantes se dizia, nos ambientes refrigerados de um shopping, para onde acorrem, agora, as elites, as bem estabelecidas e as demais, em franca debacle.

De todos, certamente, o Dono da Rua do Imperador parece ter sido o mais interessante, vestido a caráter, misturando peças de roupa das corporações militares e de outras instituições, desarmadas essas. Coberto de medalhas, de condecorações diversas ou de comendas variadas, orgulhava-se das honrarias todas, passando a mão no peito e acariciando cada uma daquelas circunferências de bronze. Muitas e muitas vezes, na Festa da Mocidade, pude fiar conversa com esse figurante inusitado das animadas noites, ali, no Parque 13 de Maio. Dizia-se integrante da cavalaria submarina e assumia no imaginário, mais do que fértil, a segurança do lugar, ignorando, por certo, a ação, firme e segura, de Marcha-Lenta, sargento da Rádio Patrulha destacado por lá, na ambiência da festa. Havia comprado a rua da qual se dizia dono e não vendia a ninguém, por dinheiro nenhum, justificava. E fazia muitíssimo bem. Cada qual que cultive a sua fantasia!

E Lolita? Quem não lembra? Com o andar afeminado e cheio de trejeitos, andava a cidade de ponta a ponta, se requebrando e cantando, muitas vezes, ou simplesmente cobrindo de pilhérias os incautos passantes, que coravam de tanta vergonha, com as espirituosas graças do homem que gostaria de ter nascido mulher e bem mulher. Mas, se o transeunte menos avisado cuidasse em reagir, apanhava pra valer, levando todos os socos do mundo e as pesadas todas, também, a que se arriscara. Foi preso uma centena de vezes e recolhido aos porões da Sorbone da Rua da Aurora, como chamava o nosso saudoso Paulo Malta a sede da Secretaria de Segurança, de onde, aliás, foi delegado e dedicado servidor. O próprio Paulo deve ter recolhido Lolita e posto em liberdade pela manhã, logo cedo, como costumava fazer, encerrando o plantão e liberando toda a gente detida na noite anterior, para o descontentamento, geral e irrestrito, de seus colegas da polícia.

Outro, mais recatado e nem por isso menos popular, era o Chá Preto e Pente, que vendia as folhas prontas para a infusão doméstica, suficientemente capazes de curarem os males da família inteira e da vizinhança, também. Lembro-me, ligeiramente, do homem de certa idade gritando o seu slogan: Chá Preto e Pente! É que misturava as coisas e as vendas, acrescentando o apetrecho apropriado ao pentear dos cabelos aos seus princípios medicinais da Botânica tupiniquim.

Interessante, contudo, era o Reitor da Universidade Livre, um homem negro, alto e gordo, que costumava andar de paletó e gravata, vestido à risca para a sua condição magnífica. De certa feita, tendo comparecido a uma reunião acadêmica e não incluído na mesa, zangou-se verdadeiramente, prometendo vingança com as ausências futuras. Nunca mais tomou assento nos encontros assim, da ciência e da cultura. Pregava a liberdade para aprender, simplesmente. E estava certo, embora complicado.

Finalmente, uma figura estranha, sorridente e falante, de cujo nome ou cognome não recordo, mas de cuja fisionomia tenho, ainda hoje, a imagem exata. Descobrira ou inventara, como afirmava, muita coisa. A caneta que nunca esvaziava, a cura das doenças venéreas e mais uma dezena de outras besteiras. Chegou a escrever aos institutos estrangeiros de pesquisa, dos quais recebia respostas encorajadoras. Mulheres, quase não havia neste capítulo dos tipos da cidade, senão uma: Soninha! Solteirona, sem convicção nenhuma, andava à caça, sempre, de um penitente, que fosse. Confesso o meu desespero com a paixão de Soninha, nos tempos em que trabalhava no Centro de Saúde Gouveia de Barros e era estudante. Mulher de todos os pudores, não insistiu nas investidas mais, depois que lhe disse de meus desejos em antecipar os amores. Disse-me horrores e sumiu. Nunca mais a vi no cenário urbano, andando rápida, como quem vai a um encontro qualquer, imaginário, infelizmente! Nada me custou trocar aqui o seu prenome, em respeito à vida e às fragilidades da criatura.

Deus olhe por todos!
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Folhas Secas

Li e reli a carta de uma senhora alemã de 79 anos à sua nora, pernambucana deste rincão e tirei dali lições que vou guardando para o meu doravante. Diz a missivista que vive o outono da existência, sentindo a lentidão a lhe tomar o todo, pouco a pouco, no pensar sobretudo. Mas, recomenda, com sabedoria, à jovem nora que guarde os domingos para o Criador ou os reserve à família. E conta que em seus passeios aos bosques germânicos, vez ou outra, recolhe uma folha solta ao vento, largada ao léu. Nota que é seca, amarelada, embora traga sempre pequenas manchas verdes, as quais desaparecem depois de guardada por entre as páginas de um livro qualquer. A dona Ângela Efken, certamente, não imaginava que um cronista bissexto fosse tomar as reflexões de sua missiva e aproveitá-las em ocasião assim, de recolhimento d'alma e meditação do espírito, num domingo qualquer de tropicalidade aflorando. Uma reconciliação com o sentimento, então!

Eis a plenitude da idade, o ápice da experiência existencial! Foram anos e mais anos contados em décadas, reunindo vivências e convivências, convívios afinal sintetizados assim, num filosofar posso dizer doméstico, a sagrada forma de se apontar veredas a serem seguidas, caminhos a percorrer e estradas a passar. E é nesse outono ou nesse ocaso e nunca por acaso, que o conhecimento do dia-a-dia, das práticas de vida, deve ser transferido, mesmo que haja a lentidão no gesto ou mesmo que o ato e o fato de pensar exijam um desusado sacrifício. A maturidade tem isso, traz o dano e a debacle, o declínio, pois, mas promove a serenidade e a paz, permite que a reflexão conduza os destinos e inibe a pressa irrefletida, tão comum na juventude e uma constante, quase, na adolescência dos anos. E a dona Ângela Efken enaltece a família, a célula mater e recomenda Deus, que é tudo, a concórdia e a humildade, a harmonia e o sossego.

A lição maior, todavia, está nas folhas secas recolhidas ao léu, nas gélidas paragens germânicas, todas com manchas verdes e que murcham quando deixadas por entre páginas de livros. Toda gente, do começo ao fim dos tempos, preserva nos interiores marcas assim, do viço e da força, para se alevantar dos baques ou para superar obstáculos, pedras do caminho e percalços nos atalhos da vida. Há sempre um recomeço! Uma mudança, uma transformação, a metamorfose da criatura, numa readequação aos cenários da existência! Verdadeira reengenharia humana! Ninguém, todavia, deve se encolher e restar prisioneira, de si ou dos outros, sob o risco de murchar, de perder o brilho e a cor, de se tornar um nada, que a nada pode criar. Só a criatividade realiza o homem, porque o aproxima, mais e mais, do Criador, que fez a tudo e a todos, que estabeleceu as leis da natureza e sustenta o universo em sincrônicos movimentos de rotação e translação.

Viver é um exercício difícil, uma sucessão ou uma alternância de ganhos e de perdas que inquietam, profundamente, o ser. Há uma cruz reservada a cada um! Algumas mais pesadas, lenhos de madeira bruta, à semelhança de rochas, que tornam a trajetória penosa e sofrida, que abrem incuráveis chagas! Outras, mais leves! A criatura, porém, enfrenta tudo isso, vai contornando momentos e dando a volta em minutos, desespera-se e chora o pranto sentido, rasga-se em lágrimas e parece sucumbir. Sente-se, por vezes, um palhaço no picadeiro da vida, arremedando humores que não tem e achando graça no nada do nada! Reconhece, afinal, as dificuldades da hora e se ergue! Há, sempre, um sorriso guardado, uma expressão de afeto reservada e um afago emergente! Aos que foram melhor aquinhoados e cuja aflição é menor, que não cumpriram a paixão e a morte, cabe compreender, entender a inquietude alheia, sem exigências, pois.

O verde da esperança há de vencer a palidez amarelada dos fracassos estabelecidos e das ruínas sentidas, afastando as ameaças do cinza de todas as derrotas e do preto de outras desgraças funestas.

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