sábado, 14 de agosto de 2010

Uma Sereira no Timbó

Aqui, às margens do Timbó, onde as águas do rio se entregam à enormidade maternal dos mares, a madrugada pariu o dia e a manhã ganhou os ares nos braços do astro que é rei, depois, a tarde embalou a noite, trazendo, outra vez, a negritude das trevas. E a noite se foi, parindo outro dia! Eis a metamorfose do tempo! Um pescador muito velho, de barbas brancas e longas, tomou a jangada bem usada e se fez ao mar, jogando, seguidamente, a rede, de cujo conteúdo há de alimentar a família. Outro, pisando as areias cálidas da praia, tão alvas quanto a pureza do lírio, de tarrafa à mão, reunia no samburá já surrado as espécimes que podia, de tainhas fresquinhas, fresquinhas. O forasteiro, sentado ao largo, vestido à moda urbana, de camiseta estilizada, com inscrição posta na língua lá de fora e de sandálias cobrindo os pés, assistia a tudo isso. Via as mudanças e as transformações, qual observador do cotidiano, anotando vivências e convivências, com as águas, sobretudo. Nos dedos contou os barcos e passou de dez nesse exercício, contabilizou gente que ia adentrando as águas, cumprindo o desiderato milenar de buscar nessas intimidades o pão de cada dia. Aceitou o cumprimento respeitoso do caçador de lagostas, de ferro afiado pendendo do indicador e com o apetrecho destinado à sua própria flutuação: "Bom dia!" E o imaginário soltou-se, libertou-se das amarras que a intelectualidade pode trazer, para rever o tudo e o todo, dali e de fora, do presente e do passado, permitindo-se indagações sobre o futuro.


Como era diferente ele, o forasteiro, daquele povo simples e aparentemente sem complexos que por ali passava, livre das injunções sociais, de preceitos e de preconceitos! Ficou filosofando assim ou matutando, apenas, sentado, como estava, mantendo a sua condição de quase invasor daquele ambiente, tão sagrado e tão puro. Com o calor da manhã e com o sol a pino, já, viu as lanchas sofisticadas roubarem as águas alheias, provocando as ondas do mar, querendo repetir espumas, que na beira da praia beijam as areias, deixando telúricos ósculos. Assistiu o desfilar de outros forasteiros, veranistas também, de coloridos trajes, falantes e desinibidos, com intenções modernas de relax e de outras práticas. Furtam, na verdade, os ares que desses nativos sempre foram! Passaram e sujaram, fizeram de seus luxos os lixos daquele canto, um recanto, ainda, das reflexões de Deus. Vieram das paragens sulinas, parece, a tirar pelo sotaque de todos e pelas conversas que vão fiando, trouxeram a fadiga internalizada na bagagem e largaram por cá esses restos de civilização, contaminando o tempo e maculando o espaço. Promoveram no povo daqui mudanças de hábitos, desusados dantes. Pescadores transformados em guias de turismo, carregando, pra lá e pra cá, gente de fora, em passeios à Ilha de Itamaracá ou à Coroa do Avião. Homens mais velhos com os barcos ancorados, oferecendo passeios, à prainha, dizem, seduzindo os outros, como se faz na cidade.


Mas, é do mister de quem observa, anota e vai se permitir a criação do texto, no transbordar do coração diante da inspiração, como agora, madrugada de um sábado, aproveitar-se de um cumprimento e fiar conversa, de logo. Como estava o movimento, de turistas, sobretudo, aqueles vindos de São Paulo e do Rio, de outros lugares, também? Ruim, respondeu o homem, pescador por profissão e guia por precisão! Depois que fechou o hotel, fugiram daqui os viajantes, foram parar noutros lugares, explicou, justificando! E ficamos a ver navios, disse, fazendo metáfora com as coisas do mar. Tocou a falar, então, de suas experiências, depois que a civilização aportou nessas bandas e o simplesmente nativo foi se adaptando ao inteiramente novo, uma figuração do desenvolvimento emergente. Vira de um tudo por cá, do comum ao inusitado, gente que vai chegando e se deslumbrando com a paisagem do mar, cujo horizonte beija as águas ou com a beleza do coqueiral, no balanço mais que cadenciado das folhas, ao sabor lúdico dos ventos de janeiro. O coqueiro é a árvore do adeus, as suas palhas se despedem, o tempo todo, do viandante que se vai, entrando nas águas em direção às funduras do mar! E o que mais lhe impressionara nesse tempo das novidades? Confessou, então, a sua perplexidade, quando nas águas do rio Timbó, mesmo, viu, depois de trinta anos, se pouco, a sereia de seus devaneios e de seus sonhos, emergindo, sorrindo para o mundo. Não se falaram, disse, porque perderam a intimidade, sem precisar aludir a Fernando Veríssimo, mas filosofando à sua maneira! Entreolharam-se, somente, nada mais!


E para findar a crônica no melhor dos estilos, passou Vando, que da peixaria é o dono, esquipando no alazão tupiniqum, manga-larga da periferia, deixando um dourado aqui e outro ali, um serra para o irmão Getúlio e uma cioba para o escriba. E para Capiba, conterrâneo de Surubim, a prece a Maria Betânia, entoada sob a sonoridade das ondas! E Beto da Goiabeira, que do frágil arbusto caiu em seu primeiro alumbramento, sem invocar o poeta do rio das capivaras, aprendeu de Bandeira os versos cantados na Várzea, dos encantamentos primeiros!

(*) Esta é uma crônica antiga, muito antiga, dos tempos em que veraneava em Pau Amarelo e ia, vez ou outra, passear na praia de Maria Farinha, nativo e bucólico lugar. Por lá, tantas vezes, vi o movimento de pescadores em seus barcos e as idas e vindas de sereias quase telúricas, cujo banho era o exercitar matinal da sensualidade emergente. E o tempo passou! Não há mais aquelas paisagens tão simplória e tão pacata! O inteiramente urbano das coisas contaminou o lugar e só as saudades se amontoaram nos cantos, preenchendo recantos que trazem lembranças. Comente neste espaço do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com