quarta-feira, 3 de junho de 2009

Padre Feriado


Fui estudante no Colégio Nóbrega, aluno dos jesuítas da antiga observância, como gostava de dizer o meu pai. Ali aprendi a ajudar Missa e integrava um grupo de coroinhas: os Acólitos da Igreja de Fátima. Essa missão diferenciada me agradava, porque tinha um certo status, diria, diante das moças do bairro, a quem ajudava a oferecer a comunhão, em tempos de catolicismo predominando na classe média. Nunca deixei de aproveitar o flerte em momentos assim. As pessoas se ajoelhavam e o sacerdote passava, de uma por uma, distribuindo a hóstia sagrada, enquanto eu colaborava com a patena, espécie de bandejinha que cuidava em não permitir pudesse qualquer partícula cair no chão ou sair dos olhos atentos do celebrante.
Como eu era levado da breca, sempre tinha uma presepada a mais para incluir em meu repertório de fanfarrices. Uma dessas, a de um certo roubo de hóstias ainda não consagradas, o que abrandava o meu pecado. Ora, sendo o gradil da sacristia largo em seus espaços, cuidei em atravessar o obstáculo e entrar naquele recinto. Encontrei uma quantidade enorme daquele pão ázimo e tendo recolhido todo, não hesitei em levar para casa, comendo aos bocados em pouco tempo. O meu pai, sempre muito severo com essas coisas do sagrado, viu a farra trigal e indagou como tinha conseguido. “É! Foi o Irmão Pires quem me deu!”. Não fora, evidentemente, mas ficou o dito pelo não dito e depois a falta venial foi perdoada na confissão da semana.
Mas, sobre confissão, não posso deixar de lembrar as minhas declarações auriculares dos pecados e a admiração dos meus confessores. Geralmente, como era aconselhável à época, adotava um dos sacerdotes como diretor espiritual e a cada sexta-feira me ajoelhava e fazia o relatório dos sete dias pra trás. O jesuíta assim adotado – coitado! – admirava-se, com muita frequência, pela repetição das falhas ou das faltas, não sendo raro verbalizar: “Outra vez?”. E eu, de forma muito encabulada, sempre, reconhecia os meus erros. Todos os meus pecados eram contra a carne. Afinal, a carne é fraca, dissera o Cristo! Por isso, por essa luta entre a culpa e a absolvição, fui fazer um certo retiro espiritual numa casa para tanto reservada, no bairro de Beberibe, no Recife. Ali, rezei e fiz penitência, meditei e pensei ter me modificado.
Qual nada! Voltei para casa e tive uma recaída braba desse mal que eu considerava um bem: o pecado. Andava com um terço no dedo, passando conta por conta, cumprindo um desiderato que não merecia, imagino. Até que decidi: ia ser padre. Só dessa forma poderia pagar tantos erros em minha vida. Eu não tinha forças, sequer, para olhar as pernas de uma moça. Tinha uma professora da universidade que ia em minha casa, cuja transgressão em meu imaginário era o simples fato de cruzar as pernas, frequentemente, num exercício de sensualidade para mim inusitado. Mas, o meu pai, em exemplar momento de lucidez, como lhe era comum, desaconselhou a minha entrada no seminário. É! Teria sido um desastre passar anos estudando e depois me ordenar. Não aguentaria, reconheço. Eu pecava a cada hora, todos os dias, com propósito ou sem propósito de me recuperar. Tempo chegou em que desisti e me declarei alinhado com o cão. Valha-me Deus do céu!
Fiz horrores no Colégio Nóbrega e só não fui expulso porque o meu pai – sempre o meu pai – tinha sido professor no estabelecimento e isso me protegia os dias e as horas. Uma vez, respondi a presença em canto gregoriano, pelo que fui posto pra fora da sala de aulas. De outra feita, assim marginalizado das aulas, posto pra fora, voltei com uma camisa emprestada. O padre indagou: “O senhor não foi posto pra fora?”. E eu, com a cara de pau: “Não, padre, aquele é o meu irmão gêmeo!”. E assim ficou ou assim fiquei. Nos dias da geografia sendo exposta como matéria obrigatória, por preguiça, apenas, não levava o atlas e o professor: “O senhor ai! O atlas?”. Eu, então, abria no choro e dizia, aos prantos, que o meu pai não tinha dinheiro para comprar. O mestre, compungido, quase me acompanhando nas lágrimas, deixava que acompanhasse a exposição na companhia de um colega.
Impossível não lembrar aquele padre velho, francês de nascimento, brabo feito uma capota choca, a quem neguei o vinho na segunda vez em que pediu: “Não tem! O senhor bebeu tudo!”. Não tinha bebido, eu é que por sem-vergonhice não tinha levado a quantidade necessária. Resultado, nunca mais entrei com aquele celebrante na Missa. Foi exagero apelidá-lo de Padre Feriado, somente porque quando morresse, como sucedeu, aliás, as aulas seriam suspensas para as exéquias.
(*) - Eis uma crônica dos anos de menino, quando aluno dos jesuítas da antiga observância. Padres de batina preta e breviário à mão. E os apelidos comendo no centro: Padre Macaco e Protão, Padre Sansão e Irmão Felinto/Da Canela Fina/... Texto que ofereço ao meu colega Luiz Lira e ao escritor Rivaldo Paiva. Comente no espaço do Blog ou o faça para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com