sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Prefácio - Textos esparsos


 


José Arlindo Gomes de Sá(*)
 

Com a cunhada
 O homem nasceu para a eternidade e não obstante o silêncio, a ausência, a aparente escuridão do túmulo, ele perfura todas as barreiras do tempo, num desafio vitorioso sobre o finito. O poeta do acontecimento é assim: perene, porque consegue permear o que escreve daquilo que existe de eterno em si mesmo. Cabe a nós sabermos deixar florescer o cronista como se fossemos tão-somente uma terra arada pela própria vida que não retêm em si a semente, mas que oferece condições para a roseira florescer e desabrochar. Geraldo Pereira sempre esteve entre nós, presente nas suas crônicas qual semente latente na nossa terra. Hoje, aflora em sua plenitude nessa produção literária cuidadosamente preservada. E nós, certos de estarmos cumprindo passo a passo o compromissoPREFACIO com o nosso tempo, mas também como nossa gente, somos apenas a terra arada pela vida em favor dos frutos nordestinos. 



Geraldo Pereira sempre viveu na capital e esses Textos Esparsos me trouxeram
 

recordações gratas, que as páginas escritas me avivaram como um sopro em cima de brasas quase extintas. Ao descrever uma visita a uma cidade sertaneja à margem do rio São Francisco, na crônica Os encantos de Petrolina, me veio à memória, lá pelos idos de 1972, o dia em que eu estava atarefado no trabalho cotidiano da Fundação SESP em Floresta, minha pequena cidade pajeuense e navieira, quando alguém anunciou em tom solene: "Está aí um senhor que quer vê-lo. Ele deu a entender que se trata de um assunto muito sério". Qual não foi minha surpresa ao avistar Geraldo Pereira com a tão conhecida matreirice nos corredores da faculdade! Refeito do sobressalto e da satisfação do reencontro, ele me revelou o objetivo de sua passagem por ali nos carrascais do rio Pajeú e do riacho do Navio: "Vim conhecer a serra do Umã, onde os índios estão adoecendo de leishmaniose".
Fátima, eu, Geraldo e sua  filha Patrícia Pereira. Se o autor tem lastro literário e é reconhecido como escritor, crônicas suas consideradas mais significativas, pelo assunto e pela qualidade estética, são selecionadas para virar livro, como é o caso destes Textos Esparsos. Para Geraldo Pereira, a crônica vem sendo ao longo dos anos, sua forma de testemunhar acontecimentos da vida do seu cotidiano, de pessoas anônimas ou dos familiares que cruzaram seus dias de filho, irmão e amigo atento, além de reminiscências da meninice, do estudante e do professor, um tipo de vida que se tornou visível pelas suas poesias dos acontecimentos, seja no lirismo das ruas da infância e da adolescência, seja no ambiente da magnificência da Reitoria da UFPE. Ele busca a inspiração de seus textos na memória e, principalmente, na observação direta do cotidiano, onde se dá, concretamente, a experiência humana.
Foto: Patrícia, Júlia, Zaina, Carol e eu.
A minha neta, as filhas, a esposa e a
cunhada
 Em alguns momentos lembra o inconfundível Luiz Fernando Veríssimo com seus toques de humor e acaba provando que, sim, a vida pode ser lida e vivida ao mesmo tempo. Em outros, revive um dito de Manuel Bandeira: "Nunca brinquei com os moleques da rua, mas impregnei-me a fundo do realismo da gente do povo". E Rubem Braga, que abordava os assuntos do dia-a-dia, falando de si mesmo, de sua infância, de sua mocidade, impressões de caminhadas e assim impregnava tudo que escrevia de um grande amor à vida, a vida simples, não sofisticada. As crônicas Vazio ecológico e Globalização e cultura tem esses atributos. Há décadas que Geraldo Pereira vem desempenhando o ofício de cronista, razão pela qual esses textos redigidos de forma livre e pessoal vinham sendo zelosamente colecionados como preciosidades por sua mãe e que somente vêm à tona agora para surpreender, divertir e deleitar a nós leitores.
Academia Pernambucana de Letras. Identificamos a variedade dos assuntos, sem que se mostre superficial; o conhecimento dos temas, mesmo os que não estão relacionados com o médico e professor emérito; a linguagem límpida, simples e moderna; a agudeza da observação psicológica; a perspectiva social; a nitidez das imagens e o ímpeto raciocinante.
Eu com minha cunhada Zaina Pereira e o casal Arlindo e Tânia.
Mª dos Anjos, Zaina, Zé Arlindo
e Tânia
 Há, também, nesta coletânea, histórias pitorescas e belas, episódios cômicos.E, neles, o autor ri de si mesmo. Essa atitude sinaliza a maturidade do escritor. Somente uma pessoa muito segura de si mesma, de sua arte de escrever e de sua serenidade, tem condições de se expor ao leitor, revelando inclusive suas fragilidades. Fica ao alvitre do leitor descobri-las em crônicas como estas: Uma alameda da saudade e Exílio de sentimentos. 




Enluarado pela magia e apaixonado pela fauna e pela flora do meu sertão, li e reli com prazer uma crônica emblemática: Asa branca. Luiz Gonzaga cantou este pássaro pelo simples fato de que ele representa a saga dos retirantes da seca do Nordeste, mas, na minha opinião, a ave mais representativa das terras sertanejas é o casaca-de-couro. Não sou o único a defender a preferência por esta ave. O poeta Carlos Severiano Cavalcanti, em seu belíssimo livro Sertanidade, fez com maestria esta glosa: "Casacas-de-couro em bando \ Fazem festa no sertão". Ao escrever que "escutar a ave canora, \ poetisa do braseiro, \ com o canto condoreiro, \ nossa tristeza minora", ele está se referindo a única ave que gargalha que se conhece. O casaca-de-couro encanta pela sua penugem semelhante à vestimenta do vaqueiro. É comovente acordar no sertão com seu canto orquestrado. A sensibilidade fica aguçada neste momento que emociona porque, ao contrário da asa branca, que bate asas do sertão, o casaca-de-couro permanece alegrando o nosso viver sofrido durante a estiagem. E então, ouvi também o canto, o gemido, a voz, o berro, o gesto do sertanejo rasgando os ares dos carrascais na leitura da crônica Um nordestino sofrido. Em Uma sociologia da madrugada me fez lembrar e sentir o cheiro que vinha da padaria do beco do Pajeú, quando seu Amaro saía, ainda no primeiro clarão da barra, oferecendo seu produto, rua abaixo e rua acima: "Olha o pão quente, queimando a gente rapaziada! Olha o pão de seu Amaro!"

Os textos de Geraldo Pereira passam pelo tear de acurada sensibilidade, com fusos tecendo os encantamentos. Portanto, a mim, como colega que teve a felicidade do seu convívio, com a permissão que me foi concedida de prefaciar os Textos Esparsos, só me resta recomendá-los com o mesmo zelo de quem os conservou por muito tempo no baú das coisas inseparáveis.

(*) – José Arlindo Gomes de Sá é médico, poeta, Presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Regional de Pernambuco