terça-feira, 31 de julho de 2012

Amarelo de Goiana

O livro do sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, intitulado O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX, no qual estão transcritas algumas dessas manifestações comerciais com os negros D' África e comentadas outras tantas, há muito o que se tirar sobre as doenças dessa gente assim, submetida pelo semelhante de tez branca. Anúncios de escravos fugidos eram mais sinceros e francos, absolutamente honestos, diz Freyre, do que aqueles das ofertas para venda ou para troca, porque ninguém oferece o seu produto, mesmo que humano, apontando defeitos e perdas. Destaca o autor que o tratamento dado aos servos se aproximava mais das coisas - peça da Guiné - ou dos animais - cabra -, que da condição de criatura, como deveriam merecer.
Negros que andavam, muitas vezes, com máscaras de flandre, contanto que não se atrevessem a comer terra, por conta da carência mineral, certamente, determinada pela anemia de origem verminótica. Hábito, aliás, que perdurou entre nós durante anos e mais anos, graças à infestaçào das chamadas populações excluídas pelo Necator americanus. No velho Hospital Pedro II, era comum a referência dos doentes à precisão de se alimentarem com barro e não raramente chegavam a se utilizar do reboco das paredes das enfermarias ou das tampas dos filtros d'água potável. Talvez daí tenha surgido o ditado comum em décadas passadas: "Amarelo de Goiana come barro com banana!". Mas, negros, também, eugênicos, alguns, como os sudaneses; homens e mulheres bonitos, de feições mais delicadas e esbeltos, saudáveis, pois.
Era comum, relata o escritor, a alusão a certas deformidades, como as amputações, das falanges e dos dedos, das mãos até, conseqüências, ao que parece, dos acidentes de trabalho com as moendas dos engenhos. Referências, também, à falta de dentes, dos incisivos, sobretudo, perdidos por conta dos descuidos no trato, fato, entretanto, corriqueiro no século XIX, com os senhores e as senhoras, com sinhazinhas, até. E a precariedade higiênica respondia pela quantidade de piolhos de que eram portadores, razão para se vender os pentes específicos e para justificar o costume disseminado de "catar piolhos". A Tuberculose matava a muitos e havia moleques que "entisicavam" no trajeto oceânico e eram entregues de quebra, quando da compra de adultos sadios, tal o estado em que se encontravam.
Negros esfomeados, submetidos a dietas restritivas nas viagens, as quais não passavam da fava fervida, simplesmente. Portadores, depois, de Raquitismo e do Mal de Luanda (o Escorbuto). Ou negros opilados, inchados, edemaciados, por falta do aporte necessário, de Ferro e de outros nutrientes vitais. Ou ainda com a marca da "Cegueira Noturna", em função da carência da Vitamina A. Negros, também, com grandes inchaços nas pernas, difundindo a Filariose através do mosquito transmissor, perpetuando a parasitose até os dias que correm. Homens e mulheres saudosos da África, sofrendo de Banzo e afogando as tristezas das separações na aguardente de cana, adoecendo de cirrose e carregando, vida a fora, a chaga do alcoolismo.
O "Bicho de Pé", que ainda hoje incomoda a gente dos aglomerados periféricos, era de grande frequência e a coceira apreciada, por ser exigente e repetitiva. Já aparece, de igual forma, nessas descrições gilberteanas o Vitiligo, chamado de "Calor de Fígado" no palavreado vulgar e o "Ainhum", manifestação dermatológica que o Prof. Octávio de Freitas, fundador da Faculdade de Medicina do Recife, atribuía à Hanseníase, mas que parece ter uma disfunção genética na causalidade. Negros, enfim, expatriados, sofridos no tudo e no todo, apartados, da mesma forma, precocemente, dos convívios maternos, quando da Lei do Ventre Livre, sem a maternagem de que se ressentem os humanos, mal alimentados e deseducados, tratados como bichos do mato ou como coisas, simplesmente. Vendidos despidos, expostos à curiosidade pública, sem respeito às vergonhas, escolhidos conforme as dimensões dos órgãos sexuais, apreciados na cama e mal tratados no eito.

(*) Um texto escrito há alguns anos, quando escrevi um trabalho enfocando a investigação de Gilberto Freyre em torno dos anúncios em jornais. O Blog é publicado de hábito no jornal virtual A Besta Fubana. Comentários no espaço mesmo do Blog ou para o e-mail: pereira.gj@gmail.com