domingo, 29 de abril de 2012

O padre, um casamento e a viúva


O Silvino era uma figura. Ainda o é, porque nos seus 80 anos se mantém lúcido; lúcido e bulindo. Foi ele quem me contou essas histórias, em sua loja de móveis, no centro do Recife, enquanto conversávamos tranquilos, numa manhã ensolarada de um sábado qualquer. Silvino tem historias incríveis, capazes de levar o interlocutor ao riso desbragado. Ele me autorizou que escrevesse essas três, mudando, é claro, os prenomes e os cenários, tudo para evitar a identificação de um penitente desse. Pois é! Lá vai fogo!

Na ocasião de minha chegada por lá, estava sentado um padre conhecido na cidade, com quem não tinha a menor intimidade, senão a de ter assistido a uma Missa de 7º dia numa paróquia do subúrbio, na qual o cura fizera uma prática digna de todos os encômios. Fiz o elogio de praxe e disse que o estava considerando um santo. Ora, respondeu o padre, quem sou eu para gozar os benefícios de Deus. Sou, meu filho, completou, um pecador, cujo perdão só a benevolência divina pode me contemplar, trazendo o beneplácito da eternidade. Nunca, porém, a santidade dos altares. Levantou-se, despediu-se e foi embora.

Foi quando Silvino me puxou pelo braço e disse: “Quer saber a verdadeira história do padre?”. Quero, foi o que respondi. Ai contou uma aventura que nunca esperei. “Pois ele esteve aqui, pediu um apartamento que tenho na rua da aurora, para levar uma suplicante e se foi com a chave na mão.”. Era comum antigamente essa prática, a de contar com um apartamento para essas ocasiões. Voltou, continuou a falar, lamentando que nada conseguira em sua curta temporada mundana, em que pese o porte da penitente e a sua paixão desenfreada.. Não tem nada não, justificou o dono da habitação, vou lhe dar uma garrafa de um bom vinho e você há de ver a reação no momento desejado. E o sacerdote se foi, outra vez, para voltar naquela manhã de sábado. E disse o padre: “Bebi o vinho todo e cai no sono. Nada feito!” Perdeu de vista a penitente, que foi baixar noutra paróquia. Explicou Silvino tratar-se de uma mulher bonita e bem feita, bem recortada, disse ele, mas casada e bem casada.

A outra foi com o Benevides, que tinha um casamento às 17 horas e fora comprar cigarros, enquanto a madame terminava de se trocar. Ao chegar no fiteiro da esquina, levou um susto, ficou lívido, disse, pois encontrara o amor de sua adolescência.

- “Maria das Dores? O que faz por aqui?”.

-“É que estou separada e voltei a morar com meus pais!”.

E conversa vai, conversa vem, terminaram batendo num quarto de motel. Foi um amor que resgatou o ontem, o hoje e o amanhã, mas o nosso Bené adormeceu e quando acordou o relógio marcava 2 horas da manhã. Meu Deus do céu, exclamou! O que faço agora? Não teve dúvidas, dirigiu-se à maternidade da Encruzilhada, conversou com o motorista, seu conhecido e armou as coisas. A ambulância chegou com a sirene aberta na rua do Benevides e o motorista foi positivo e forte com as recomendações: “Ele está doente! Passou a noite toda no repouso! O médico disse que ele não pode se perturbar. E tem mais, só deve comer legumes e frutas.”. E nessa dieta passou 30 dias!

A mais interessante de todas é aquela do eterno Chefe de Gabinete, o Vinicius, figurante constante dos governos da República. Entrava governo e saia governo, o Vinicius permanecia no cargo de Chefe de Gabinete. Mas, um belo dia morre o Vinicius e o velório se instala com pompa e distinção. Silvino abraça Dona Gertrudes com afeição e carinho que ela merecia, afinal conhecera o marido de sala e cozinha, frequentara a sua casa sempre que podia. Os dias se passaram e lá Silvino encontra a viúva, a mulher com características barrocas, toda desenhada, parecia um violão. Um primor, enfim, de figura femina.

- Dona Gertrudes, a senhora precisa viver a vida! Agora que o seu marido morreu, resta-lhe a vida com todos os seus segredos. E eu me candidato a seu par, com o objetivo de lhe oferecer os maiores e mais profundos carinhos que um homem pode dar.

- Por favor, Sr. Silvino, tenha respeito por mim. Sou uma mulher decente e quero respeitar o meu marido mesmo depois de morto. Não me faça propostas inconvenientes.

- Oh Dona Gertrudes, não me leve a mal! Eu conheci o seu marido, o Chefe de Gabinete e não seria eu que iria desrespeitá-lo.

E a conversa fluía assim, até que a mulher concordara em jantar com o Silvino e nessa conversa fiada terminaram num quarto de motel. O homem quase se empanturra com aquela mulherona, matrona de quadro de museu, com umas pernas de chorar e um quadril enorme, uma verdadeira escultura de bom artista. E quando deu por encerrado o seu expediente erótico, enquanto se arrumava para o retorno ao lar, ouviu da mulher:

- Você não vai sair assim não. Você vai terminar o seu mister e me dá tudo que prometeu, inclusive ver a lua prateada e as estrelas douradas.

E foi assim que Silvino deu com os burros n’água. Nunca mais Dona Gertrudes quis saber dele.

(*) - O texto é uma homenagem a um grande amigo, grande contador de histórias. Deixo essa postagem e viajo para o leste europeu, vou ver as antigas metrópoles do velho comunismo e saber como estão as coisas nesse começo de século XXI. Volto no fim do mês de maio, quando as quadrilhas juninas já estiverem em formação, venho resgatar outras histórias e outas pessoas. Este material é reproduzido no Jorna Besta Fubana.

domingo, 22 de abril de 2012

Chovia Peixes em Canguaretama


O meu tio Cícero – Cícero Fernandes de Macedo – era uma figura; uma figura quase folclórica. É aquele que dizia, em alto e bom som, que se o homem chegasse à Lua não encontraria nada além de uma grande plantação de alface. Não sei porque alface? Não viveu, infelizmente, para saber que sua afirmativa profética não foi confirmada. Ou era aquele que lia toda a obra psicografada do espírito Ramatis e a distribuía com os principais padres do Recife, inclusive Dom Helder Câmara.

Gostava de conversar com ele e de perguntar – perguntei isso dezenas de vezes – como tinha  começado a vida: “Como cachorro, meu filho!”. Era o que respondia sempre, para justificar que em seus inícios apenas varria o salão de uma antiga venda, como aquelas que conhecemos no Recife, de balcão ensebado pela charque e o “fígado de alemão” cortados ali, sem falar no bacalhau dos pobres e remediados da sorte.

Não suas tentava as urinas e por isso tinha uma bexiga externa, de borracha, a qual era esvaziada, de hábito, no “quem me quer” da rua da aurora. É que tivera seguidos episódios de gonorreia e ficara, depois de um tratamento longo, com essa incapacidade de micção. Certa vez, contou isso, estava em Canguaretama, no interior do Rio Grande do Norte e teve uma urgência urinária, sem conseguir de forma alguma eliminar as urinas, razão para usar um graveto do solo e com ele romper a cicatriz em segunda intenção de sua uretra. Um horror isso! Mas fez!

De Canguaretama contava que quando chovia ali era uma beleza, pois a chuva vinha acompanhada de peixes. Eu ficava perplexo com isso e indagava a explicação para o quase milagre. É simples, dizia, as ovas sobrem às nuvens quando do processo de evaporação e por lá se desenvolvem, viram peixes, esses crescem e descem à primeira tempestade. Eram espécimes dos mares e dos rios, afirmava com toda ênfase. Incrível isso! Essa foi a maior mentira que já ouvi em toda vida! Valei-me!

Jogava baralho conosco, comigo e com os meus amigos da rua e ganhava todas as partidas. Só depois descobri que guardava cartas importantes sob a mesa. Reis e damas, valetes e coringas, eram postos numa reentrância de um campo de botão improvisado em tabuleiro de jogos e resgatados quando a partida ia terminar. Resultado, batia todas! Um barato essa coisa! Não estava nem ai para o exemplo que devia dar.

A mulher, a quem roubara de casa aos 15 anos, chamava de “benzinho”, enquanto ela o tratava por “Cicinho”. Viviam assim, numa lua de mel que já fora de fel, porque o homem aprontara todas que se imaginar com o sexo oposto e considerado fraco. Fugiu com ela e foi exercer o seu ofício de “cachorro”, só depois fazendo um concurso para a Alfândega, em cujo programa estava as quatro operações, das  quais só sabia duas. E foi com uma soma e uma subtração que alcançou seu cargo. Era o anjo da guarda de meu pai nas horas difíceis, numa viagem qualquer fora do estado ou do País ou num aperto financeiro.

Quando os velhos viajaram à França, assumiu a família. E numa ocasião, briguei com um padre, meu professor de matemática, mandou que continuasse a discussão iniciada no dia seguinte, deu corda. Não quis saber de briga, já estava grande e não segui os seus conselhos: “Fez muito bem! Amanhã faça mais!”. Não fiz!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Um quase parente em Canudos

Depois de ler uma matéria na Revista História, da Biblioteca Nacional, abordando justamente a participação de brasileiros em diversas guerras, incluindo aquelas com as quais o País não se envolveu, lembrei de minha tia velha. Tia Deolinda, habitualmente tratada por Deó, cujo namorado – eram quase noivos – viajou para lutar e morreu, frustrando um casamento que vinha sendo preparado há algum tempo. Mas, eu não sabia direito de cuja refrega o noivo participara e quem era ele. Resultado, solicitei os préstimos da Internet. Pois não é que a Tia Deó consta da grande teia virtual!

E consta, justamente, em trecho de um livro de meu pai, A Rosa Verde; livro que já li duas vezes e não lembrava o detalhe. É! O rapaz chamava-se Alfredo Varela. Seria parente? Com certeza sim, porque, inclusive, o meu avô paterno, marido de minha avó Beatriz, irmã de Deó, tinha o sobrenome também: Fausto Varela Pereira. Pois é, foi lutar em Canudos, contra o Conselheiro. Acreditavam os que faziam aqueles anos, que o líder religioso e social desejava resgatar a Monarquia, instituindo o Terceiro Reinado e contra isso lutavam. Não tinha nada a ver! O homem lutava pelas causas sociais do povo e por ser carismático tornou-se também um líder religioso.

Pois Alfredo Varela morreu e a tia Deolinda ficou solteira a vida inteirinha, uma quase viúva, mesmo sem ter tido marido. Mas era assim à época! Foi a pessoa que mais se aperreou em minha casa. Primeiro porque ela se julgava dona do pão; qualquer tipo de pão era administrado por ela, de tal forma que à simples abertura da lata de alumínio para tanto designada, a fazia correr de onde estivesse para conferir quem estava mexendo com aquele tesouro trigal. Um horror, pois que a molecada passava o dia inteirinho batendo com a tampa no corpo da lata. E ela desadorada, correndo atrás dos possíveis candidatos a devoradores de pão.

Como tinha Nascimento no nome, explicava que tinha nascido na noite de Natal, daí o seu sobrenome assim acrescido. E para nós outros, seus sobrinhos em segundo grau, isso era o mesmo que dizer que tinha a idade do Cristo e ela se irritando dizia: “Bruto!”. Significava dizer: “Burro!”. Como teve demência senil, foi difícil o convívio com essa característica neurológica. Vendo meu pai, certa vez, vestido com a beca da faculdade em que ensinava, admirou-se com o padre que estava ali, em casa e quase pede uma confissão auricular. Pior quando acusou meu pai de ter ficado com sua herança, algumas cabeças de gado vacum que lhe restaram do genitor.

Morreu com 82 anos, como a maioria dos meus parentes, estando ela na casa de meu tio Cícero, onde passava uma temporada. Esse tio, na verdade casado com uma tia, era espírita e durante todo o velório de Deó conversou com ela, fazendo algumas recomendações para o seu julgamento nos celestiais domínios. Era uma figura esse homem, admirador de Dom Helder, para quem enviava os principais livros, escritos por seu guia principal, cujo nome a memória nega-se a lembrar, senão que tinha um sobrenome Ramatis. Foi dele mesmo a afirmativa de que na lua o homem encontraria uma plantação de alface. Nada mais! Não viveu para saber do contrário!



(*) – A crônica é uma referência aos que se imolaram no altar sangrento de belicosas batalhas. Uma homenagem a minha tia Deolinda – coitada! – esquecida na memória de todos. Ninguém mais fala em seu nome e celebra suas datas. Comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para: pereira.gj@gmail.com ou ainda para pereira@elogica.com.br

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Boa Páscoa

Quando chegava a Páscoa, nos meus anos de criança, a minha mãe selecionava os melhores e maiores chocolates que encontrava. Não havia essa neurose de hoje com a gordura e toda gente se deliciava com as guloseimas. Só que ela, como sempre fez, escondia os ovos em vários lugares da casa. Um ovo para cada um dos filhos e tempos depois um desses apetitosos acepipes para cada um dos netos. Era uma festa, com a meninada, nos dois casos, procurando o que imaginava ter direito nesse latifúndio do cacau.

Na mesa dos dias santificados não entrava o peixe que toda gente costumava se abastecer. Afinal, o meu pai tinha tido uma reação brutal, quase morrendo, depois de um jantar no qual foi servida a nossa cioba. Essa espécie de peixe, aliás de ótimo sabor, comia uma alga em Fernando de Noronha e chegava no Recife, com a capacidade de intoxicar os penitentes que degustassem o prato. Hoje, dizem os entendidos, ainda ocorre isso, só que nos mercados públicos predominam ciobas pescadas aqui mesmo. É o que explicam!

Mandava-se uma empregada à venda da esquina, onde pontificavam figuras como Seu João, o dono do estabelecimento e Seu Erasmo, que a minha mãe nomeava de “interessado” no negócio, isto é, um quase sócio, para a aquisição do bacalhau bem cuidado. Comprava-se o salgado exemplar dos mares e se cozia segundo o costume. Sucede que ao tempo comiam bacalhau os pobres de Jó e não se costumava ter à mesa dos remediados da sorte essa comida de pouco valor. Assim, era importante que a empregada explicasse toda a desdita de meu pai, antes do trazer o peixe do oceano enorme. E dessa forma fazia!

Na quinta-feira, embora dia santo de guarda, não havia Missa. Antes, nas paróquias do Recife, os curas se ocupavam do lava-pés, repetindo o Cristo que tomou a si igual missão, diante de seus discípulos. Era dessa maneira na Soledade, onde pontificava o Monsenhor Francisco Sales, muitas vezes falado nesse espaço, Camareiro Papal e Doutor em Teologia. Era dessa maneira, também, na Igreja da Piedade e por certo na Matriz de Santo Antônio, na qual vivia o Padre Severino Nogueira, conhecido como o Vieira tupiniquim, tal a cultura de seus sermões.

E a sexta-feira amanhecia em trevas. As emissoras de rádio tocavam músicas fúnebres ou, quando muito, as partituras eruditas de autores clássicos. Não se podia cantar em casa e muito menos assobiar. O Cristo, em enorme gravura no quarto de estudos de meu pai, “a jaula”, como ele chamava, parecia repreender quem se arvorasse em cantarolar ou em emitir um silvo por entre os lábios. Aliás, a minha avó – fui criado com vó – não admitia isso, em qualquer que fosse o dia ou a hora. Achava um absurdo seus netos, gente da melhor elite, deixarem escapar silvos estridentes de seus lábios.

O sábado de aleluia, não era propriamente de aleluia, haja vista, o fato de que ninguém deixava que a meninada fosse ao baile. A verdadeira aleluia seria no domingo, por conta da Ressurreição do Cristo. Ai sim estavam todos liberados, desde que depois da 3 horas da tarde, mas ai não havia mais frevo no pé. Só tinha uma coisa boa que atraia a molecada: era a sangria que meu pai servia no almoço.

Boa Páscoa a todas e a todos!

Crônica escrita na segunda-feira da semana santa. Uma retrospectiva do que foi este mesmo período nos anos de calças curtas. O texto é reproduzido, de hábito, pelo jornal virtual Besta Fubana. Para comentar use o espaço mesmo do Blog ou o faça para: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com