sexta-feira, 20 de novembro de 2009

As Mesmas Águas Transbordo

Confesso ao leitor que já vi de tudo nesse mundo de meu Deus. Vi o que o diabo duvida de costas, sobretudo no campo da parceria conjugal. É que morei no bairro de Santo Amaro das Salinas, onde havia uma vila operária e ali residiam os meus amigos de menino e as minhas amigas desse mesmo tempo. Pois foi justamente por lá que assisti um doido se meter na vida de um casal, imiscuir-se na moradia dessa família e dividir o leito conjugal com os dois parceiros de cama. A turma nunca dispensou uma gozação em cima do caso e de logo apelidou o homem de seu Cornélio, caçoando com a pobre criatura, cujo sofrimento ninguém cuidou em se incomodar. Depois, ficou o dito pelo não dito, porque com doido não se brinca, nem depois que ele tira o time de campo.
Mas vi, também, o grande amor de Cururu Pei Pei por uma das moradoras do lugar, por uma moça bonita e bem parecida, bem feita de corpo, com um rosto belo e um corpo arrumado. O nosso batráquio foi rejeitado pela família e a jovem namorada encerrou a aproximação, a qual, à época, era bem diferente dos tempos que correm. Foi quando apareceu o Lambreta, que se encantou pela jovem bem parecida e bem feita de corpo, recebeu da genitora viúva a desejada aprovação e terminou noivando com a penitente. Antes de casar, no entanto, fez uma despedida de solteiro pra ninguém botar defeito, reuniu toda gente em bar conhecido no Recife, nos domínios do Parque 13 de Maio, com o sugestivo nome de Cabana. Foi uma farra nunca vista nos limites da localidade.
Quando a manhã ia chegando, encobrindo as trevas, era o Dia de Finados que se anunciava e eu não perdi tempo: “Tinha uma promessa a pagar no cemitério!”. Inventei isso, porque precisava de uma saída honrosa para me retirar, mas a turma – hoje seria galera – não me deixou comparecer sozinho ao campo santo e toda gente se levantou atrás de mim, em verdadeiro préstito pelas ruas ainda escuras, em direção do lugar sagrado. Chegamos lá todos juntos e o velho portão de ferro ainda estava fechado, mas eu que me encontrava prestes a pagar uma promessa, cujos detalhes não tinha de cabeça, inventei para o porteiro a minha necessidade de entrar urgentemente, em função de graça alcançada. O homem abriu a exceção e nós perambulamos entre as alamedas que amanheciam com o dia, até que ficasse paga a dívida com os céus.
O nosso Zé Umbigo de Banana Oca fez pior, preparou o casório, não chamou ninguém para a cerimônia e muito menos para a despedida de solteiro, a qual, como imagino, sequer sucedeu. O padre marcara a união para as 18 horas, rigorosamente, chovesse ou fizesse sol. Sucede que às 14 horas decidiu-se por me consultar – eu já estava no final do curso médico –, razão para interromper a minha sesta, o que mais prezo na vida. Desci de meu poleiro, pois que dormia em cama de beliche e ouvi a sua dúvida: “Como proceder com a noiva durante a lua de mel?”. E justificava a indagação com a explicação de que consultava um amigo quase formado já. Ora, eu não sabia de nada dessas coisas, era solteiro e naqueles anos não se podia ter experiência de coisíssima nenhuma. Recomendei que mantivesse a calma e não fosse com muita sede ao pote. A verdade é que parece ter dado certo, pois foi logo pai de duas filhas bem afeiçoadas.
Quando de meu casamento, a igreja foi decorada por minha sogra e eu fiquei por lá bisbilhotando as coisas. O sacristão era uma figura ótima e eu resolvi elogiar a sua performance, dizendo: “O senhor é um grande sacristão!”. Ele gostou do elogio e quis retribuir, verbalizando em alto e bom som: “As mesmas águas transbordo!”. Isto é: da mesma forma, do mesmo jeito. Eu adotei a sua resposta como mote e sempre que posso agradeço desse jeito: Como dizia o sacristão da igreja da Soledade: As mesmas águas transbordo.
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