quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O Velho Faceta

Gostava daquele fuzuê, daquele passeio acima e abaixo nesse período do ano, isto é, no intervalo entre o Natal e a noite de Ano Bom. Era a fase melhor da Festa, dizia Fernando, sempre acompanhado por um número grande de amigos. Saíra naquela noite vestido a caráter, usava a calça azul de mescla, cozida pelas mãos de D. Deda, presente de sua mãe e a camisa de linho branca, que não coubera em seu tio de São Paulo e o pai também não quisera usar. O sapato, já se sabe, era um calçado de pano, da marca “Rainha”, de cor bege, precocemente herdado do Dr. Novelino.
Passava de barraca em barraca, olhava uma aqui e outra ali, fez uma fé no burro e perdeu, outra na borboleta e também perdeu. Parou no quiosque das bebidas e pediu um vermute. Nem sabia direito da marca, sequer da bebida, mas bancando o desenrolado, o sabichão, verbalizou: “Qualquer marca!”. Deram-lhe um copo com uma porção de Cinzano. Bebeu de uma vez, quase. Saiu e foi bater perna, encontrou nas veredas do velho parque onde funcionava a festa, a negra Gelda. Como vai Fernando? -disse a mulher. Nada respondeu! Não valia à pena.
Na tarde daquele dia encontrara com Silvana, mocinha vinda dos sertões esturricados que estava no Recife para o mês de férias, andando pela avenida Visconde de Suassuna, pra cima e pra baixo, matando o tempo do ócio. Encontrou com ela e passou a fiar conversa. Falou e escutou, ouviu o rapaz contar que ia fazer medicina e tomou coragem para perguntar: “Que moça é aquela que você anda de mãos dadas na Festa da Mocidade?”. Ora, minha querida, disse o moço, trata-se de uma prima do interior muito tímida, mas muito tímida, que eu preciso passear com ela assim, de mãos dadas!
Mas, ficou nisso, nem foi pra frente nem pra trás, e da moça não se tem noticias; notícia não se tem também de “boca de caçapa”, de quem se sabe, apenas, que viajou para os Estados Unidos, onde já estava seu irmão mais velho, Ednaldo de prenome. Mas, nessas idas e vindas pelas alamedas da Festa, Fernando deu por conta da hora. Eram 23:30h, exatamente o momento em que deveria regressar e passar o Ano com a família. Assim o fez, tomou o caminho da volta, mas com a promessa firme de voltar para assistir ao Pastoril do velho Faceta.
E assim foi, depois do romper de mais um ano, com direito a foguetório e às pancadas no velho poste de ferro, Fernando voltou no mesmo pé à Festa da Mocidade e tomou lugar diante das meninas do velho Faceta. E no meio da dança o desbocado senhor abria a boca a cantar: “Eu passeei com minha amada/Peguei na boquinha dela...”. E o refrão vinha de logo: “É mais em baixo, meu velho, é mais em baixo...”. A turba vibrava e logo começavam os pagamentos para que dançasse a Diana, a Mestra, a Contramestra e as outras pastoras. Tinha menino que vibrava com o rebolado da Diana. Mulher de coxas grossas, de ancas largas e de seios fartos. Era tudo que a rapaziada queria na cama de casa.
Depois cabia ao cura da paróquia o perdão dos pecados. E haja pecado pra contar e ser ouvido!

Amém.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Natal

Acordei hoje ouvindo o trinar distante de um pássaro qualquer. Prestei bem atenção aos acordes e não identifiquei a espécie. Será um passarinho preso na gaiola, evocando a fêmea que ficou pra trás? Por certo que sim! Ou será um exemplar exótico trazido pra cá pelas mãos quase sempre cuidadosas de um exilado dos anos, como eu, que de minha cadeira ouço a melodia com os ouvidos da saudade? As duas opções talvez. Não conheço o trinar porque o exemplar é exótico, estranho aos meus ouvidos e aos ouvidos de todos.
Mas, logo depois, antes que o sol nascesse de todo, um bem-te-vi cantava a melodia que tão bem conheço: “bem-te-vi; bem-te-vi; bem-te-vi”. Eu estava sentado no meu canto e para mim a sonoridade tinha uma interpretação diferente: “é Natal!; é Natal!; é Natal!”. Ao fundo cantava um sabiá, dando o fundo musical ao anúncio do bem-te-vi. Era um sabiá-gonga, penso eu, desses que aparecem ainda no parque da Jaqueira, saudando os passantes.
E ao chegar na mesa dos meus escritos lá estava um e-mail de Harumi Royama, essa japonesa pernambucanizada, capaz de escrever em português fluente e suficientemente competente para dançar o frevo em plena Pracinha do Diário. Feliz Natal, é o que diz e eu me lembro de meus dias em Tóquio, assistindo de minha janela o verdadeiro revoar das pétalas da sakura, a cerejeira dos japoneses. Quando voltei, depois de 28 dias na Terra do Sol Nascente, as flores já tin ham surgido nas pequenas árvores das ruas.
Lembrei também de outros natais. Sempre lembro dessas antigas festas. De meu pai muito novo, as mãos dadas comigo, a passeio até o rio Capibaribe – o rio das Capivaras. De minha mãe, tão velhinha agora, condenada ao leito, nova e bonita, abrindo o queijo do reino e servindo a todos.



E eu pensava naquele tempo que todos eram bons! Não sabia que Caim se repetia a cada passo nesse mundo! De lança à mão, o velho algoz mata mais um Abel todos os dias. Eu era besta! Ria, quando Maria Baixinha cantava: "Quem faz o bem recebe sempre o mal...". Não fora isso que aprendera com os jesuitas. E muito menos em casa. Valem os amigos, aquele da cesta de Natal, que me abraçou pelo telefone, dizendo que não esquece do que fiz por ele. Mandou, em seu nome e em nome da irmã, uma bela cesta de final de ano.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O nariz, o braço e a UTI

Voltei há pouco do hospital, onde passei quase 7 dias internado – seis dias e meio –, depois de ter atravessado a fase aguda de um AVC. No fim, no fim, saio contando a historia e fazendo a contabilidade dos ganhos e das perdas. Não que venha aqui para dizer que foi bom, que valeu. Que o saldo foi positivo! Não! Seria hipócrita se dissesse isso! Mas, especialmente para comentar o que vi e o que ouvi nos dias de meu exílio. Antes de tudo informo que estou andando normal e mexendo do jeito que já mexia. Colega meu, em visita à UTI, dizia assim: “Você está melhor do que antes!”. Exagero! O que me falta são os movimentos finos dos dedos da mão direita, razão para escrever com certa dificuldade agora e motivo para não me arvorar em assinar qualquer documento. E, fiquei fanho! Dizem os entendidos que tudo isso passa!

Mas, a grande lição é a da amizade. Em meu telefone havia uma sobrecarga de 10 recados e logo em seguida a gravação informava que era preciso apagar alguma das mensagens. O telefone de casa tocava de minuto a minuto, disseram as filhas. E o afluxo de pessoas à UTI ultrapassou a expectativa. Como grande parte de meus amigos é médico, eles entravam em qualquer horário, o que fez uma das auxiliares dizer o seguinte: “Esse ai é uma celebridade!”. Em seguida, o rapaz que entrou no lugar da moça, completando-lhe a noite, indagou: “Como o senhor deseja ser tratado: por ‘seu’ ou por ‘doutor’?”. Ora, amigo velho, trate como quiser, respondi. E nessa conversa mole eu fui extremamente bem tratado.

Na hora de fazer uma ressonância a vaca foi pro brejo. Imagine o leitor que não conseguiam colocar uma peça do equipamento sobre a minha cabeça; peça, aliás, a que chamavam de “antena”, não sei por que cargas d’água. Era o meu nariz que ficava, sempre, fora do alinhamento desejável. Ai, tive ímpetos de explicar que desde o meu avô, a proeminência nasal dos descendentes vinha aumentando. Não expliquei! Mas justifiquei que nenhum dos “Marques” entraria naquela máquina, malgrado o fato de que alguns são loucos por ambientes assim, claustofóbicos. Afinal, arranjou-se uma máquina capaz de comportar o meu nariz e o exame foi feito. Para o exame, como a outras dependências da instituição, eu ia sentado numa cadeira e a moça da enfermagem me levando. As pessoas ficavam olhando e numa das vezes, não tive duvidas: “Eu sou da Tamarineira e pego criancinhas pra fazer mingau.”. A senhora que passava parou, olhou pra mim e disse como minha tia velha: “Vote!”.

E quando fui pela vez primeira tomar um banho de chuveiro, a auxiliar de enfermagem me falou: “Vou fazer um embrulho de seu braço!”. E dessa forma, devidamente, embrulhado, fui ao chuveiro tomei o meu primeiro banhinho. Do mesma forma pueril vou por aqui recomeçando a vida, aprendendo a assinar os documentos e voltar a falar sem o jeito fanhoso de ser. Sem esquecer nunca de que no internamento levantei a vista aos céus e disse a Deus: “Senhor deixa-me viver! Ainda tenho dois trabalhos para publicar. Um desses com 100 páginas.”. E o Pai, senhor da vida e da morte, me mandou contar isso aqui, dizendo que não adianta correr, como eu fiz, pois a vida exige reflexão e calma.

VIVA A VIDA!!!!!!

Um texto escrito depois de ter chegado do hospital, onde estive por sete dias ou quase isso, me recuperando daquilo que os meus ilustres colegas chamam de "insulto neurológico". Comente o leitor.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

João da Minhoca, Zé Lezin e Bico de Ouro

Voltei agora (domingo à noite) de uma comemoração dos 42 anos de formado. A minha turma de medicina, considerando que o tempo já vai longo e que vez ou outra fenece um colega nesse carrossel da vida, decidiu assinalar a data magna a cada dois anos, fazendo uma festa maior nas chamadas datas fechadas. Assim tem sido! O grande “Biu Preto”, no encerramento da temporada, não descuidou e se pronunciou dizendo que os mortos já estão fazendo o mesmo no reino dos céus, isto é reunindo os colegas a cada ano, degustando a mariscada dos costumes e tomando a cerveja bem gelada dos hábitos corriqueiros. Depois precisou de lenço para exugar as lágrimas. 
Estiveram presentes 40 colegas, gente como o grande “Baré” e o nosso inquieto “João da Minhoca”, o “Jia” e o “Catarro”, sem falar na presença, também, de “Pluto” e do grande “Quase-Lindo”, ambos dados ao difícil mister da escrita. Impossível esquecer o “Fofa”, que nesse largo período de almoços, jantares e estadias em hotéis de luxo, nunca hesitou em comparecer. Faltaram alguns que há muito não chegam perto das comemorações. O “Chupa-Osso” lá não foi, o “Mongrô”, do mesmo jeito, mas o conhecido “Sulamita”, com suas digressões sobre o SUS, estava por lá e ilustrou o convescote. O nosso constante “Toinho da Cachorra”, também, prestigiou o momento. Fez falta o colega com cognome diferente: "Iracema". Homem hoje mais das finanças e das aplicações, que das incursões na seara da imunologia.  
Na hora do chorinho, a menina encarregada dessa velharia toda reuniu os antigos concluintes e prometeu que um passarinho sairia da máquina fotográfica, contanto que todos se juntassem e posassem para um retrato. Depois, venderam mais de 20 cópias. O ponto alto do encontro foi Getúlio Cavalcanti fazendo uma serenata de frevo, cantando sucessos pernambucanos desde a década de 20 até o hoje dos dias. Mas, antes dele, o “Zé Lezim” da Paraíba, fez um show que arrancou ruidosas gargalhadas da plateia. Ficaram algumas das piadas, mas uma dessas selecionei para o leitor atento: 
  •  "Na venda de seu Miro o empregado Vicente quase engole um rato. Ficou com o bicho na garganta, segurando pelo rabo. Nisso levaram o penitente ao médico, que tinha saído e o seu lugar estava ocupado pelo doido da cidade. O maluco viu o caso, estudou a situação e passou a receita. Não conseguiram despachar em cinco farmácias a que compareceram. Estava escrito: Passar queijo ralado na beira do cu. Comprar uma ratoeira e armar na junção das bundas. Comprar um gato e deixar de plantão no rabo do paciente." 
  • E quando os ponteiros do relógio se juntaram, decretando o meio-dia do domingo, o restaurante abriu. Diante de Brivaldo, não hesitei: “Tudo passa, meu caro amigo!”. E ele, sem entender bem a que me referia, balançou a cabeça afirmativamente. Antes nos reunimos para conferir os retratos e assistir a derradeira mensagem, a da despedida, “Biu Preto”, filho de “Chico da Manola”, levantou-se e invocou os encantados no infinito das coisas. Chamou nome por nome, ajuntando o apelido de alguns: “Bico de Ouro” e “Cachorrão” estavam no comando da turma dos encantados, dançando e frevando, comemorando também as mais de quatro décadas de convívio. As meninas da Bravo, a empresa de eventos, lideradas por Mônica, quase nos fizeram chorar outra vez, com palavras nascidas do coração para nos homenagear.
E mais uma festa se passou, um ano rodou na escala da vida e a esperança de novos encontros ficou.

(*) Uma crônica dando conta de um final de semana na santa paz do Senhor; tempo de lembranças dos começos e hora das reflexões. Texto que ofereço a Zília Codeceira, leitora atenta do espaço, que vendo a demora na atualização do texto, ligou e assinalou que já esperava desde ontem a nova crônica. Ótima companheira das digressões literárias. Comente o leitor no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

domingo, 21 de novembro de 2010

Seu Lunga: Tolerância zero

Na praia de Cumbuco, proximidades de Fortaleza, reuniram-se jovens executivos e suas famílias. Eu me acrescentei ao grupo, embora estivesse fora da idade média presente ao recinto. Havia cerveja bem gelada e acepipes variados; havia sobretudo o que conversar, nesse agradável exercício de jogar o papo pela janela. Ao fundo, um pássaro bonito, de penugem reluzente, ensaiava um trinar diferente, saudando o domingo que ia passando. Em certo momento, puxaram um assunto mais que interessante. Eu gostei que me enrosquei de conversar sobre seu Lunga.
Toda gente sabe que seu Lunga é o mais irreverente ser humano do Brasil, o mais impaciente e o mais abusado senhor dessas terras que Cabral descobriu. É o homem do tolerância zero. Contaram o que o diabo duvida em sexta-feira da paixão à noite. O personagem é um comerciante de ferro velho, de bugigangas sobretudo. Dizem que ele estava na loja, quando chegou um freguês interessado numa porca. O dono do comércio mandou que ele procurasse numa enorme caixa, repleta desses acessórios que se ligam aos parafusos da vida. Não houve jeito! Não achou! Ele foi lá, meteu a mão na ferragem e tirou a porca, dizendo: “Olha aqui!”. O penitente respondeu de logo: “Ótimo! Me dê por favor!". Seu Lunga não se fez de rogado e jogando o porca de volta na caixa, decretou: “Procure direito que você acha!”.
Contaram que Lunga estava tirando goteiras, defeitos das telhas de sua casa, um curioso passou e perguntou: “Tá tirando as goteiras seu Lunga?”. Ele respondeu: “Tô não! Tô é fazendo!”. E ai saiu feito louco a quebrar as telhas. Outra vez, dando uma surra em um dos seus filhos, quando ainda pequeno, o menino gritava: “Tá bom pai! Tá bom pai! Pelo amor de Deus! Tá bom!”. Lunga responde: “Tá bom? Que legal! Pois quando tiver ruim, diga que eu paro.". No seu comércio de sucata, ele também vende outros produtos, dependendo da ocasião. Uma vez tinha uma saca de arroz e um romeiro perguntou: “Seu Lunga como tá o arroz?”. E ele: “Tá cru, miserável!”. Outro romeiro parou pra comprar uns ovos que estavam expostos. Pegava cada ovo e balançava perto do ouvido, um a um, quando ia pelos 6 ou 7 ovos, Lunga disse: “Pare! Pare! Pare! Chocalho tem é no mercado! Pode sair!".
Dizem que numa madrugada, a mulher de Lunga teve um mal-estar, e gemendo ela acordou o marido:
- Lunguinha, Lunguinha, ta me dando uma coisa aqui...
- Então receba!
- Mas Lunga, é uma coisa ruim...
- Então devolva!.

Seu Lunga foi entrando em uma loja e perguntou:
- Tem veneno pra rato?
- Tem! Vai levar?
- Não! vou trazer os ratos pra comerem aqui!
Seu Lunga resolve andar um pouco e sai com seu chapéu grande e antigo. Durante sua caminhada resolve coçar a cabeça sem tirar o chapéu, então uma conhecida dele pergunta:
-Oxe, seu Lunga, num tira o chapéu pra coçar o cabelo não é?
Seu Lunga responde na bucha:
-E a senhorita tira a calcinha pra coçar o tabaco?


O Seu Lunga consegue um emprego de motorista de ônibus. No primeiro dia de trabalho, já no final do dia, ele para o ônibus em um ponto. E uma mulher pergunta:
- Motorista esse ônibus vai para a praia?
E o Seu Lunga responde:
- Se você conseguir um biquíni que dê nele.

(*) - O detentor dessas histórias todas é Silvio Costa Andrade, engenheiro de mão cheia e genro de seu Borba, uma figura, em tudo muito diferente do personagem, mas uma pessoa do tipo "gente fina", nascido e criado no verde do canavial de Itambé, cidade do Areópago e da primeira loja maçônica das Américas (será?). O leitor tendo gostado, comente no espaço mesmo do Blog ou faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com Se gostarem, ainda tenho mais e hei de contar por cá.

sábado, 13 de novembro de 2010

Pregões do Recife

Escrevi por cá uma crônica sobre vendedores e prestadores de serviço das ruas do Recife e, confesso, não esperava a repercussão que teve. Alguns comentaram e até acrescentaram alguma coisa e sobretudo consideraram a saudade desses tempos distantes na contagem dos anos. O meu ilustre amigo Silvio Costa, que morou em todas as olindas, teve o cuidado de fazer umas anotações a propósito, reunindo pregões e citando outros detalhes dessas curiosidades locais. Uma página inteirinha de referências sobre o tema, o que me levou a ensaiar, outra vez, uma crônica abordando a questão. Em respeito, até, aos leitores todos, os que gostaram e comentaram e aos que gostaram e não comentaram. Silvio começa por um dos pregões mais comuns da cidade: “Espanador/Vasculhador/ Colher de pau/Esteira d’Angola/Rapa Coco/E grelha.../Eu tenho quartinha”. E lá vinha o homem carregado de apetrechos assim, apropriados à casa, às arrumações domésticas e à cozinha. Andava com tudo isso às costas, com os cabos enormes, de madeira, sempre, apontando para os céus e trazia um colorido peculiar, expondo os “cabelos” do material que vendia, com riqueza nos desenhos e nos contornos.
Outra dessas contribuições de Silvio Costa é a do boleiro, que vendia a broa e o grude, balançava um pequeno sino anunciando a chegada e trazia os seus produtos em uma espécie de mesa envidraçada e sem gavetas, com quatro pernas, carregada na cabeça. Ao primeiro sinal de um comprador qualquer, arriava aquele móvel, e servia o penitente com o auxílio de um garfo de dois dentes, apenas. Na minha rua passava um desses, tinha o cognome de Criança, não sei bem por que razão e conforme os meninos do bairro carregava bolos que davam, habitualmente, dor de barriga. Mas, toda a gente comprava. A minha mãe, todavia, nunca me deixou provar dessas delícias de Criança, tinha medo do resultado, das cólicas e da febre, da doença, enfim, que lhe atormentava as noites. Nem o doce japonês, cujo vendedor não descuidava em passar, pude provar e tinha inveja da molecada comendo o produto caseiro, que grudava nos dentes e arrancava as obturações. O verdureiro, também, aparecia empurrando uma carroça de cor verde ou azul, e oferecia verduras e frutas, o maracujá para o ponche! Conhecia todos, as empregadas de casa e as madames, chamando pelo nome, mesmo.
O mascate era uma beleza, usava uma mala recheada de coisas ou vinha na carroça puxada a cavalo. Anunciava-se com uma matraca,isto é, uma peça feita de dois pedaços de madeira unidos por uma tira de couro e ia batendo, batendo, para vender as miudezas. Linhas de todos os tipos, agulhas a valer, alfinetes-de-segurança e outras quinquilharias. A minha avó gostava de escolher a linha própria a seu croché ou a linha de tricotar e com esse material enchia o tempo e a vida, produzindo toalhas e panos diversos, os quais, por vezes, vendia. Era homem de parada certa na minha casa e já estacionava a carroça antes de qualquer chamado, abastecendo a cesta de costura materna e a caixa de sapato na qual uma de minhas tias guardava a matéria-prima de seus predicados manuais. O mascate, anotou Silvio Costa, vendia também banha para alisar os cabelos e perfumes produzidos, artesanalmente, por ele mesmo, de qualidade nem sempre satisfatória. Para o meu pai comprava-se uma Quina, de cuja oleosidade sustentava o negro de seus cabelos, penteados com todo o cuidado de quem tinha orgulho da pilosidade craniana. Para os meninos, a brilhantina Glostora!
O vendedor de galinhas dizia: “Galinha e capão gordo!” E ninguém sabia direito o que era capão, porque sobre essas variantes da espécie não se assuntava com os meninos! Outro se oferecia assim: "Eita jabuticaba!/Já caiu cajá!” Ou assim: “Chora menino/Pra comprar pitomba!” E o homem do miúdo, que vinha gritando – “Miúuuuuudo!” –, enquanto o auxiliar carregava na cabeça o tabuleiro com fígado,coração e miolo de boi, além das tripas. Como esquecer o homem do algodão-doce, fazendo flocos de açúcar na carrocinha, rodando um veio com a mão direita e recolhendo o produto com a esquerda, num pedacinho de papel colorido? E o vendedor de pipocas, estourando o milho na chapa quente, em frente aos cinemas, permitindo assistir ao seriado do dia com a opção barata e gostosa ou na saída dos colégios para chegar em casa sem fome e ouvir a reclamação de hábito:“Menino! Você come porcaria na rua e não almoça!” Muitos dos meus amigos não dispensavam, à saída dos clubes, nas madrugadas do Recife, o cachorro-quente preparado ali, à vista de toda a gente, com salsicha cozida em vasilhame de alumínio e pão dormido, de um inigualável sabor!
A Sílvio Costa, colega de Universidade e companheiro de jornadas à beira-mar, nostálgicas horas das lembranças do tudo, esta crônica, nascida sob a inspiração de suas notas, em tarde assim, morna e sobretudo feliz...

(*) - A crônica foi adaptada apenas, porque escrita há anos, há décdas talvez. Estou ficando velho! Silvio encantou-se muito cedo para o infinito das coisas, para a outra dimensão da vida. Dele, como de tantos outros que se foram, nunca mais tive notícias.  Com esse texto faço o seu resgate, um aflorar de sua memória, tão dado que era às coisas do lugar. Colecionador dessas peculiaridades locais e um papo certo, quando nos juntávamos em tempos idos, na praia de Pau Amarelo, eu e ele, fiando conversa noite a dentro. Nunca mais soube, sequer, da esposa dele, Lúcia de prenome. Leitor amigo, gostando do texto ou concordando com a homenagem, comente aqui mesmo no espaço do Blog ou o faça para os endereços: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com  

domingo, 7 de novembro de 2010

Consertador de Panelas

Como esquecer do consertador de panelas, que passava oferecendo os seus préstimos às custas do toque cadenciado e peculiar de um pequeno varão de ferro sobre uma frigideira usada? O simples escutar dessa musicalidade característica, produzia na cozinha um rebuliço e as peças de alumínio furadas eram, de logo, selecionadas e entregues ao especialista na arte do remendo. Voltavam novas, praticamente, trazendo no fundo, sempre, o acréscimo de que precisavam e tinham a destinação habitual, a do cozimento, a depender, apenas, da receita do dia. Quando a galinha ia para a mesa, por certo que fora comprada ao homem que a cavalo trazia dois caçuás de penosas, um de cada lado. Cabia ao comprador sustentar a ave pelas asas e optar pela de peso maior, pois que o preço era unitário somente, não interessando os quilogramas a mais, de um ou de outro exemplar. 
Musicalidade mais apurada, entretanto, era a do amolador de tesouras, de facas, também, que usava um instrumento assemelhado a um realejo, do qual nasciam as notas da oferta. Um desses tinha parte do antebraço amputada, mas com um revestimento de couro, uma luva apropriada, manuseava a peça, cega por hora. Usava um carrinho que vinha empurrando e ao primeiro sinal de serviço a ser realizado,  invertia a posição, alinhava a polia grande de borracha e com o pé num pedal artesanal girava o esmeril. Na realidade, terminava desgastando as lâminas a serem amoladas e em casa de toda a gente algumas das facas não serviam mais para atender às visitas ou aos mais cerimoniosos da família. Eram facas da cozinha, dizia-se.
O vendedor de pirulitos, com uma tábua toda furada e os doces cônicos encaixados, usava um apito e ia passando adiante o seu produto de fabricação caseira, que pregava nos dentes. Já o homem das vassouras e dos espanadores era diferente, trazia um material de cabos coloridos e de pilosidade formando desenhos, para o chão da casa e a poeira dos móveis, além de vender, também, o vasculhador, que passado no teto sacudia as aranhas, afugentando-as das teias. Tinha um grito característico, chamando a atenção para a sua variedade em material assim, destinado à coleta do lixo doméstico, o grosso e o fino. Mas a oferta da lã de barriguda para travesseiro era cantada em versos sem muita rima: “Eu tenho lã de barriguda/Para travesseiro.” E como não havia a espuma de hoje, sintética e mais prática, conseguia boa freguesia nas ruas por onde passava. Era preciso encher esses apetrechos, que nos servem à cabeça, para um bom e reparador sono, a intervalos de tempo certos.
O peixe, do mesmo jeito, chegava à porta de casa, vinha em dois balaios, os quais, sustentados por cordas à ponta de um suporte de madeira carregado às costas, pendiam livres, quase, balançando, pra lá e pra cá, à medida que o vendedor andava pelas ruas e oferecia o produto gritando. Alguns desses homens do peixe faziam verdadeiros malabarismos com os balaios. Paravam, então, e apresentavam as espécies e as espécimes de que dispunham, utilizando-se depois da tábua para preparar as postas, tudo segundo as preferências do freguês. Peixe fresco, ao tempo, sem a ação, às vezes deletéria, do gelo, que da carne branca rouba o sabor. Com os anos, apareceram os frigoríficos e a albacora popularizou-se na mesa do recifense. Mas, o nome desse bicho dos mares era muito aplicado como apelido para as mulheres gordas, ricas em adiposidades.
E o vendedor de cambará? "Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém...” Há, ainda, quem sinta saudade do velho acendedor de lampiões das ruas do Recife! Desses não lembro! Não esqueço, todavia, do acendedor das lâmpadas dos velhos postes de metal de meu bairro, ligando as chaves e alumiando o tempo.

(*) Foi difícil encontrar as fotografias apropriadas ao texto. Quase não há registros desses figurantes das ruas. Assim, segue o texto, escrito há mais de uma década pra trás, mas atualizado em lembranças e saudades. Comente o leitor no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com  

domingo, 31 de outubro de 2010

Os Macacos da UTI

Corria o ano da graça de 2005, era o mês de janeiro e eu estava doente, tinha duas vértebras fraturadas e uma dor constante, forte e incômoda. Eu não podia, sequer, me levantar da cama e até as refeições fazia deitado. Comia o arroz com feijão de colher e ainda tinha que acrescentar a carne, que vinha cortadinha para facilitar a ingestão. Os médicos se dividiam e não havia um diagnóstico definitivo. Com uma suspeita de câncer, não queriam me operar, de nada serviria me reparar a coluna, porque a morte viria de logo. A verdade é que nada havia de tumoral e eu encontrei um profissional abnegado que assumiu o risco de minha operação. Depois de 13 horas no bloco cirúrgico, eu estava um caco e quase morro na UTI. Ou eu já cheguei no hospital virado num caco.

Mas o trágico ou o quase trágico tem o cômico para se contrapor e é o que conto agora. Ansioso como me encontrava, fui medicado pelo plantonista com um produto farmacêutico que me fazia delirar ou mesmo alucinar. Eu já sabia a cor do comprimido e as horas de minhas viagens farmacológicas. Era um horror! As coisas começaram na UTI mesmo e eu lembro de ter visto na porta de entrada um grupo de japoneses que trabalhava comigo na universidade, chegando para uma visita. Gritei de lá, de meu leito: “Deixa entrar! São meus amigos!”. Não entraram! Foram barrados, como vi em minhas divagações fantasiosas. Reclamando da enfermeira – não sei se reclamei de verdade – soube que ela havia guardado os cartões dos pretensos e virtuais visitantes. Os japoneses onde chegam deixam cartões! Eles nunca foram lá, soube depois.

O pior é que via sempre um dos auxiliares de enfermagem numa parte superior da enfermaria, avarandada, uma criação de meu imaginário, de onde fazia caretas para mim e de onde ameaçava inundar tudo com a água que podia manipular dali. Era um sofrimento danado e não adiantava tirar os olhos, porque mesmo assim o via em cada posição de meu olhar. Eu vinha causando um transtorno grande no lugar e reconhecia isso, mas a ansiedade era enorme. Sendo assim, de hora para outra, a televisão coletiva passou a exibir caracteres, forjados em minha imaginação, que recomendavam calma, tranquilidade e serenidade. Que eu me calasse e deixasse de incomodar os outros. Aquilo ali era uma UTI, todos estavam doentes, uns mais e outros menos, mas eram todos portadores de alguma injúria orgânica, por isso não aguentavam mais as minhas reclamações e as minhas queixas.

No quarto, em certa ocasião, minha mulher chegou para dormir comigo e eu estava trombudo, fisionomia fechada, calado, ensimesmado. Ela indagou o que se passava e eu expliquei: “Você foi hoje à televisão Globo e mostrou o seu livro no programa de Ana Maria Braga. Gostei do título, mas não precisava dizer que é casada com um Reitor e que eu tinha uma amante, dando o nome de uma ex-namorada minha.”. Ela levou na brincadeira e fez tudo para que eu dissesse o título de seu livro nessa alucinação do cão e eu não disse. Mas, não aceitei naquela noite que ela dormisse comigo. Afinal: “Todos estão ai fora comentando que eu estou doente, você fica comigo e eu tenho uma amante lá fora! Não dá!”.

A do médico que fez o meu ecocardiograma eu já contei por aqui, mas vou repetir. Não sei porque cargas d’água achei que estava em Lisboa e disse ao profissional: “Ilustre colega lisboeta: como explicar a rapidez com que cheguei aqui? Imagine que Cabral levou meses de Lisboa ao Brasil e eu quase não precisei esperar para aportar por cá?”. E ele, muito admirado com a pergunta, respondeu: “O seu médico lhe explicará tudo!”. Mas, como achei que estava numa fila de espera, na qual havia um cachorro, também, ainda indaguei: “Por favor! Onde está o cachorro que me antecedeu aqui?”. A resposta foi a mesma: “O seu médico lhe explicará tudo!”. Falando em bicho, ainda na UTI, identifiquei nos bolsos de um enfermeiro filhotes de macacos bem aconchegados. E na hora da visita disse a minha mulher: "Cuidado! Esse enfermeiro leva dois macacos nos bolsos!". É demais!

Quando identifiquei a droga que me causava essas estranhas manifestações, pedi ao médico que suspendesse. E assim foi feito! E eu voltei ao normal. A verdade é que tendo visto a morte de perto, passei a dar um valor extraordinário ao exercício da vida.

VIVA A VIDA!

 
(*) - Escrevi o texto como forma de mostrar aos leitores que nem tudo está perdido quando assim parece. E que a vida vale a pena, mesmo quando se tem limitações.Eu venci e hoje trabalho como nem sei o que, escrevendo o dia inteirinho.  Comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com
 




sábado, 23 de outubro de 2010

Chove lá fora

Amanheceu em Aldeia! É sábado! Um sábado de outubro! E o tempo é outro: chove lá fora. O ar do mundo está friorento e a umidade que acaricia meu corpo faz arrepiar os poros. Cortei o mamão que ontem comprei em dois e expus a banda mais suculenta para que os pássaros de meu jardim venham bicar. Uma ave azul – linda! – já se aproximou e desconfiada, saltitante, começou a quase roer a fruta. Uma saíra, ensina Harrop. Ontem à noite, quando percorria as ruas do condomínio e já havia uma aragem friorenta, vi quando uma raposa atravessou o caminho com os olhos esbugalhados, correndo da agitação que os forasteiros, como eu, promovem por cá. Uma agitação urbana, incompatível com a ruralidade do lugar ou o inteiramente campestre dessas paragens.

Sentado no alpendre deixo-me deliciar com essa manhã em tudo diferente. Chove uma chuva gostosa, de pingos esparsos, segmentos curtos das águas do céu. O firmamento está completamente nublado, como se houvesse nos ares do mundo uma ameaça nunca velada de tempestade à vista. É possível que ainda hoje, diante do abafado desses últimos dias, possa trovejar e relampejar, recriando cenários de meu pretérito, dos meus dias de infância, momentos molhados em terraços do ontem. Há um aconchego da natureza em relação a meu ser, é como se esse entorno maternal me abraçasse, me tomasse por inteiro, me embalasse em velhas cantigas, antigos cantares de quem já não pode mais com a própria lucidez: minha mãe!
E à medida que escrevo a temperatura vai baixando mais e mais. Não resisto à tentação e vou bisbilhotar o meu termômetro digital: 23,13ºC. Faz anos não vejo registro assim, tão baixo, em terras tupiniquins. Sinal dos tempos! Ninguém sabe o que será deste Nordeste sofrido com o aquecimento global, se o sertão há de virar mar e assim materializar a profecia de Gonzaga ou se aquela afirmativa de cunhado meu, de que pescaria sentado nas Ruças vai vingar. Ora, quase não há mais ruça nesses rincões, senão hoje, nessa manhã de um outubro assim, tão diferente. Essa chuva que chove veio para irrigar com o húmus dos céus as plantas de casa; as grandes árvores do terreiro e a grama do jardim ou as cestas que pendem em meu alpendre. Há uma alegria vegetal em cada um desses seres, respondem às águas que caem com acenos curtos também ou com longos cumprimentos verticais, baixando-se ao tempo que mudou.

Quem estava abafado era eu, não o tempo, com a grosseria daquele homem que na boquinha da noite de ontem, quando, inadvertidamente, tomei o seu lugar para comprar o pão, só não me agrediu porque a ele não dei ouvidos. Ora, meu caro, quase digo, não seja tão rude, os seus direitos serão preservados, mas tenha paciência com o semelhante. Essa manhã, francamente, me curou as mágoas!
 
(*) - Um texto parido d'alma, nesta manhã de 23 de outubro, quando uma chuva fina caiu em Aldeia, região metropolitana do Recife, no Nordeste do Brasil, esfriando o tempo, molhando a terra e fazendo as plantas agradecerem em cumprimentos curtos e longos. Comente o leitor no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Bica do Aurélio

Quando me matriculei para estudar com os jesuítas, fui posto numa sala sob as ordens de um irmão leigo, nascido em Portugal, homem de um sotaque muito forte. Ele mandou que a classe fizesse um ditado e eu tirei zero. Chegando em casa, disse a meu pai que não ia mais ao colégio, porque eu não entendia o que dizia meu professor. Como exemplo, mostrei que o meu sobrenome - Pereira – era pronunciado por ele como: Preira. O meu pai, de forma muito paciente, sentou-se comigo e falando como se fosse um português, mostrou exatamente como deveria entender o falar tão peculiar daquele homem. E assim foi! Terminei aceitando e admitindo as diferenças.

Pior do que isso foi aquela peça de teatro a que compareci já adulto e barbado; peça que integrava um programa de cooperação bilateral com o título de: Cumplicidades. O teatro estava com meia lotação, pouco mais ou pouco menos, e toda a plateia foi chamada a se acomodar no palco, um fato inusitado. Eu não entendia nada, mas um colega meu, velho amigo dos tempos de colégio, acompanhava com vivo interesse os diálogos. Não hesitei e cheguei junto indagando-lhe: “Henrique! Você está entendendo?”. No que ele foi sincero: “Absolutamente nada, senão que o cachorro da família chama- se “Leão”. Era isso que eu tinha entendido e nada além disso. Resultado, sai do teatro sem saber do enredo ou da narrativa.

Mas no domingo que passou estava eu bem acomodado no restaurante do Bosque, aguardando a frango desossado que havia pedido e a cerveja bem gelada do Ronaldo, quando chega um português do Algarve, Aurélio de prenome. Senta e se apresenta aos que não o conheciam ainda: “Eu sou o homem que deu nome à bica: Bica do Aurélio!”. E ai passou a contar o fato que lhe aconteceu. É que tendo sido homenageado com o batismo dessa fonte d’água, vez ou outra se depara com uma história diferente. É gente que vai por lá em busca de um milagre dos céus ou gente que vai aproveitar o benfazejo lugar para se refazer de um achaque qualquer.

No caso em particular, estava ele fiando conversa com Biu, debatendo com o cinquentão as agruras da vida a dois, considerando que só agora o quase gestor do condomínio vai casar, quando chegam duas senhoras bem afeiçoadas. Cumprimentam a todos e reclamam do gerente a limpeza da Bica do Aurélio, onde costumam rezar, à falta de quem as leve a São Severino dos Ramos. Rezam, sobretudo, disseram, pela alma do Aurélio, homem bom, com o espírito voltado para o semelhante, idealizador esforçado daquela fonte. Chegaram até a sugerir fosse o aludido senhor indicado para a condição de santo nos altares da Igreja. Elas podiam, inclusive, trabalhar essa iniciação, abrindo o processo de canonização na Arquidiocese. Biu não se conteve e disse: "seu Aurélio é este senhor". Não precisa dizer que a perplexidade quase as fez desmaiar. Mas, de toda forma, o Jackson já começou uma movimentação para a entronização do Aurélio, em vida mesmo, num altar qualquer do Bosque.
E o garçom Catraca, apelido que vem de longe, em função de um ruído em tudo semelhante à peça que movimenta uma bicicleta, forjado pelo abrir e fechar da mandíbula, foi desarrumando a mesa, ajeitando a toalha surrada e recolhendo os pratos. Afinal, precisa se preparar para a viagem que fará a Juazeiro do Padre Cícero, onde vai rezar de joelhos pela conversão dos pecadores e pela saúde da gente que conhece, incluindo meu nome no meio. Deus o leve, seu Catraca, invocaram os circunstantes, desejando ao peregrino que penitente também é, uma boa viagem de ida e de volta.

No meio dessa conversa toda, o Jackson disse que vai também criar um Blog e fazer companhia ao escriba aqui. Deus o ouça, disseram todos.