sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

A Crença de Zé Miúdo e a Fé de Margarida

Dia desses, depois de um bucólico amanhecer por aqui, em minha casa de Aldeia, apareceu um sagüi buliçoso, saltando de galho em galho, à procura de um naco, que fosse, de uma fruta qualquer. Aproximou-se e se achegou, viu gente no alpendre e correu, voltou para a mangueira de onde veio. E outro dia, numa manhã quente de começo de ano, evaporados uns salpicos do que poderia ter sido uma chuva do caju, o joão–moleque pousou novamente, preto, da cor do piche, brilhante feito luz, todo encerado, luzidio, polido a óleo, como parecia. Mas não vi a fêmea, a maria–mulata, toda marrom, que ouve do macho o canto meloso dos desejos e das vontades. Nada pode se comparar, no entanto, à guriatã que escolhia, a seu modo, um lugar para se aninhar. Bela, bela! O peito amarelo como o ouro, contrastando com a escuridão do dorso. Tomara que ache um recanto qualquer e possa construir o seu lugar.

Mas, tem doído n’alma assistir à derrubada das matas, são toras e mais toras de madeira expostas nas porteiras das fazendas, aguardando o caminhão que chega para recolher o que sobrou da insensatez humana. E esses bichinhos todos, que sobrevivem nas árvores, hão de se entregar também à imprudência dos insanos. A cobertura vegetal está se esvaindo, então, malgrado o Ibama e malgrado a Cipoma. Os reservatórios d’água vão se exaurindo e as fontes fenecendo à força dessas investidas, em tudo, especulativas, porque buscam lotear os espaços e ocupá-los com mais e mais condomínios. Não se duvida do aconchego do lugar, antes o contrário, exalta-se a calmaria e a paz que preside o canto, mas há um limite pra tudo nessa vida. E há quem esteja interessado em defender a conservação do ambiente, à semelhança de Luiz Helvécio, vereador atuante no Recife e nas cercanias, forasteiro como eu nos domínios de Aldeia.

Os duendes da mata não resolvem mais a questão, falta fôlego para tanta coisa de uma só vez. A Comadre Fulozinha – ou Comadre Florzinha –, o Caipora e o Curupira, donos supremos da intimidade florestal, protetores do verde das plantas e do colorido dos bichos, renderam-se ao despropósito humano. Não têm mais forças para uma reação, para uma surra bem dada no caçador desvairado ou no lenhador, que impiedoso macula da paisagem a beleza e afugenta os bichos. De que serve mais a crença de Zezinho, lá de Chã de Cruz ou a fé de Margarida Hercílio, das distâncias de Pedra Branca, na Paraíba? Nem Zé Miúdo, que naquelas terras era amigo da Comadre, dá mais conta desse recado, o de reparar os danos às matas e aos bichos. Até ele, cujo irmão levou uma surra com rama de urtiga e acordou depois tomado pelo sangue–novo da pureza dos que moram em lugares assim, da crença e da fé, ficou impotente com tantas investidas.
Fulozinha, a cabocla menina, nos seus sete anos de idade, amorenada feito uma índia, de cabelos longos a lhe cobrirem o corpo desnudo; cabelos com os quais se veste e com os quais surra o penitente que não lhe respeita as ordens. Ou Florzinha, na mesma faixa de idade, loura feito um alemão, fazendo o amigo de Zezinho se perder na intimidade, úmida e escura, da mata quase virgem. Ou a Comadre que se aborrece com a atitude de João Alexandre das histórias de Margarida, tece uma trança na crina do cavalo com o nome de Alazão, porque o dono lhe cortou as “esquilingas”. E o animal, daí por diante, amoquecou, fraquejou, adoeceu pelo desprezo do espírito das matas. Deixou de sair, como fazia todas as noites, esquipando pela rodagem, levando no lombo o duende dos bosques. Essa gente que maltrata a natureza e escarnece do meio ambiente, deu pimenta à Comadre e há de amargar o castigo dos condenados pelos anjos dos céus.

Nem Ascenso Ferreira, que cantou a caipora e se encantou com o pai da mata – “Ali mora o pai da mata/Ali é a casa das caiporas...” –, com o seu vozeirão e seu enorme chapéu, daria jeito ao desnudar das terras pernambucanas e à matança da bicharada toda. Nem Gilberto Freyre, que escreveu Nordeste, antecipando conceitos da ecologia ou Vasconcelos Sobrinho, que tanto lutou em prol do ambiente, resolveriam o impasse.

O grande problema é que as pessoas não têm mais a crença de Zé Miúdo e a fé de Margarida. Derrubam e matam impiedosamente.

(*) – Uma crônica nascida dos meus interesses em estudar a lenda da Comadre Fulozinha, o papel da Caipora e do Cupira, em defesa das matas e das florestas.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A Lotação dos Céus

A morte continua sendo pra mim uma surpresa! Mesmo tendo acompanhado a tantos até o derradeiro suspiro, nos meus tempos da prática clínica e mesmo comparecendo, como já compareci, a mais de uma centena de cerimônias fúnebres - imagino -, não me conformo com este retorno: “E ao pó voltarás!”. E ando por aqui, confesso, um tanto quanto atrapalhado com a continuidade das coisas na largueza da eternidade, pois que dessa dimensão infinita não se tem notícias, senão aquelas da Palavra. E pelos relatos bíblicos existe uma compensação, mais do que justa, em função das dores vividas neste mundo insano ou resultante do padecer diário e do sofrimento das horas. Mas, nisso tudo são descontados os pecados, as faltas perpetradas contra os mandamentos sagrados, aqueles que envolvem os pensamentos, as palavras e as obras. Nos meus começos, entretanto, aprendi a contabilizar os erros na seara da carne e quase nada me disseram sobre a caridade e a fraternidade, a proximidade com o semelhante, tão abandonado, agora, neste mundo globalizado e desenvolvido. Havia no colégio em que estudei uma verdadeira neurose do sexo. E sexo é tão bom! Tão gostoso!

É difícil – está me parecendo isso! –, alguém preencher, inteiramente, os requisitos do pecado, isto é, falhar com a mais absoluta consciência do erro, fazer a opção na ocasião do ato pelos caminhos do mal, rejeitando o bem! Ora, quem assalta e mata ou quem rouba nas avenidas da cidade traz uma carga enorme de natureza social, um desregramento completo, nascido nos tempos da colonização e perpetuado pelos séculos. E quem persegue a outro, no trabalho ou em casa, criando toda sorte de dificuldades, vem muitas vezes de estruturas familiares deturpadas, completamente! O pai que espanca o filho na ocasião da fome e do pranto, chorando o grito do vazio do estômago, não teve, talvez, como comprar o leite! E por ai vão os episódios da existência, cada qual resultante de injunções vividas ou compartilhadas. Não que deseje aqui justificar tudo, o pecado e as faltas, as falhas, afinal, mas explicar o quanto o ser humano está sujeito às influências do meio e, sobretudo, àquelas do inconsciente. Não há criatura alguma, das que participam do grande banquete da vida, imune que seja, às distorções emocionais.

Assim, vale a pena entender a afirmativa cristã, muito difundida mas pouco aplicada: “Não julgueis, para não serdes julgados!” E isso não tira do estado a prerrogativa da condenação, dos acusados de assassinatos e tampouco dos salteadores! É preciso afastar do convívio social a gente cuja degeneração chegou a esse ponto, a do prejuízo social! Infelizmente! Mas, é necessário compreender as atitudes do homem no conteúdo dos respectivos contextos! A fragilidade humana é de tal forma significativa, que não vale a pena dissertar sobre os defeitos e os tropeços do semelhante! Cada qual cuide de si, de melhorar mais e mais, de amar e ser amado, de fazer da dedicação à família, aos amigos e ao trabalho a bandeira de todos os dias, cumprindo as metas da consciência. De que serve sentar e reunir os parentes ou aglutinar os companheiros para exercitar a crítica alheia? De nada! Todos nós trazemos n’alma essa marca, a da mais completa labilidade! Interessa, pois, contribuir com o outro, colaborar para o crescimento e o desenvolvimento, sem crítica, para a superação dos impasses, simples, tantas vezes, mas tomados pela complexidade do espírito.

Tenho refletido muito sobre essas coisas, sobre a minha fragilidade pessoal e a dos outros, a dos meus familiares e a dos meus colegas. E posso concluir, com base nos meus cabelos brancos e fundamentado na minha experiência de seis longas décadas, que o inferno anda vazio e os céus lotados de muita gente boa, cujos atos, na essência dos fatos, resultaram de atitudes nunca inteiramente pensadas! A prática do bem exige uma preparação do espírito para o inteiramente bom! E nós estamos mal preparados no sentido desse exercício! Na ocasião do juízo – ninguém disso se iluda! -, Deus, na sua grandeza infinita e sublime, há de contabilizar tudo isso e o saldo positivo vai prevalecer! Penso eu!

(*) - Uma crônica como todas as outras - ou quase todas - escrita há alguns anos. Publicada hoje como uma homenagem ao meu cunhado Heber Gama, precocemente falecido. Ninguém pode ou deve morrer com 55 anos de idade. Deus o tenha, então, na santa paz dos anjos.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Um Mar Tão Grande

Melhor que a criança, ninguém pode definir as coisas da natureza! A criança tem o sentimento livre, é livre para amar e liberada para não gostar!

“Um mar tão grande, com ondas tão pequenas!”, foi como Ana Carolina, a caçula aqui de casa, definiu a praia de Nossa Senhora do Ó. Admirou-se, nadando na imensidão atlântica, com a paz das águas que não se mexiam quase, naquele domingo de férias do mês de janeiro.

É assim mesmo a Praia do Ó, entre Pau Amarelo e Conceição. O mar vem a todo instante beijar as areias brancas e ainda limpas, mas o faz levemente, deixando o ósculo a se espraiar com o alvo das espumas. É amante à moda antiga, capaz de acariciar com a mão espalmada e a leveza de uma pluma, a face da amada.

No Ó, logo cedo, dobra o sino da paróquia, convidando a gente simples – os nativos e os veranistas, que forasteiros não são –, para a integralidade do contacto com o Criador e a natureza. A Missa e depois a praia!

Um misto de mar e campo é a praia do Ó! O peixe chegando fresquinho em jangadas carcomidas de tantas viagens mar adentro, o camarão vermelhinho vendido nas portas contrasta com o gado pastando, pachorrento ou o beija-flor rabo-de-tesoura sugando rápido o néctar das papoulas e o mel das rosas. Lagostas aos montes, bulindo, quase vivas ainda ou o caju novinho, amarelo ou vermelho forte, fresco, ao gosto do poeta que foi Mauro Mota ou em passas, como gostamos nós, os mortais e incapazes do verso fácil.

Em dias de semana, em tempos de trabalho, aqui e ali, uma alma perdida toma o sol por padroeiro. Raramente uma mulher amorenada da tez e arabizada de face, como disse Gilberto Freyre, deixa o corpo mais livre. Aos sábados e domingos não precisa a caminhada, basta sentar na frouxidão da areia e admirar a passagem de gente toda bonita, de gente que é paisagem misturada à imensidão do mar.

Gente urbana curtindo o sol e gente rural com ares citadinos, vermelha feito um tição, gente que é do mar e é rural, catando a mariscada que na panela vai dá, ao coco ou ao azeite, prato pra toda a família.

(*) Texto escrito quando Ana Carolina, a filha caçula, tinha entre 3 e 5 anos de idade. Hoje tem 25 anos e formou-se em Direito já. A praia mudou e os veranistas se foram. Resta por lá Paulo Roberto, fraterno amigo meu, companheiro de fiar conversa, a quem ofereço a crônica e mando o meu abraço

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Um Menino Peralta

Eu era um menino danado, endiabrado, levado da breca, como se dizia. Muito preso, também, em respeito às regras parentais, severas sempre, com os hábitos e os costumes. Não podia freqüentar o bate-bola da noite e ficava ouvindo da sala de casa a turma jogando diante do portão. Por isso, por esse quase cativeiro, eu fugia, vez ou outra. Aproveitava o portão aberto, sem o cadeado e saia de porta afora, como um enlouquecido, doido pela liberdade dos meninos da vizinhança, vistos pela família com certa reserva. A minha avó paterna, que tinha por mim uma verdadeira adoração, os tratava como “moleques de rua”. E quando eu arranjei a minha primeira namorada – tinha 14 anos de idade apenas – ela não dispensou o trato e disse em pleno almoço: “Geraldo está namorando com uma moleca que pinta os olhos!”. Ela – coitada! – era das primeiras moças no Recife a usar um risco delineando as pálpebras. Que coisa!
O meu pai tinha comigo um cuidado especial e posso imaginar a sua inquietação diante das minhas súbitas e inesperadas escapadelas. Como era um menino levado e brigão, e arranjava encrenca a toda hora com os irmãos, consideraram importante uma consulta ao psiquiatra e assim o fizeram. Levaram-me a um conceituado profissional, que fez uma hipótese diagnóstica absolutamente inusitada: Sífilis Hereditária. Ora, isso seria impossível! Ou estaríamos diante de pais doentes e irresponsáveis, porque dados a incursões adulterinas, coisa que não podia, sequer, pensar de meu pai e estaria fora de qualquer cogitação em minha mãe. O meu pai, como lhe dizia às vezes, brincando, era quase um cardeal romano, tal a fé com que se comportava e tal o rigor com que seguia os mandamentos. Eu é que era estabanado, desses que subia nos muros vizinhos, atirava pedras nas mangas e prendia a passarada em arapucas de caixote.
Mas, o médico pediu lá uns exames, dentre os quais o do líquido cerebro-espinhal, quando, então, fui vítima de uma agulha enorme que me entrou pelas brechas da coluna vertebral. Claro que não era esse o diagnóstico e claro que eu nada tinha de anormal, senão a grande contenção a que me submetiam, com a intenção naturalmente boa e em bom propósito, para que pudesse forjar uma personalidade ou um caráter da mais alta significação e representação na chamada constelação parental. E vai de lá, vem de cá, terminaram me levando à consideração da Dona Dulce Chacon, mulher além de seu próprio tempo, considerada psicóloga, antes dos cursos de graduação. E a ilustre professora, Diretora do Grupo Escolar Frei Caneca, fez as recomendações necessárias por escrito: era preciso soltar o menino e aumentar-lhe a mesada. Feito isso, curei! Não sei se valeu a pena curar!
Antes desse desfecho, porém, o meu pai, católico fervoroso, já comentei, achou que sendo ele um estudioso da vida de D. Frei Maria Vital, Bispo de Olinda, que não simpatizando com a causa maçônica, seguidor que era da Cátedra de Pedro, terminou preso, decidiu-se – o meu pai – por me levar ao túmulo do prelado. Ele era um homem horroroso e eu tinha medo daquela barba enorme. Mas, eu não tinha saída, deveria mesmo comparecer à Basílica da Penha e ajoelhado junto ao lugar em que estava o homem, rezar assim: “Dom Vital! Fazei que eu melhore, porque o meu pai não agüenta mais!”. Embora não entendesse bem o que eu tinha e como poderia melhorar, compreendia que a situação era grave e só um milagre me salvaria. Não houve jeito e como também não havia solução a partir de certas ameaças, muito comuns à época, de internação da Escola de Aprendizes Marinheiro, foi decidido que eu deveria comparecer à Matriz de Nossa Senhora da Conceição, no Ceará – Mirim, terra natal de meu pai.
Fiz a viagem até Natal e de lá, da capital do Rio Grande do Norte, à cidade em que nascera o meu pai, origem da família Pereira, à qual pertenço com justo orgulho. Vi cada um daqueles recantos ou daqueles cantos e subi os degraus da Matriz. Ouvi as orientações paternas e me dirigi às proximidades da imagem, ajoelhei e repeti mais ou menos a oração anterior: “Nossa Senhora! Fazei que eu melhore, porque o meu pai já não agüenta mais.”. Pronto, disse a ele, e ai soube da crença dos cristãos ou dos católicos, propriamente, de que numa igreja nova está facultado ao penitente o pedido de três graças. Mas: “Peça somente uma, meu filho!”. Foi a recomendação paterna, para reforçar a possibilidade de um atendimento celeste à causa pela qual tanto nos batíamos.
Também de nada serviram essas preces e só o tempo me fez mudar, não sem antes testemunhar a grande preocupação que nutria por mim o meu pai. Certa vez, estando eu, quase diria, escondido, ouvi papai dizendo a uma irmã, minha tia, que morava conosco: “Não faço muita fé no mais velho!” E ela, acreditando em mim, respondeu: “De onde não se espera é que se tem! Ele é apenas um menino peralta!” E é verdade, talvez eu tenha sido, de certa forma, um pouco o seguidor dele. Do homem íntegro e do professor, quiçá do escritor, a meu modo, sempre. Do administrador também, pois que fora, por dois mandatos seguidos, Diretor da Faculdade de Filosofia. Mas, não aceitou o lugar de Reitor e assim não pôde chegar às culminâncias acadêmicas, cujas injunções nunca compensam. Dizia que o poder seduz, melhor não experimentar. E não experimentou!

(*) A crônica é inédita e vai integrar um volume que devo publicar com o título: Histórias Pitorescas de um Reitor e o Pitoresco de Outras Histórias. Devo contar o que passei de original e cômico – às vezes trágico – em alguns dos cargos que exerci na Universidade. Mas, também, todas as histórias que tenho. Muitas histórias já! Ao leitor deixo a possibilidade de comentar o texto, como forma de opinar em relação ao livro e seu título ou em relação ao texto. Comente para pereira.gj@gmail.com ou pereira@elogica.com.br ou ainda não comente e não se pronuncie, nada expresse e nada exprima.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Os Caminhos de Lili

Esse traçado urbano que percorro agora, sob os acordes mais que nostálgicos da orquestra de frevo, foram os meus caminhos também em tempos idos e vividos. Velhas igrejas erguidas na frouxidão do mangue, ruas antigas enfeitadas com trilhos. Tudo isso me traz de volta um passado assim revivido, durante o desfile do Nem Sempre Lili Toca Flauta. Um bloco que sai no Recife, mas chega a Tóquio, na palavra escrita em bom português por Harumi Royama, morta de saudades das alamedas estreitas de São José, sem saber ainda das mudanças no roteiro das lembranças. Onde estão as lojas de minha infância? Os lugares dos meus presentes de Natal? Cantos ou recantos das escolhas carnavalescas, do quepe de almirante ou do gorro de marinheiro! O meu pai fazia questão de sair no sábado de Zé Pereira, andar pela cidade e comprar o lança-perfume, a fantasia e os confetes.

A Casa do Atleta e a Casa do Esporte, a Capa Argentina e a 4.400! A Editora Nacional e depois a ponte, a Sloper e a Viana Leal! Não passei na Sertã, onde estava o consultório do meu tio, em cujas mãos zunia a broca que escavacava os meus dentes. E o sanduíche da Confiança? Pão de caixa prensado e o queijo se derretendo! Ou o sorvete do Gemba e o chá da Casa Matos? Tudo isso está gravado na minha memória! Tudo isso eu pude reviver ao som do frevo cantado e da manhosa musicalidade, revendo os meus dias da adolescência, que se foram nas brumas do tempo. Mais ainda com o passeio a Bezerros, onde os mascarados, papangus, fazem a festa o dia inteirinho, com o abraço caloroso e a saudação ruidosa. Não fosse a higiene do banheiro público, muitos teriam ficado na cidade até a noite chegar!

Na volta, uma parada em Gravatá para degustar um feijão verde bem cuidado e um bode guisado, contando com o acolhimento do Sr. Camilo Brito, português bom de prosa, leitor dos fatos antigos, das origens nacionais e das viagens de seus patrícios às terras do Brasil. Dado ao cultivo de belas orquídeas e no antes do tempo caçador sem histórias. Arraigado à melosidade do fado, que canta a tristeza, atiçando as saudades. Na casa ao lado, entretanto, o som deixava escapar vozes diferentes daquelas que Momo reconhece: “Quem eu quero não me quer/Quem me quer mandei embora/...” Chego mais perto e permito ao imaginário fantasiar o momento, considerando que o dono do bangalô era um cinqüentão saudosista que não gosta do tríduo! Prefere ouvir a melodia das saudades.

O melhor de tudo, porém, no Carnaval que se foi, como tantos outros, está no presente que recebi de vizinho meu, Guedes de sobrenome. Uma cópia de gravação antiga da Banda do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal. Ali está a sonoridade dos meus começos! Versos puros de meus princípios, de vivências que experimentei quando era imberbe quase! Ficava horas ouvindo As Pastorinhas ou A Dama das Camélias, o Rasguei a Minha Fantasia ou o Hino do Carnaval Brasileiro. Naqueles distantes antanhos poucos tinham radiola em casa e poucos podiam deliciar-se com essas músicas. Mas, a vizinha do lado, que só me procurava quando precisava remendar o pneu da bicicleta Monark, tinha um equipamento assim e gostava de rodar essas belezas todas. Como ouvir a ninguém incomoda, eu também escutava!

E a quarta-feira chegou, amanheceu com o mundo parado e as cinzas nas Avenidas e nas ruas, menos nas alamedas dos meus sonhos e de meus devaneios, nos quais reina a majestade das recordações, acomodada no trono doirado das lembranças.

(*) Crônica antiga, escrita quando o bloco Nem Sempre Lili Toca Flauta fez um roteiro diferente, ainda mais diverso do último trajeto. Tudo muda, afinal! Crônica redigida depois de um curto convívio com o Sr. Camilo Brito, português de origem, com quem gostava de fiar conversa, ouvindo-lhe as peripécias de homem migrante. A ele ofereço a prosa de agora, para que no infinito das coisas possa lembrar desses efêmeros momentos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Colombinas Enternecidas

As minhas saudades estão guardadas agora em doirados guizos das fantasias dos meus outroras e revivem lembranças dos carnavais que se foram e nunca mais hão de voltar. Ah, recordações dos tempos pretéritos, de amores rompidos assim, sem as antecipações dos rumores e das dores! Onde andarão as enternecidas colombinas de meus anos, que encantavam pierrôs apaixonados e inquietavam arlequins desesperados? E os palhaços, de roupas largas e de muitas cores, de máscaras risonhas, tocando castanhola e acompanhando o frevo de bloco ou o rasgado dos acordes? Nem as serpentinas jogadas bem longe, nas distâncias que embalam os nostálgicos sonhos do imaginário, recuperam aqueles tempos: os salões enfeitados e os pares rodopiando alegria. E nem os confetes, com o espectro todo do arco-íris da vida, flutuando nos ares ao sabor dos ventos, vão trazer de volta os beijos roubados das mascaradas moiçolas, que escondiam a face, mas não podiam negar as formas do corpo! Se o lança-perfume evaporou-se para sempre, deixou pelo menos gravado na memória das épocas o aroma gostoso que aproximava os corações ardentes, inflamando as paixões! E o mais do que tradicional corso, como uma serpente enorme, espalhando-se e se espraiando, carro após carro, caminhões enfeitados com faixas de pano, batucadas improvisadas e músicos de ocasião? O bate-bate de maracujá e a animação tomando conta do mundo pequeno dos meus dias de menino desapareceram também nos ares da vida! Era o frevo no pé e o pé no frevo, contanto que houvesse alegria na fanfarra das horas!

Revejo, então, o sacrário das minhas saudades, depositário das minhas lembranças, para acender os meus devaneios pueris, guardados ali, naquele canto das recordações dos pretéritos do existir terreno. A fantasia azul de marinheiro, da cor do céu, de gola branca e larga estava lá, engomada e passada, pronta para ser usada. Foi a minha mãe quem a manteve assim, embalando as divagações da criança do antes, oníricos, sobretudo diurnos, preservando os mais particulares desejos, de ver e de rever esse tempo encantado. Não adianta querer vestir a roupinha de palhaço, de fazenda estampada, com um coração muito grande preso no pano, representando os amores de uma infância feliz e bem vivida. E de que serve querer ouvir, na velha radiola de casa, os acordes dos frevos de bloco, a musicalidade de Nelson e de Capiba, tão presentes naqueles dias? O disco de 78 rotações não tem mais em que agulhinha rodar, porque cedeu lugar aos avanços e perdeu o espaço na corrida do tempo: “Ah!/Saudade!/Saudade tão grande!/Saudade que tenho...” . Na madrugada do domingo, agora, não posso mais ver chegar a musa de minha rua, vestida com a fantasia de capitão, da mais pura e branca seda, aos beijos e aos abraços com o pretendente emergente, num amor de causar dor e dó a todos que a tinham na mais do que franca maneira de promover no imaginário as enlevações do espírito. Se casou ninguém sabe, ninguém viu! Sabe-se, apenas, que ficou na lembrança de muita gente!

Faço hoje mesmo o itinerário sentimental do corso e viajo pelas ruas do Recife, sem me ater aos indicativos de trânsito, às proibições do tráfego, postas aqui e ali sinalizando a modernidade, contanto que possa rever os meus passos e os meus passados, as minhas andanças, afinal, em tempos idos, acolhidos já na enorme distância das saudades! Posso ouvir o batuque cadenciado dos tamborins daqueles outroras, que no caminhão, ao fundo, animava a meninada toda! E na velha Casa de Detenção descortino os antigos sinais dos encarcerados, da gente presa ali, pendurada às grades, dando adeus à liberdade dos outros. Passo pela a rua da Concórdia inteira, o meu paço da folia à época, do começo à praça, cumprimentando em pensamento os passantes todos, as colombinas e os arlequins, os pierrôs e os palhaços, os mascarados e os papangus que assombravam os meninos nas ruidosas manhãs de sábados encantados. Sento-me, porém, num banco qualquer e vou rebuscar encontros e desencontros dos meus derradeiros corsos! Foi aqui, relembro, falando quase, que vi a musa dos meus dias, que identifiquei o peculiar sorriso, alvo e puro, de incisivos levemente oblíquos, dando vida à beleza nascente, que a vi crescer e desenvolver na corrida do tempo, do implacável relógio marcando as horas e rodando os dias. Quando os nossos olhares se cruzavam nos ares da fanfarra, o riso adornava-lhe a face bem desenhada das esculturas forjadas pelas mãos do Criador! Tomei a mim a missão de amá-la! Melindrosa dos meus dias!

Posso, então, cantar, com o menestrel do amor: “Os melhores dias de minha vida/Eu passei contigo/Minha querida...”. Assim, atualizo as minhas saudades, lembrando os carnavais do ontem e amando a musa do hoje!

(*) Uma crônica de muitos passados deixados nos caminhos do tempo. Escrita sob a inspiração das mudanças que os anos trazem e assim nos contemplam. Viva! Um texto que ofereço a Anita Aline, ilustre professora da UFPE, comprometida com o social e afetiva, terna.