quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Isso é coisa do PT!




Passei um bom tempo dando consultoria a uma indústria farmacêutica. Era uma atividade boa, porque leve, de poucos encargos. Dava aulas aos propagandistas e acompanhava as pesquisas cientificas; pesquisas realizadas como forma de fechar o processo obrigatório de liberação das drogas ou com o objetivo de “semear”, como diziam, o produto novo, recém lançado e exigente em receituário. Sempre tive muito cuidado com a ética e nada desenvolvia que me levasse a suspeitar – apenas suspeitar – que feria os princípios morais da profissão. Isso, vez ou outra, produzia um choque com a minha chefia em São Paulo, mas nada que estremecesse o relacionamento, pois não fazia e não fazia mesmo, custasse o que custasse. Não admitia argumentos quando a minha consciência acusava a necessidade de cuidado e de respeito.

De quando em vez precisava viajar. Numa das oportunidades, tendo acordado muito cedo, acompanhei o final de uma partida de tênis na quadra do hotel, recebendo na torcida um dos jogadores. Era um senhor de meia idade, alto e galego, estrangeiro, parecia. Queixava-se da dureza da quadra e eu, sem arrodeio, sugeri: “O senhor deveria dotar os seus sapatos de amortecedores!”. Não havia ainda esse apetrecho nos calçados esportivos. Uma das pessoas ao meu lado, admirou-se tanto que indagou: “Sabe que esse é o Presidente da companhia?”. Eu não sabia e tranqüilizei o meu interlocutor com a informação de que ele também me ignorava e ignorava a ele próprio, seu advogado de ocasião. Voltando desse encontro, já no avião, sentei em poltrona tendo a meu lado um passageiro neófito. A aeronave começou a jogar, balançando pra lá e pra cá, e ele: “É normal! Foi o que me disseram!” E eu: “Não é não!”. O susto foi tão grande que ele molhou a camisa toda de suor. Ainda hoje tenho remorsos.
Em outra ocasião levei muito pouco dinheiro e de São Paulo deveria viajar a Juiz de Fora (MG), para visitar uma tia gravemente doente. Quando se leva pouco, pode se preparar: vai ser pior! E foi mesmo! Já no aeroporto, inventei a besteira de alugar um táxi comum, achando que faria grande coisa. O motorista, de saída, indagou de mim, forasteiro na cidade grande: “Por cima ou por baixo?”. Eu não imaginava a resposta e me sai com essa: “Faça como achar melhor!”. Mas, o pior é que me atrapalhei com a leitura do taxímetro e desprezei a vírgula, porque já desbotada, perguntando no caminho se a corrida era tão cara? A moeda era outra, mas foi mais ou menos assim: o marcador acusava R$ 5,20 e eu li R$ 52,00, dez vezes mais. O motorista aproveitou-se do matuto aqui e no desembarque ainda tripudiou: “Vou dispensar a aplicação da tabela. Afinal, o senhor é nordestino como eu!”. E paguei o que eu mesmo calculei. No hotel me gozaram até não poder mais!
Mas, a chefia em São Paulo foi mudada mais de uma vez no período, terminou nas mãos de um colega muito reservado, tímido, mofino até, demorado com as decisões e sobretudo submisso aos diretores leigos da companhia. Quando fui eleito e nomeado Diretor do Centro de Ciências da Saúde, da Universidade Federal de Pernambuco, o penitente tomou conhecimento e eu comecei a ter mais dificuldades em comparecer aos eventos. Um belo dia me ligou e disse que diante do meu novo cargo, melhor seria me afastar do lugar. Concordei com ele, mas com a ressalva de que tinha 10 anos de casa e gostaria de uma indenização. Acertamos os ponteiros e eu fiquei aguardando um telefonema dele sobre o montante. Mas, com aquele bota-fora, sentiu-se no direito de suspender o meu pagamento e o fez naquela tarde. Não prestou!
O Diretor pediu que não dissesse a ninguém de minha saída, alegando que sendo eu muito conhecido na classe, poderia não agradar a alguns e prejudicar as relações na propaganda. Decidi, então, por uma solução amigável: um trote. Ora, eu sabia que o mofino ligava uma secretaria eletrônica no almoço e telefonei, justamente, na hora. Fui atendido pela cortesia da máquina e soltei o verbo: “Você me pediu para não dizer nada a ninguém! Eu não disse, mas recebi uma ligação da revista Olha (nome fictício), indagando os motivos de minha saída! Não respondi nada! Pedi que me ligassem às 16 horas!”. Era tempo de eleição para Presidente e quando o tímido chegou quase enlouquece. Ligou, imediatamente, e depois das perguntas de praxe, largou a afirmativa definitiva: “Isso é coisa do PT! Já estava suspeitando que iam aproveitar o fato! Fique calado! Não diga nada!”: Claro que eu condicionei tudo ao depósito de meus proventos. E às 17 horas conferi o saldo: o numerário estava certo.

(*) - Texto que aflorou agora, numa manhã de quarta-feira, véspera da publicação no Blog. Desejando comentar, não hesite, escreva para pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Ricardo Soares

Quando o pai morreu, informou a toda gente e promoveu as exéquias segundo os costumes. Mas, no sétimo dia ligou para comunicar a Missa fúnebre e à minha indagação de onde seria a cerimônia litúrgica, não hesitou: “Em qualquer igreja tá valendo!.”. Não quisera pagar o óbolo do ofício. Por coincidência, na mesma semana, uma voz gutural não identificada ameaçara a família com uma sentença certeira: “Olha a cheia!”. Eu fui acusado e não houve nada que o convencesse em contrário. Afinal, quem tinha fama de passar trote na enfermaria era eu e quem tem fama deita na cama, diz o ditado popular. Viajei à Europa pela vez primeira com a incumbência de identificar nos museus da Inglaterra a espada que pertencera a seu pai, um nobre ou quase nobre na Índia, injustiçado pelo governo de sua Majestade. Nem liguei para essa missão enlouquecida.

Era uma grande figura, sem dúvida alguma. Verdadeiro ator com a sua trupe no picadeiro da vida, mais do que propriamente um ser humano qualquer, como nós outros, nessa sociedade de consumo. Até porque sequer consumia mais que a conta – a conta bem contada –, pois que reconhecia a sua peculiar condição de mão-de-vaca, de sovina, de grande avarento no teatro da existência. Viajamos juntos vezes e vezes, em idas e vindas aos congressos: ele médico e eu médico, também. Gostava de me apresentar como seu assistente e aquilo me irritava, me fazia responder de forma azeda, tantas vezes: “Me apresente direito, homem de Deus!”. A correção vinha rápido: “Vai negar que é meu assistente?”. E ficava o dito pelo não dito! O ruim, mesmo, era que nos restaurantes costumava pedir abatimento e eu morria de vergonha até a morte. Pedir abatimento depois da leitura do cardápio? É demais! Ou não é?

Somítico, como era, costumava passar à distância de qualquer movimento de arrecadação de fundos, fosse o que fosse. Numa ocasião até, sendo o dia de meu aniversário, chegou junto e disse: “Que história é essa de fazer cota para um bolo? Vá comemorar o seu aniversário em casa! Isso aqui é um ambiente hospitalar!”. E eu, na perplexidade na hora, fiquei engasgado: “Bolo? Para mim?”. E o pior é que era mesmo e ele se negara a contribuir, como sempre. Foi ai, diante desse comportamento inusitado, que resolvi mandar-lhe uma carta anônima, contendo Cr$ 1,00 para ser doado como esmola, trazendo-lhe a boa nova de que enriqueceria, se cumprisse o pedido da missiva. Na hora da saída, como vinha comigo, comunicou-me o desejo de fazer uma caridade, ao que contestei: “Você? Não acredito!”. E ele explicou que precisava cumprir esse desiderato por mais algumas semanas. Foi lá fora e fez o gesto.
Era um conquistador inveterado ou gostaria muito de o ser, tal a goga ou as bravatas com que contava suas aventuras. Numa dessas até, em São Paulo, em dia de domingo, com muito frio no espinhaço, chamou uma penitente ao quarto de hotel. Fez lá o que bem desejava e ao final não esqueceu de pechinchar: “Minha senhora! Eu sou um professor universitário, pobre e mal pago, por isso gostaria de um abatimento!” Ao que respondeu: “Meu senhor! Sou estudante e pago a minha faculdade com esse dinheiro!”. Calou-se e cumpriu com o contrato que verbalmente fizera. Mas, a melhor dele foi outra. É que escreveu para uma revista masculina e deu o nome trocado: Ricardo Soares. Expôs os seus predicados – os que achava ter –, deixando o telefone do hospital para um contato qualquer. Me explicou dez vezes essa peraltice e falou de seu cognome, lembrando que se alguém ligasse procurando o misterioso senhor, o chamasse imediatamente.
Eu nunca atendia telefone, mas naquele dia o cão atentou com vara curta e eu peguei o fone, respondendo à chamada: “Alô!” E a interlocutora de ocasião: “O Sr. Ricardo Soares, por favor!”. Eu não podia me fazer de rogado e tripudiei o quanto pude com a ligação: “O Sr. Ricardo Soares? Ricardo Soares?, Ricardo Soares?...Vou ver se tem esse por aqui?”. E ele, na minha frente, aos sussurros: “Sou eu Pereira! Sou eu!”. Atendeu e acertou os detalhes com essa transitória suplicante. Era uma mulher casada de Salvador, convidava-lhe para um contacto a três: ele, a criatura e o marido. Valha-me Deus, disse, vai ver que o marido dela assiste a tudo e depois entra em cena, querendo passar o amante também. Quase fica doido com a minha assertiva e pensando melhor, desistiu.
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quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Bicho do Bom – Seu Mané

Eu tive a sorte – eu e a minha geração de médicos – de contar com um corpo docente do mais alto nível, gente conhecida aqui e alhures, professores que exerciam o mister da transferência do conhecimento e eram pesquisadores, na grande maioria das vezes. Mestres que ensinavam pelo exemplo, também, pelo comportamento irrepreensível que tinham no dia-a-dia da vida; éticos e por isso mesmo humanistas na verdadeira acepção do termo ou no largo entendimento da palavra. Mesmo assim, foram protagonistas de cenas pitorescas que marcaram, de forma indelével, a turma de 1968, na emergência agora dos 40 anos já de formada. O momento das provas era mais que propício aos gestos e os fatos que ficaram na memória desses médicos hoje sexagenários todos.
Impossível esquecer a prova oral de determinado colega na Cadeira de Fisiologia, na qual pontificava o professor Nelson Chaves, estudioso da nutrição em Pernambuco. Pois bem, senta-se o ainda calouro diante desse ícone da ciência e quase nada responde. Nelson Chaves, então, desejoso de mais uma chance para o jovem acadêmico, indaga: “Meu filho! Cite um hormônio importante?” E ele, o estudante que não abriu o livro: “Professor! Os hormônios são tão importantes, mas tão importantes que se eu destacar um desses, ele perde a importância!”. E o mestre insistindo diz: “Você não sabe nada de Fisiologia. Vou lhe fazer uma pergunta de Anatomia. Como se chama aquela artéria que nasce no coração, sobe, faz uma volta desce pelo tórax e entra pelo abdômen e se divide em duas?”. Era muito claro que se tratava da aorta, mas o aluno tropeça e responde: “Coronárias!”. Nota zero!
O mesmo aluno foi examinado pelo titular de Parasitologia. Como não sabia de nada, o catedrático indagou: “Diga-me lá o nome de um verme que cresce, cresce e chega a atingir 10 metros?”. O reincidente acadêmico, então, levanta a cabeça e olha para os ares da sala, pensa ou faz que pensa, reflete ou faz que reflete e responde: “Ascaris lumbricoides!”. Nem um leigo deixaria de acertar, pois um helminto assim, tão grande, não poderia ser outro senão a solitária. O estudante foi tropeçando assim e terminou sendo meu aluno no último ano do curso, no internato. Meu aluno, também, foi outro, que tendo chegado para o estágio no mês de fevereiro, depois de receber as atribuições, só voltou em junho, para obter o conceito e se formar. Disse-lhe que lhe daria a nota 4 e ele deveria retornar no outro semestre para a recuperação devida. Era tempo de regime militar, sendo esse figurante filho de um amigo do general - Valha-me Deus! - pelo que a minha nota, ao que sei, foi transformada em 9. Não fala comigo desde então! Graças a Deus!
Quando eu fui para o exame oral de biofísica, o meu colega Mozart, Jia por apelido, sentou-se no outro lado da mesa para responder às questões do principal assistente do Prof. Arnaldo Carneiro Leão, o seu filho Moacir, duro nas argüições e durão nas notas. O pobre do Jia quase não disse nada, porque precisou explicar como se faz uma bomba atômica. Quem sabia disso? E para que serviria isso? E eu com o catedrático da disciplina enfrentava um inusitado diálogo. É que sentando para ser, devidamente, examinado, sou surpreendido com a pergunta:
- O senhor vai ser padre ou maestro?
Ora, não tinha a ver com o curso que fazia, eu pretendia mesmo ser médico, mas não podia desapontar o mestre e respondi de pronto:
- Professor! Penso em abraçar as duas profissões! O senhor que acha?
- Sendo assim, diga-me lá como responder o Introibo ad altare Dei do começo da Missa.
Eu era macaco velho, pois fora coroinha nos tempos do Colégio Nóbrega e sabia o ritual de cor e salteado, ao que contestei:
- Ad Deum qui lætificat juventutem meam
E ele:
- Quais são as notas da clave de sol?
Eu tinha aprendido piano na adolescência, de onde, aliás, fui convidado a sair, por absoluta incompetência musical. Não fiquei em dificuldades:
- Mi, sol, si, ré, fá nas linhas e fá, lá,do, mi nos espaços!
- Bicho do bom! (um ditado da época)
- Seu Mané! (a resposta ao ditado)
- Nota dez!

Eu fui aprovado! E o grande Jia ficou para a 2ª época. Decorou a bomba atômica, aprendeu tudo sobre a bomba de hidrogênio e passou bala em toda gente na fantasia de seus sonhos, vingando-se do mundo e dos professores do curso médico. Fez muito bem!



(*) - Uma crônica que homenageia os meus colegas de turma; a turma inteira com a qual me formei em 1968. Um relato nascido de meus afetos e de minhas lembranças. Quem desejar comentar, escreva para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Quem não desejar, não escreva ou não comente.