quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Operado do Ouvido

O telefone, inventado por Grahn Bell e motivo dos encantos de Pedro II, parece ter sido o passo inicial para o extraordinário desenvolvimento das comunicações no mundo, de cujo progresso na contemporaneidade temos sido testemunhas e partícipes. Vez ou outra, porém, esse avanço da modernidade nos pega uma peça. Comigo, em particular, confesso, vou atraindo enganos e desenganos com interlocutores de ocasião. Gente que liga errado e gente que liga certo! Há quem pense que o prenome é exclusivo, que não tem homônimo em todo o globo terrestre ou há quem ouça diferente as respostas e as explicações do outro. Uns ligam para solicitar ajuda e se sentem no direito de ensaiar um preâmbulo interminável e alguns se imaginam num auditório qualquer e promovem um monólogo, com longas palestras ou com uma conferência atualizada.
Certa ocasião, uma sexta-feira de Carnaval, antes de me alistar no bloco lírico "Nem Sempre Lili Toca Flauta", tilintou em minha casa a célebre invenção de Grahan Bell. Atendi, de pronto, e ouvi a interlocutora de ocasião: "Sebastião (nome fictício) está?". Respondi, com toda segurança do mundo: "Completamente embriagado no bar da esquina!". A moça era a namorada de Tião e não se conformava com a explicação, razão para argumentar: "Mas, ele me prometeu ir ao Galo da Madrugada amahã!. Entrei na conversa de rijo e não dispensei nada do que ouvia ou do que poderia dizer: "É!, minha filha! Ele pode até comparecer ao maior bloco do mundo, mas será de maca, no interior de uma ambulância!". E a ligação foi se exaurindo, até chegar ao final com a justificativa feminina: "Eu mato ele!". Penso que não matou, porque não vi nos jornais notícia alguma sobre o desespero de uma foliã levada à aflição extrema pela carraspana do namorado.
Pior com um vendedor de cartão de crédito, desses que estabelece o colóquio trazendo informações que os desavisados acreditam, piamente: "O senhor foi indicado como cliente especial!" Vejam só! Dá até raiva uma coisa dessa! E fez a apologia de seu produto, apontando ganhos e benesses. Interrompi o discurso e mostrei que já operava com o Visa e interesse não tinha em trocar ou acrescentar, inclusive porque nos sequestros de agora, relâmpagos, com ou sem trovoadas, é melhor dispor de apenas um desses apetrechos modernos. O diligente propagandista, no entanto, entendeu: "O senhor foi operado do ouvido?" Que operado do ouvido, criatura, retruquei de logo. E para me livrar do incômodo, adiantei que não me interessava continuar a conversa com quem não compreende o que digo ou o que falo! Desculpou-se e desligou. Nunca mais ligou! Graças a Deus do céu!
Contribuía com certa instituição que tem creches e escolas, mas a telefonista nunca se conformou com a importância de que podia dispor todos os meses e me fazia ouvir uma ladainha a cada trinta dias: "Muito obrigada pelo pagamento! Como vai passando o senhor? E a família? Todos bem e com saúde? Este mês o senhor pode aumentar a sua participação?" Ora pau! Adotei o seguinte, informo-lhe, de pronto, que está dispensada a introdução e que não vou mudar o meu contributo. Até que não agüentei mais e pedi pelo amor de Deus que me deixasse em paz, sem aquele rosário verborrágico. Não liga mais!
Muito pior foi a adolescente, que verbalizou as pornografias todas do vernáculo e que ao final indagou: "Quem fala?" É o bispo, respondi, porque só dizendo isso! E ela, dirigindo-se à outra circunstante: "É o bispo! Vou desligar!" E do jeito que ligou, desligou! Disse logo que era o bispo porque só assim ela parava com tanto palavrão e tanta baboseira suja.
(*) - Uma crônica pitoresca em torno de ligações erradas em casa e noutros lugares. Comente aqui no Blog propriamente ou escreva para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Cosme e Damião: Dois Santos e uma Febre

Andei estudando a questão dos ex-votos para uma palestra, sobretudo aqueles pintados, e por isso mesmo com um toque artístico, mais que os outros, considerados anatômicos, forjados na madeira ou na cera. Achei interessantíssimos, especialmente o que está em Igarassu, no convento de Santo Antônio, no antigo alojamento dos noviços, em cujo convento estive há pouco tempo, com esse propósito mesmo, o de apreciar o ex-voto criado como paga de uma promessa feita pelo povo da cidade aos santos Cosme e Damião, para livrar o lugar da febre amarela, nos idos de 1685. E a localidade conseguiu êxito neste mister, isto é, ninguém adoeceu, em que pese a doença ter quase dizimado os habitantes do Recife, de Olinda, de Goiana e de Itamaracá. Se os santos intercederam ou não é impossível dizer, mas a gente de Igarassu conseguiu essa proeza.
Vale salientar que nesses quadros votivos se tem alguns elementos distintos. O espaço celeste, no qual aparece representado o santo que foi invocado para a intercessão junto ao Pai, o único a oferecer a benção; espaço que segundo os estudiosos vem diminuindo mais e mais ao longo do tempo, talvez, como justificam, pela cordialidade desejada e pretendida entre os penitentes e o ambiente da divindade. Depois vem a cena propriamente dita, como seja o leito em que esteve acamado o paciente e o doente em si, coberto, quase sempre, por um lençol vermelho, a cor que afasta o diabo, na visão do povo. Ou o palco no qual se deu o acidente, seja no trabalho ou numa viagem e até num passeio. Por fim, a legenda, a qual dá conta do que sucedeu e da graça alcançada, invocando-se a figura celeste integrante da pintura.
Tais quadros servem não apenas ao estudo histórico das épocas, mas também à investigação antropológica. As vestimentas – as vestes femininas e as indumentárias masculinas – variam conforme o tempo, bem como os adereços. As perucas são comuns no século XVII, por exemplo. Mas, era frequente os contratantes pedirem que fossem caracterizados mais solenemente, de forma a parecerem integrantes, sem muitas dúvidas, da aristocracia local. Móveis e outros equipamentos da residência também aparecem nos cenários e servem ao entendimento dessa distribuição doméstica. É fácil encontrar vasos (pinicos) em baixo das camas, como era comum acontecer. Há casos nos quais nota-se uma sequência explicativa entre o “antes” e o “depois”. Em acidentes, digamos, isso pode ser mais facilmente demonstrado. Noutras situações aparecem animais, os que adoeceram ou ainda certos bens conseguidos depois de um pedido.
As pinturas, a óleo sobre madeira ou utilizando a têmpera, uma tinta artesanal constante de um pigmento ao qual se acrescenta um adstringente, a cola ou a clara de ovo, o que facilita a fixação da matéria pictórica, eram feitas, no geral, por pintores ingênuos, isto é, amadores, pintores de dia de domingo, sem formação acadêmica, os conseguem o realismo daqueles aos quais admira e preza. Os ingênuos são diferentes dos primitivos, pois que esses interpretam o mundo como mágico e povoado de medos e terrores. Não têm a imagem humana como representação central da cena e sendo essas figuras mais geométricas e nunca em terceira dimensão. Muito raramente um pintor erudito se encarregava de um quadro. No Brasil, a grande exceção foi Auguste-Marie Taunay, autor de um ex-voto encomendado pela princesa Izabel pela recuperação de Dom Pedro depois de uma queda de cavalo.
O ex-voto de Igarassu, pintado, como se disse, em virtude de uma promessa feita aos santos Cosme e Damião, padroeiros da cidade, para que a febre amarela não chegasse ao lugar, é muito interessante. Mostra Olinda, Recife, Goiana e Itamaracá tomados pela doença, com a bruxa da morte ceifando a vida de toda gente. Enquanto isso, Igarassu aparece com os protetores celestes afugentando a mulher de preto que tenta ingressar no ambiente urbano, mas sem sucesso. Em que pese ter sido pintada, certamente, por um artista ingênuo, a Marim dos Caetés (Olinda) reproduzida na obra é de uma certa fidelidade, haja vista mostrar o Varadouro e a ponte de acesso a cidade. Ao longe se tem a casa de Duarte Coelho, hoje destruída. Uma pintura originalmente posta na igreja dos santos padroeiros e depois acomodada, por questão de segurança no Convento de Santo Antônio.

(*) Crônica em torno do que vi em Igarassu e do que estudei para uma palestra no Instituto Pernambucano de História da Medicina. Texto que ofereço com simplicidade ao ilustre historiador Carlos Miranda, jovem professor com quem tenho aprendido muito. Comente: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com Ou ainda o faça no espaço mesmo do Blog.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Bezerra Coutinho - Um Sábio Pernambucano do Século XX

Há um tempo em que o homem vai reunindo experiências alheias e juntando essas vivências nos escaninhos de sua própria intimidade, para melhor forjar os traços de caráter e as características de sua personalidade. Depois, na autonomia do ser e do fazer, passa a contribuir, também, para o bom andamento das coisas; as suas próprias coisas e aquelas da sociedade como um todo. Nesse particular, é capaz de contabilizar as influências que lhe impulsionaram no exercício do existir, marcando-o com os sinais do bom combate. Sem dúvida alguma, os pais têm aqui um papel decisivo. Ninguém ignora o tanto que deve ao pai e à mãe na mescla de ensinamentos que a vida pôde reunir.
De meu pai recebi o exemplo de dedicação à família, do trabalho como forma de sustento e manutenção, como também recolhi as lições da ética e da moral, as minhas diretrizes no hoje da vida, diante dos impasses que se apresentam num cotidiano, às vezes, atribulado. Ainda hoje me surpreendo usando o palavreado dele. Sou um pouco ele na fala do cotidiano e nos momentos públicos em que devo me pronunciar. E de minha mãe assisti à abnegação diante da prole, frente às dificuldades de saúde ou quando os primeiros impasses nas relações de amizade ou de amor abalavam a integridade de meu ser. E pela vida a fora fui captando, aqui e ali, as formas diferentes de viver e de conviver dos meus semelhantes, fazendo questão de absorver o que havia de bom e rechaçar os defeitos que também estão presentes no existir de cada um.
Os meus mestres tiveram uma influência decisiva em mim. Fui colhendo peculiaridades em cada um deles, desde a simples forma de se comunicarem à profundidade com que transmitiam o saber. Talvez desejasse reunir o verdadeiro caleidoscópio de predicados ou de qualidades num único ser humano. É claro que não consegui, mas devo confessar, há alguma coisa de cada um na minha integralidade. Por isso, dedico esse texto hoje ao Prof. Aluizio Bezerra Coutinho, um dos homens de inteligência mais acurada e de cultura mais apurada em Pernambuco, durante o correr do século XX. Poucos me impressionaram tanto quanto ele! Um médico que se apresentava como biólogo; um biólogo que discutia também aspectos culturais da criatura. E um humanista com ares de cientista.
Com ele aprendi os princípios que regem a natureza, entendi que a vida originou-se a partir de cristais aperiódicos, dentre os quais, certamente, os fragmentos de mica e as partículas de argila, talvez para confirmar o que está escrito e inscrito na Bíblia, o Livro dos livros. E com ele entendi que o homem é o resultado do aperfeiçoamento das espécies ao longo dos milhares de anos, quando a evolução fez com que a seleção natural conservasse alguns espécimes e descartasse outros por motivos diversos. E não há razão para se afastar disso tudo a interferência de Deus, haja vista o fato de que a criação do Universo não teria sido possível sem a participação de uma força superior, capaz de ultrapassar as leis naturais.
De igual forma, não há porque desprezar a interveniência divina no processo de evolução e de seleção natural das espécies, especialmente a interveniência do Criador no estabelecimento da condição humana à criatura nascida à semelhança do Pai. É que em determinado momento foi preciso dotar o ser que vinha emergindo nesse processo de aprimoramento das espécies de uma alma e assim foi feito, como forma de se ter a inteligência à disposição da humanidade, o livre arbítrio também, além de outras características do homem. Deus quando faz as coisas não precisa de mágicas, mas pode se utilizar, apenas, do que é corriqueiro e do que é compreendido pela natureza humana.
Bezerra Coutinho, homem de ciência e antecipador de um pensamento biológico próprio, era um humanista na mais larga acepção da palavra. Humanista porque capaz de escrever uma tese sobre a casa tropical, mal terminara o seu curso médico ou porque escrevera, com 22 anos somente, um ensaio sobre o Romantismo. E pela devoção que emprestava às outras manifestações do espírito. Foi um homem voltado para as coisas da natureza, cultivando em sua casa orquídeas e outras plantas assemelhadas. Cultor do bom vinho e ouvinte da boa música. Tudo isso junto, a matemática de seus cálculos, a ecologia de suas antecipações, a patologia de suas aulas e a sistemática investigação dos fenômenos científicos, com a crítica devida a determinados conceitos, fizeram do homem um ser múltiplo, plural, nessa singularidade do comum.

(*) - Uma crônica sobre as influências que recebi na vida. As de meu pai e aquelas de meus mestres, dentre os quais Aluizio Bezerra Coutinho. Mas outros também, como Ruy João Marques, Amaury Coutinho e Salomão Kelner. O último muito de meus convívios e de minhas convivências. A esses o texto de agora. Comente no espaço mesmo do Blog ou para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Lua em Sagitário

Tive a satisfação de ler o último livro de Paulo Caldas – A Lua em Sagitário –, uma novela que ultrapassa o simplesmente ficcional e vai ocupar lugar de bom destaque entre os textos sociológicos e antropológicos – mais antropológicos que sociológicos –, como sucede, aliás, com outros grandes autores. Um volume com uma narrativa tripartite, porque aborda a história de três diferentes famílias. Lições de vida no ambiente rural, que se alternam com abordagens de convívios e de convivências no inteiramente urbano. Urbano próprio dos meados do século XX e o urbano moderno, das moradias verticais e dos apartamentos com restrições de espaço e de circulação limitada. Pessoas engaioladas, verdadeiramente presas, umas sobre as outras. Rituais de encontros e desencontros. Insípidos sempre.
A questão da cana-de-açúcar salta aos olhos no velho engenho. O proprietário, rico e bem posto na vida, morador da cidade grande, que mantém uma relação de compadrio com alguns de seus empregados, mas como sempre à distância, pois rico não freqüenta casa de pobre, sequer para visitar o velório do compadre ou acompanhar o féretro. E o destino dos trabalhadores do eito parece se repetir a cada geração. Pais e filhos cortadores de cana e bebedores do produto final, a aguardente. Gente que se aposenta e transforma a existência num cotidiano ébrio. Um ou outro se socorre da migração para a capital e o faz na esperança, tantas vezes vã, de uma vida melhor. Sai e deixa o sítio, o plantio de subsistência e o criatório e vai se juntar ao patrão na condição de empregado urbano. Ressurge ai a figura do antigo “cachorro de quintal”.
É que o empregado da moradia – o “cachorro de quintal” – integrava à época uma sociedade marginal junto com as empregadas, responsabilizando-se pela jardinagem, pela limpeza dos terreiros e da garagem ou de todo e qualquer serviço pesado que a família demandasse. Vinha, pelo geral, como no livro de Paulo Caldas, das cidades interioranas, como as mulheres que assumiam a cozinha e a copa, a lavagem de roupas e o ofício de babás. Moradias com 5 a 6 serviçais assim, que residiam nos fundos mesmo, diferenciando-se, apenas, os quartos masculinos dos femininos. Casas com dois quintais até, como aquela de meu avô materno, na rua Montevidéu, 77, antes que a Agamenon Magalhães fosse construída sobre o mangue, de cuja lama brotavam caranguejos de andada, para a felicidade da meninada na casa dos sessenta agora.
Residências grandes que foram sendo substituídas por prédios enormes, preservando-se, muitas vezes, a construção original como salão de festas da burguesia. E o Recife está repleto desses ambientes. É um Recife novo, diferente, mais vertical que horizontal, de gente enjaulada, presa pela civilização. Um Recife inchado, empapado com a migração dos excluídos, banidos do canavial pela monotonia de um vegetal só, pela indiferença do latifúndio.

(*) Eis o econômico mesclado com o inteiramente sociológico ou com o antropológico refinado. Texto que ofereço ao escritor espanhol Hermenegildo e sua esposa recifense Malca. Ele tão interessado nas peculiaridades do Recife e de Pernambuco, como forma de terminar o romance que vem escrevendo com foco na cidade dos rios e das pontes. Comente no espaço do Blog mesmo ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com