quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A Proximidade do Inexorável


Meu querido e mui amado pai.

Nesta hora de tanto padecer, de tanto sofrer, num machucar constante da carne e do espírito, inquieta-me a impotência do meu ser e do meu saber diante da tua dor. A ciência que aprendi às custas do teu suor, derramado, gota a gota, sobre o teclado da máquina de escrever, falece, frente à proximidade do inexorável – desgraçada proximidade. Sou agora uma desesperada criatura e o meu desespero não pode mais chegar aos teus ouvidos, como dantes. Não suportarias este problema, esta questão que guardo e que vivo! 

Tudo mudou, meu pai, em tão pouco tempo! Ontem, menino de calças curtas, ouvia as tuas recomendações e às vezes nem as seguia, peralta que fui. Depois, na metamorfose da existência, os conselhos rejeitados na inquietude que marca a adolescência serviram de guia na maturidade, para a escolha dos caminhos, das trilhas da vida. Adulto, mesmo, quantas vezes fui à tua procura, quantas vezes ouvi a tua bem pesada opinião! Hoje, pai, precisas de mim perto, bem perto, como se dispusesse eu, pobre mortal, da porção mágica, quase, que restaura a injúria orgânica, tão larga, já. Ah, se eu pudesse! Ah, se Deus me ouvisse!
 
O meu sentimento é de profunda depressão, é de incapacidade para enfrentar a perda que vai chegando, pouco a pouco, vergando-te o corpo mais e mais, roubando-te a voz e incapacitando-te. Somente a inteligência, atributo superior da criatura, está preservada, numa lucidez impressionante dos fatos e das coisas, da percepção, inclusive, desta proximidade com o imponderável. Ouvir de tua boca que preferes o desenlace à vida assim, com as dores da doença, cortou-me o coração, deu-me a mais absoluta certeza de que estamos perto, bem próximos da eterna distância. Saber o quanto admiras, agora, os outros, andando ágeis, de um quarto para outro, subindo e descendo escadas, enquanto tu, que já foste assim, quase não podes mais caminhar, leva-me às lágrimas. É isso mesmo, pai, são os desígnios do Criador, é a vida em sua seqüência cruel, amputando com lentidão as funções, dificultando a normalidade das coisas. Gostaria de poder, ainda, ouvir palavras tuas sobre as grandes questões que enfrento daqui para frente no meu ofício, que foi sempre o teu, o de transmitir o conhecimento, o de preparar a juventude, de formar as pessoas. De conversar sobre o passado, sobre os nossos passeios, de mãos dadas, ao velho Parque 13 de Maio, por alamedas da infância; sobre o nosso debruçar diante do Capibaribe, vendo passar a água célere e um barquinho pequenino. Ou sobre as nossas reuniões de fim de ano, interrompidas agora, em 1991, numa antevisão tua do futuro imediato, de um porvir diferente. 

Guardo, ainda, o teu derradeiro telefonema, para falar de mim, para dizer: “Meu filho! Você é um vitorioso!” As minhas vitórias, pai, obtidas a sangue, suor e lágrimas, reconhecem na gênese primeira o teu papel de condutor, de educador, dando-me a rota das coisas e mostrando a turbulência dos mares da vida. Pena não possas mais assistir ao esforço que faz teu filho agora, primogênito da prole, no galgar de mais um degrau, em cuja base te vê, verdadeiramente. Durmo contigo esta noite e te ofereço, ainda, o que puder, com os olhos marejados, já, pois que pressinto o fim. Um dia, contigo, nas brumas do eterno, outras estórias hão de rolar e vamos rir às bandeiras despregadas, novamente!
 

PS: Texto escrito na véspera do falecimento de meu pai – Nilo Pereira. Crônica que levo à Fliporto, como exemplo do que escreve o cronista, quando está sob emoção forte. Levei, realmente, mas não houve tempo de ler. Desejando o leitor comentar, o faça no espaço mesmo do Blog ou escreva para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com