terça-feira, 30 de junho de 2009

Padre ou Maestro?

Quando entrei na Faculdade de Medicina a sistemática mudou, em tudo e por tudo; mudou a forma de frequentar a escola, a anotação das presenças e das faltas, a maneira como eram apresentadas as aulas e a forma das provas. É natural ter sentido a diferença, não apenas eu, calouro como era, mas os meus colegas todos, vindos da escola secundária e habituados – eles e eu – a um regime bem diferente, desde a chamada aos exames de fim de ano. E nesse novo jeito de ser fui me integrando aos poucos, à medida que os dias se passavam, seguindo o milenar suceder das manhãs nem sempre ensolaradas e das noites sempre escuras. Aulas na faculdade, todos os dias, nos dois expedientes. À noite, invariavelmente, o estudo para que as matérias ficassem atualizadas. E nessa pisada algumas das provas foram pitorescas, senão quixotescas.
Na disciplina de fisiologia esperava sentado a minha vez de ser examinado pelo grande mestre que foi Nelson Chaves, enquanto um colega de turma respondia às questões. O professor, com aquele jeitão manso de ser, indagou: “Meu filho! Qual a importância dos hormônios?”. E o colega, sem mais delongas: “Mestre! Se eu for dizer da importância dos hormônios, por ser apenas um estudante de medicina e por isso mesmo um humilde aprendiz, estarei desfazendo de substâncias tão importantes para o corpo humano!”. Nelson Chaves, sem perder a fleuma, foi taxativo: “Você não sabe de nada! Vou lhe fazer uma pergunta de anatomia! Como se chama uma artéria que nasce no coração, desce pelo tórax, entra no abdômen e se divide em duas?”. Ora, amigo leitor, é clara a resposta – a aorta –, mas o interlocutor de ocasião do mestre Chaves ignorava o maior de todos os vasos, respondendo na lata: “Coronárias!”. E o professor: “Zero, meu filho! Volte na segunda época!”.
Quando fiz os exames de Patologia, o meu ilustre professor, de quem me tornei amigo depois, Bezerra Coutinho; mestre de várias gerações, um homem de uma inteligência fulgurante e de uma cultura invejável, mandou que tirasse o ponto para discorrer sobre um tema. Tirei: “Sistema Rh.” Quase me levanto da cadeira e grito, como fazem hoje as chamadas torcidas organizadas, pois tinha lido na véspera e estava com o assunto na ponta da língua. Estudara a noite inteira e tinha ido para faculdade sem dormir. Expus o que sabia e aguardei a resposta. O mestre, do alto de seu saber, disse: “O senhor acaba de inventar um novo Sistema Rh!”. Professor, disse, quase em súplica, estudei a noite toda e li o assunto por inteiro. Deixe-me dizer outra vez? Deixou e eu repeti a minha lengalenga. Não se conteve e me indagou em que livro tinha estudado. Ora, lera em livro volumoso, muito usado pela estudantada, o de Otto Bier, como lhe expliquei. Não me livrei, porém, do chega: “É um compendiozinho!” Não era! Mas...
Prova complicada foi aquela da biofísica. Estudamos mais uma noite – eu e Jia –, de tantas que passamos em claro e fomos à luta. O professor catedrático era brincalhão e levava as coisas todas na graça e o seu filho, o assistente mais importante, fechadão, às vezes ríspido ou pelo menos áspero. Sentei-me com o pai e o Jia com o trombudo do filho. Só faltava o Espírito Santo. O velho, virando-se para mim, indagou: “O senhor vai ser padre ou maestro?”. Ora, não tinha nada a ver, eu estudava medicina e portanto não tinha vocação alguma para o sacerdócio e muito menos para músico. Mas, como era prudente responder, o fiz da forma mais suave e agradável possível: “Penso em ser padre e maestro.”. Sendo assim, de pronto, recitou o começo da Missa: “Introibo ad altare Dei.”. Eu, que tinha sido acólito no Colégio Nóbrega, não hesitei e completei: “Ad deum qui laetificat juventutem meam”. E em seguida perguntou as notas musicais da pauta. Eu tinha estudado piano e disso também sabia: “Mi,Sol,Si,Ré,Fá e Fá,Lá,Dó,Mi”. O homem quase voa de satisfação e gozo, razão para que a nota fosse 10, com distinção e louvor. Enquanto isso o Jia se enrolava com a bomba atômica e saia condenado à segunda época. Valha-me Deus!
Por fim, a prova de ortopedia e traumatologia. O professor era, também, uma ilustre figura no Recife, homem respeitado como cirurgião e bom ortopedista, convocado para os casos mais graves. Sentei, tirei o ponto e aguardei a primeira pergunta: “Meu caro! Você vem de carro e passa na Encruzilhada (um bairro da cidade), onde há uma pessoa estirada na rua, vítima de um acidente de automóvel. Que providência o senhor toma?”. “Ora, professor, não posso fazer diferente, ligo e lhe chamo. Numa cidade com o médico de seu porte, ninguém poderia tomar iniciativa diferente!”. Ele gostou, sorriu pelo canto da boca, e deu nota 10.
E os meus colegas nunca hesitaram com as respostas também. Fizeram parecido, mas fizeram!
Ofereço esta crônica, nascida de minhas lembranças e de minhas vivências, ao Prof. Aluisio Bezerra Coutinho, o sábio de meu curso, como homenagem pelo centenário que se comemora. Desejando comentar, não se deixe levar pela indecisão, escreva no espaço mesmo do Blog ou para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Lutando Boxe

Eu tinha 13 anos de idade, pouco mais ou pouco menos, quando arranjei a primeira namorada. Fiquei deslumbrado, confesso, com a coragem que tive falando com ela sobre esse meu desejo e feliz com os passeios que fazia, de mãos dadas, na rua em que morávamos e onde nos encontrávamos às escondidas do pai dela. Era sempre assim, ninguém namorava com a autorização paterna, senão quando já tinha intenções matrimoniais. Eu não, não tinha! Não podia ter! Sequer tinha idade! Depois fiquei achando que ela só me quis porque eu sabia consertar bicicleta e remendar o pneu de seu veículo de duas rodas. Nunca vi furar tantas câmaras de ar como lá. Quase todo mês registrava um episódio assim e precisava intervir com o meu material de urgência. Sempre tive uma bolsa à disposição para esses impasses; bolsa que conduzia desde o mais simples martelo à sofisticada chave de boca. Só não tinha uma chave inglesa, o meu sonho dourado!
Namorei com ela e rompi por sete vezes seguidas – a conta do mentiroso –, repetindo sempre o mesmo ritual para a renovação do namoro. Às vezes, bastava a bicicleta furar o pneu para que ela própria me procurasse e me solicitasse o reparo. Eu atendia a tempo e a hora, sem mais delongas. Noutras ocasiões, rompido e triste, ouvia, de súbito tocar em sua radiola de casa a música que era um sinal: “Volta/Vem rever nossos jardins/Vem amor nunca mais...”. E eu, imediatamente, subia na janela do banheiro e tinha acesso ao telhado, de onde a via e de onde, também, mandava mensagens cifradas de um retorno esperado. Assim cumpri o meu desiderato de iniciação por 7 diferentes oportunidades. De quando em vez aparecia um intrometido que lhe prometia felicidade e amor, enquanto eu ia ficando para depois.
Em certa ocasião, lembro-me bem, chegou no bairro em que morava um sulista. Era uma figura engraçada, porque tinha um sotaque carregado e não conseguia pronunciar a palavra “você”, dizendo apenas: “cê”. Por isso, tomou o apelido de “Cê” mesmo. Não é que o forasteiro engraçou-se com a pequena e propôs namoro a ela? Antes disso, encontrando-me de bicicleta, numa volta rápida pelo quarteirão, sem dispensar o cumprimento, indagou: “Cê namora com fulana?”. Respondi que sim e ouvi, perplexo, a próxima indagação: “Cê já comprou alguma coisa para casar?”. Não, disse de logo, sou quase menino ainda e não posso pensar em casar, estudo e não trabalho, razão para não contar com dinheiro para tanto, expliquei e tratei de dá o fora. Procurei fulana e de pronto a proibi de andar de bicicleta naquelas imediações. Foi o mesmo que rogar pelo amor de Deus que ela fosse para o foco. Ela foi e ficou horas fiando conversa com “Cê”. Firmaram ali algum tipo de pacto, que resultou em nova ruptura e namoro firme com o intruso recém-chegado. Ora pau, quase digo!
Mas, nesse intervalo, entre acabar o namoro e começar com o novo parceiro, entrou em cena o meu dileto amigo, velho companheiro dos anos das calças curtas, denominado aqui de Bíblico, em virtude de seu nome sagrado. O nosso Bíblico inventou que eu deveria – coisa de menino! – convidar o “Cê” para uma luta de boxe. E eu, na ingenuidade da idade, o fiz. O meu colega escalou-se logo para ser o juiz e esclareceu aos cochichos: “Não se pode no boxe pular no ringue! Você dá um pulo e eu vou empurrá-lo sobre “Cê” Assim você ganha a luta!”. Foi dito e feito, mas de nada serviu essa vitória arranjada, a moça mudou de mãos. E eu fiquei a ver navios. Não houve mais o que reatar, mas há o que contar de uma noite de São João, da fogueira queimando e dos fogos espocando nos ares, enquanto fazíamos as adivinhações da praxe junina. A mãe dela, mulher braba e briguenta, capaz de dar baile, como se dizia, espalhou pedacinhos de papel numa bacia com água, escrevendo antes as letras todas do alfabeto.

Foi engraçado, eu tirei a letra “Z”, a inicial de seu apelido e ela a letra “G”, a inicial de meu nome. A mãe ficou felicíssima com a possibilidade de casamento entre nós. Resultado dessa trama: casei com uma moça de nome começando por “Z” e ela com um rapaz de nome George. Já pensou o leitor na coincidência!
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quinta-feira, 18 de junho de 2009

Bunda em Japonês

Desde os anos sessenta, no século passado ainda, que lido com os japoneses. Foi ai que a Universidade fez o primeiro convênio com a agência de fomento do país nipônico. Recebeu-se muito em equipamentos e em material de consumo, as pesquisas ganharam corpo e até um veículo (jeep) foi enviado ao Recife, para colaborar nas investigações com as chamadas – mal chamadas – Doenças Tropicais. Brasileiros iam a Tóquio e japoneses vinham à Capital pernambucana. Foi um tempo de intercâmbio saudável e até os profissionais do ensino daqui passaram a conviver melhor. Pena que alguns já se encantaram no infinito das coisas. Foi nessa ocasião que um colega da instituição, numa das festas na representação diplomática, criou a organização não governamental – a primeira do Brasil –, intitulada MO. Logo assumiu a presidência. Significava Maridos Oprimidos. Éramos todos, segundo ele!
Naqueles anos iniciais eu não fui ao Japão, era muito novo, estava começando na vida e havia outros na minha frente. Tempos depois, já na terceira oportunidade de novo convênio, ai sim, viajei e confesso que voltei encantado com a Terra do Sol Nascente. Fui homenageado, em 30 dias de permanência, com 28 almoços ou jantares. Todos os dias, quase, eu saia do hotel com essa destinação gastronômica. Resultado, experimentei toda ou quase toda a variedade culinária daquele canto do mundo. Mas, como sempre, acontece comigo, há algo de inusitado, pitoresco nos meus passeios ou em minhas obrigações de todos os dias. Eu acho diferente se não acontecer! Já contei por aqui o episódio no hotel, das trocas das cortinas e vou lembrar outro, em jantar importante que fui com o Secretário de Saúde. A autoridade, inclusive, demorou a chegar, mas os pratos foram sendo servidos e os dele postos em fila diante de seu lugar, até sua chegada.
Ele chegou e o diálogo teve início. Eu falava em português, a minha tradutora passava para o japonês e vice-versa. Conversa vai e conversa vem, explicava a ele as condições de saúde no Brasil, a assistência ao doente e as medidas preventivas. Mas, era interessante, ele só tinha uma resposta, nada mais: “Ah! Sondesuka!”. Só dizia isso! Eu fui ficando admirado com aquilo e me virei para a minha mulher, dizendo em bom português: “Não aguento mais! Não diz outra coisa!”. Estava sentado, literalmente, no chão, com as pernas cruzadas e os meus joelhos doíam como nunca. Resolvi, assim, indagar da senhora intérprete o que ele respondia com aquela repetição constante e que ela não cuidava em traduzir. E ela, sem mais delongas, explicou: “Ah! É! É!”. É que o japonês, pelo geral, é muito cuidadoso e não comenta as coisas de seu interlocutor antes de uma reflexão qualquer. Muito menos quando se trata de uma situação noutro país.
De outra feita, após um jantar em cidade do interior, cujo nome não lembro mais, porque sempre são muito difíceis, depois de uma deliciosa sopa de peixe, quando eles bebem o caldo fazendo aquele ruído que para o brasileiro seria falta de educação e que a cultura local aceita e recomenda, um deles indagou: “No Brasil, fora mulher, de que vocês gostam?”. E eu, no fleuma habitual de minha natureza, tinha a resposta na ponta da língua: “Só gostamos mesmo de mulher! É mulher em primeiro lugar, no segundo e no terceiro! Nada ganha para mulher!”. Adianto que estava sozinho e tínhamos tomado a saborosa cerveja do País: a Saporo. Um outro me perguntou, certa vez, por que andávamos de mãos dadas, os casais brasileiros, como se fôssemos crianças de creche. Eu dei lá uma explicação que já não lembro mais!
Mas de todos esses impasses, nada foi melhor que o meu encontro numa colônia japonesa com alguns imigrantes do Sol Nascente. Eu fazia um serviço de exame periódico nesse pessoal e viajava o Ceará, o Rio Grande do Norte e Pernambuco. Era na sexta década do século passado, naquele primeiro convênio. Não sei mais as razões, mas numa roda de fiar conversa, saiu uma história contada por mim sobre as pontes do Recife, em cujas pontes alguns habitantes podiam pescar siris. Ora, os olhos dos homens faiscaram de alegria e as mulheres se retiraram da mesa. Um deles indagou, na entonação comum aos que não dominam a língua: “Passa shiri boiando?”. Sim, respondi. “É shiri grande?”. E apresentava o tamanho abrindo as duas mãos em tamanho comparável aos pratos de uma balança. E eu, sem entender bem o que dizia e o que entendiam eles, respondia: “Não! Siris pequenos. Mostrava, então, o tamanho com a meus dedos – indicador e polegar – fechados, quase em concha! O diabo, compreenda o leitor, é que shiri em japonês é bunda. A senhora da Universidade que me ajudou, agora, a escrever a palavra, pedindo a colaboração de aplicada tradutora nissei, me avisou: “Doutor! A palavra é pejorativa!”.

E por ai vai!
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quinta-feira, 11 de junho de 2009

Parecia uma Assombração

Estou pensando – pensando apenas – em publicar um livro reunindo as minhas histórias, sobretudo aquelas com um conteúdo pitoresco. Evidentemente, nada tem a ver com as minhas memórias, as quais, de uma forma ou de outra, tenho divulgado no Jornal do Commercio, do Recife e aqui, neste espaço virtual. Confesso que tenho histórias – nunca estórias – em quantidade, sendo preciso somente começar a anotar certas lembranças, para depois desenvolver cada um dos temas em particular. Ninguém tem a capacidade de redigir tudo a uma só vez! Isso é um projeto lento e vai sendo construído aos poucos. Depende do aflorar dessas lembranças, já antigas agora. É claro que há outros projetos mais sérios antes desse pretenso volume, mas tenho razões para pensar em cumprir o compromisso de publicar mais um livro este ano, como pensava fazer. Não custa, então, ensaiar dois ou três fatos desses que tenho. Aqui e agora!
Era madrugada e eu estava no pavilhão de isolamento atendendo a um doente que passara mal. De repente, no fim do corredor, um grito forte de outro doente: “Me acuda, pelo amor de Deus!” Sai correndo e fui ver o desesperado paciente. Indaguei o que se passava e ele me fez a seguinte pergunta:“Qual foi o resultado do jogo do Brasil?”. Mas, meu amigo, disse de logo, como é que o senhor grita assim e ao final faz uma pergunta dessa? E a resposta: “Doutor! Aqui só se atende mesmo a quem está morrendo!”. Terminei rindo e informando que a seleção tinha perdido. O homem tinha leptospirose – vivia-se uma epidemia –, recebendo todos os dias a visita da esposa. Era interessante, porque ela não indagava se ele estava melhor. Dizia sempre: “Morreu?” E eu respondia: “Não morreu!”. E apareceu uma segunda criatura, com a mesma formulação: “Morreu?” Não morreu!”. Até o dia em que pude dizer a ambas: “Não morreu! E não morrerá mais!”. Tiveram uma decepção, queriam a previdência.
Pior foi o soldado de policia, que barrado na porta da enfermaria de doenças infecciosas – doenças contagiosas – ameaçou derrubar tudo a bala e entrar para visitar um parente ou uma mulher de seus afetos, já nem me lembro ao certo. Foram me chamar, porque eu era pau pra toda obra, me obrigando a um diálogo inóspito com o autoritário policial: “Meu senhor! Isso aqui para ser construído foi um horror, para ser instalado precisou de uma enchente e a consequente epidemia de leptospirose. Não vale a pena derrubar tudo!” E ele insistia alegando a sua autoridade e a impossibilidade de ser barrado assim, como estava sendo, em qualquer lugar deste mundo de Deus. Sendo dessa forma, comentei, terei que desrespeitar as ordens do comandante da corporação. E ele, mudando de idéia: “O senhor tem toda razão! Vamos respeitar as ordens do coronel!” E aquilo lá nada tinha a ver com militar e muito menos com a corporação. Usei, apenas, o dito popular de que para um doido só outro na porta. Apliquei, então, o mesmo o artifício pela segunda vez!
Depois, fiz um concurso para trabalhar em instituição fiscalizadora do exercício da medicina. Ia de hospital em hospital, de clínica em clínica, de serviço em serviço, a todos os lugares onde a ciência de Hipócrates fosse exercitada. Era um rolo! Uma vez, então, houve uma denúncia a propósito de certa instituição psiquiátrica, na qual os dias feriados passavam descobertos, sem médico plantonista. Num certo sábado, com a família toda no carro para ir à praia, decido comparecer ao estabelecimento em causa e lá chegando dirijo-me ao vigilante: “O médico de plantão, por favor!” E a resposta veio rápida e bem estudada: “Médico de plantão não tem, mas tem um enfermeiro ai que é mais competente que muito médico!” E eu: “Chame ele, por favor!” E veio um homem moreno escuro, de compleição física avantajada, dobrado como se dizia, um guarda-roupa quase. Claro que não era um enfermeiro, mas um auxiliar. E só vendo a perplexidade da criatura, quando soube quem eu era. Foi processado o hospital e do resultado, francamente, não lembro mais.
Por fim, um caso de histeria em pleno ambulatório dos comerciários. A mulher estava toda dura, rígida como um cadáver, espumando e babando, os olhos virados. Parecia uma assombração! O colega que fazia o atendimento cuidava em medir a pressão arterial e auscultava o coração com todo zelo ou desvelo. Era novo, sem experiência em serviços de urgência e creio eu nunca tinha visto uma encrenca assim. Ia e voltava sem diagnóstico. Resolvi, então, intervir e chegando junto ao ouvido da paciente disse-lhe, cochichando: “É melhor a senhora ir embora. Estão se preparando e vão lhe operar sem anestesia. A mulher ainda hoje corre pela rua desnorteada, sem paradeiro. E o medico, absorto, quando chegou não entendeu o que se passou. A paciente curara sem mais nem menos. Um milagre, pensou!

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segunda-feira, 8 de junho de 2009

Nome do Pai Ampliado

Morava em Olinda, à entrada da cidade, na altura do Umuarama ou no Varadouro, é o que ainda hoje se diz, depois de tantos anos passados na contabilidade do tempo. Convivia com os meninos e as meninas do lugar, mas era uma figura que se diferenciava pelo tique nervoso que tinha. É sempre assim! Era assim com aquele empregado do restaurante de Currais Novos, na estrada de acesso a Mossoró. Almoçamos ali, no Tungstênio Hotel, lembrei agora, quando encontrei a foto na Internet. Internet serve pra tudo! Personagem respeitado no ambiente, mas incapaz de servir uma mesa, tal o seu tique nervoso. Depois que a casa fez a aquisição de uma geladeira nova, com um trinco especial, porque grande e bem afeiçoado, articulado no sentido vertical, abria o refrigerador depois de dois ou três movimentos para agarrar o metal da tranqueta, até que conseguia e acessava o equipamento do gelo e do frio.
Passava horas a fio treinando essa abertura mágica e com isso pegou o tique nervoso, de tal forma que movimentava o braço em qualquer que fosse a circunstância. Eu era menino quando passei por lá – ia a um congresso em Mossoró com meu pai –, confesso que fiquei perplexo com o homem e sequer me dirigi a ele. Mas observei, mais de uma vez, a sua ânsia em abrir o refrigerador, parecendo que treinava antes de executar o feito. Tinha um apelido que não lembro mais, conhecido em toda cidade, fazendo-o reconhecido em qualquer lugar. Também, com aqueles trejeitos todos! O de Olinda não, era mais contido e menos famoso. Participava das rodas de conversa dos alunos do São Bento ou das bisbilhotices da mulherada do Santa Gertrudes, essas de seu especial agrado.
Parecido com essas figuras sociais locais – cada qual em seu lugar –, só aquele primo de certa namorada minha, a primeira de todas, nos meus 12 ou 13 anos de idade. Era assim, dizia-se, porque apanhava muito do pai. Levava pancada na cabeça e no resto do corpo todinho. É que o penitente, mais novo até que eu, tinha um cacoete incomum. Movimentava a cabeça com muita rapidez para a direita, fazendo em seguida o movimento de volta, ao tempo em que pronunciava as palavras mágicas: “Puta merda/Puta merda/Puta merda.”. Isso era horrível à época, pois o pudor marcava as relações e a moça ficava pra lá de encabulada com o primo, tal a vergonha que tinha. O de Olinda não, era figura mansa, sem jeitos e sem trejeitos agressivos. Capaz de participar de uma roda de fiar conversa por muito tempo. Nunca envergonhou ninguém!
Zé Ventinha era um personagem ímpar no bairro em que passei a infância, criatura que tivera uma lesão nasal, talvez devido à Leshmaniose, e que cuidava em obstruir aquela abertura patológica e nauseabunda com um algodão. Não tinha, propriamente, um hábito ou uma mania em particular, era um tique em seu todo. Um cacoete só! A meninada da localidade não descuidava de sua passagem e corria, às escondidas sempre, como quem vai espreitando a criatura, para lhe puxar o paletó na pontinha do tecido, com os dedos da mão em pinça, o indicador e o polegar. Era um horror! Zé Ventinha derramava-se em palavrões que só ele mesmo entendia e corria atrás do malfeitor. Levei muita carreira e o meu amigo – o bíblico –, tantas vezes falado por cá, também. No Umuarama ou no Varadouro o rapaz, pacato e sereno como era, não assustava ninguém, antes o contrário, era amigo dos amigos, sem pertencer a essa nova facção criminosa.
Esse olindense dos começos da cidade era interessante, pois fiando qualquer que fosse a conversa, interrompia, vez ou outra, o diálogo, levantava-se e fazia gestos que não se enquadram, até hoje, em ritual algum das liturgias conhecidas ou dos rituais de que se sabe. Era quase um nome do pai, como se adota na religião católica. A mão direita batia na canela da perna esquerda e depois no ombro desse lado. Em seguida, a mão esquerda batia na canela da perna direita e em seguida no ombro desse lado. Fosse eu conhecedor de ritos ou de liturgias, diria que era um nome do pai ampliado.
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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Padre Feriado


Fui estudante no Colégio Nóbrega, aluno dos jesuítas da antiga observância, como gostava de dizer o meu pai. Ali aprendi a ajudar Missa e integrava um grupo de coroinhas: os Acólitos da Igreja de Fátima. Essa missão diferenciada me agradava, porque tinha um certo status, diria, diante das moças do bairro, a quem ajudava a oferecer a comunhão, em tempos de catolicismo predominando na classe média. Nunca deixei de aproveitar o flerte em momentos assim. As pessoas se ajoelhavam e o sacerdote passava, de uma por uma, distribuindo a hóstia sagrada, enquanto eu colaborava com a patena, espécie de bandejinha que cuidava em não permitir pudesse qualquer partícula cair no chão ou sair dos olhos atentos do celebrante.
Como eu era levado da breca, sempre tinha uma presepada a mais para incluir em meu repertório de fanfarrices. Uma dessas, a de um certo roubo de hóstias ainda não consagradas, o que abrandava o meu pecado. Ora, sendo o gradil da sacristia largo em seus espaços, cuidei em atravessar o obstáculo e entrar naquele recinto. Encontrei uma quantidade enorme daquele pão ázimo e tendo recolhido todo, não hesitei em levar para casa, comendo aos bocados em pouco tempo. O meu pai, sempre muito severo com essas coisas do sagrado, viu a farra trigal e indagou como tinha conseguido. “É! Foi o Irmão Pires quem me deu!”. Não fora, evidentemente, mas ficou o dito pelo não dito e depois a falta venial foi perdoada na confissão da semana.
Mas, sobre confissão, não posso deixar de lembrar as minhas declarações auriculares dos pecados e a admiração dos meus confessores. Geralmente, como era aconselhável à época, adotava um dos sacerdotes como diretor espiritual e a cada sexta-feira me ajoelhava e fazia o relatório dos sete dias pra trás. O jesuíta assim adotado – coitado! – admirava-se, com muita frequência, pela repetição das falhas ou das faltas, não sendo raro verbalizar: “Outra vez?”. E eu, de forma muito encabulada, sempre, reconhecia os meus erros. Todos os meus pecados eram contra a carne. Afinal, a carne é fraca, dissera o Cristo! Por isso, por essa luta entre a culpa e a absolvição, fui fazer um certo retiro espiritual numa casa para tanto reservada, no bairro de Beberibe, no Recife. Ali, rezei e fiz penitência, meditei e pensei ter me modificado.
Qual nada! Voltei para casa e tive uma recaída braba desse mal que eu considerava um bem: o pecado. Andava com um terço no dedo, passando conta por conta, cumprindo um desiderato que não merecia, imagino. Até que decidi: ia ser padre. Só dessa forma poderia pagar tantos erros em minha vida. Eu não tinha forças, sequer, para olhar as pernas de uma moça. Tinha uma professora da universidade que ia em minha casa, cuja transgressão em meu imaginário era o simples fato de cruzar as pernas, frequentemente, num exercício de sensualidade para mim inusitado. Mas, o meu pai, em exemplar momento de lucidez, como lhe era comum, desaconselhou a minha entrada no seminário. É! Teria sido um desastre passar anos estudando e depois me ordenar. Não aguentaria, reconheço. Eu pecava a cada hora, todos os dias, com propósito ou sem propósito de me recuperar. Tempo chegou em que desisti e me declarei alinhado com o cão. Valha-me Deus do céu!
Fiz horrores no Colégio Nóbrega e só não fui expulso porque o meu pai – sempre o meu pai – tinha sido professor no estabelecimento e isso me protegia os dias e as horas. Uma vez, respondi a presença em canto gregoriano, pelo que fui posto pra fora da sala de aulas. De outra feita, assim marginalizado das aulas, posto pra fora, voltei com uma camisa emprestada. O padre indagou: “O senhor não foi posto pra fora?”. E eu, com a cara de pau: “Não, padre, aquele é o meu irmão gêmeo!”. E assim ficou ou assim fiquei. Nos dias da geografia sendo exposta como matéria obrigatória, por preguiça, apenas, não levava o atlas e o professor: “O senhor ai! O atlas?”. Eu, então, abria no choro e dizia, aos prantos, que o meu pai não tinha dinheiro para comprar. O mestre, compungido, quase me acompanhando nas lágrimas, deixava que acompanhasse a exposição na companhia de um colega.
Impossível não lembrar aquele padre velho, francês de nascimento, brabo feito uma capota choca, a quem neguei o vinho na segunda vez em que pediu: “Não tem! O senhor bebeu tudo!”. Não tinha bebido, eu é que por sem-vergonhice não tinha levado a quantidade necessária. Resultado, nunca mais entrei com aquele celebrante na Missa. Foi exagero apelidá-lo de Padre Feriado, somente porque quando morresse, como sucedeu, aliás, as aulas seriam suspensas para as exéquias.
(*) - Eis uma crônica dos anos de menino, quando aluno dos jesuítas da antiga observância. Padres de batina preta e breviário à mão. E os apelidos comendo no centro: Padre Macaco e Protão, Padre Sansão e Irmão Felinto/Da Canela Fina/... Texto que ofereço ao meu colega Luiz Lira e ao escritor Rivaldo Paiva. Comente no espaço do Blog ou o faça para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com