domingo, 6 de julho de 2014

O Trem Bala

Quando eu era menino e usava calças curtas, gostava de fazer escavações no quintal de casa! Tomava a colher de jardineiro com que minha mãe cultivava as rosas do jardim e cavava o que podia lá no fundo do terreiro. Mal começava a operação, já minava água por todos os lados, assegurando-se, então, mais e mais, as origens do Recife, plantado sobre os manguezais dos outroras. Mas, na minha cabeça e no meu imaginário de criança era possível chegar ao outro lado da terra, abordando o Japão, assim, de forma tão artesanal. Fantasiava que de repente, não mais que de repente, um homem de olhos apertados ou uma mulher bonita, de feições orientais, surgiria dos fundos daquele buraco, emergindo nos meus domínios, naquela ambiência das minhas divagações lúdicas. Não imaginava, também, que um dia tomaria o aeroplano das invenções nacionais e dos sonhos de Santos Dumont e rumaria à Terra do Sol Nascente. Pois é, amigo leitor, viajei, cumprindo o inverso da trajetória infantil e vou surgir nas distâncias nipônicas, dos céus, ao contrário de minhas fantasias, de telúricas emergências. No aeroporto, a minha mãe, no habitual das coisas e das despedidas, disse: “Deus o leve!”. Depois, lembrou-se que por lá, nas friorentas paragens do Oriente, quem manda é Buda e fez o reparo: “Buda o traga de volta!”. Saiu-se bem e foi política, sobretudo, agradando às duas correntes, das crenças e da fé!
Tenho sobre os meus ombros, maduros, agora, a missão de observar o sistema de saúde, as razões pelas quais o Estado pode sustentar a chamada atenção universalizada, oferecendo a toda gente, independentemente da classe social, a merecida assistência às injúrias do corpo e da alma, que acolhe o psiquismo humano. Como devo, de igual modo, visitar as instituições acadêmicas, conhecendo o evoluir das pesquisas no campo da doença, principalmente aquelas de natureza infecciosa e de cunho parasitário, objeto de meus estudos, também, há tantos anos. Vou rever, da mesma maneira, companheiros que estiveram no Recife em tempos pretéritos, iniciando o intercâmbio na década mágica dos anos sessenta, quando por aqui aportaram os desbravadores dessa ligação tão forte, já, no âmbito dos males dos trópicos e da implementação do sistema de atenção à saúde tupiniquim, embrionário, ainda. De trem bala, então, viajarei, pra lá e pra cá, cumprindo a destinação da missão! Não significa, porém, que perca as minhas características de observador simples do cotidiano das coisas e dos costumes. Das pessoas, sobretudo, da criatura humana plantada de forma diferente, sempre, em cada recanto do globo, mas, com as mesmas qualidades e com as mesmas fragilidades da condição de gente, apenas, sujeita às intempéries do mundo de fora e do mundo de dentro, dos interiores, pois!
Quando a segunda-feira nasceu - o dia 3 de março -, parida das entranhas do feriado de fim de semana, na madrugada, ainda, em São Paulo, tomei o Jumbo da JAL e pelos ares do mundo faço como o poeta: Vou danado pra Catende/Vou danado pra Catende/Com vontade de chegar... Cuido em levar, a tiracolo, os agasalhos todos de que disponho e os que dispõem, igualmente, os amigos diletos, os meus companheiros de batente, da faina diária, os quais têm mais horas de vôo e se habituaram, já, à lã e à linha dos casacos de frio. Pela Internet, todavia, comuniquei-me com brasileiro largado pra aquelas bandas e soube de seus tremores quando o dia amanhece em Tóquio e confesso os meus temores. Ora, sou nascido e criado no calor dos trópicos, acostumado ao suor pingando no rosto, de dia e de noite e costumo bater o queixo diante das temperaturas baixas ou abaixadas. Não ligo o condicionador de ar, senão no mínimo da potência, puxando o lençol, de logo, pra cima de mim, isolando-me do vento e da aragem artificial. Imagine ao natural!
Depois, à volta, hei de escrever as impressões de viagem! Fazer, como toda gente que se preza e ensaia a arte do registro, um diário, assinalando as benesses e os tropeços.

Texto escrito em 1996, logo que cheguei a Tóquio e me instalei no hotel do governo, para tanto destinado, isto é voltado para a hospedagem de convidados da gestão.