domingo, 16 de dezembro de 2012

Histórias do Ceará-Mirim

                Na rua em que morava quando menino tinha uma casa muito grande de esquina; casa avarandada, de vários cômodos, como se notava olhando de fora. O alpendre circulando o prédio, raramente acolhia um penitente que fosse e no jardim um enorme jambeiro fazia a festa da meninada. O meu pai chamava a casa de Guaporé e eu passei a chamá-la assim também, sem entender bem as razões daquele cognome. Era comum dizer: “Vou andando até o Guaporé!”. Depois é que entendi os motivos do apelido predial, a construção tinha muito a ver com a casa da infância paterna, no vale do Ceará-Mirim. E eu me criei ouvindo histórias de lá, da terra em que nascera Nilo Pereira.

Meu pai guardava os hábitos que trouxera de sua família original, como aquele de esperar a passagem do ano com os filhos, a esposa, a mãe e a tia na sala de casa. E quando se aproximava a hora da virada, mandava que fossem acesas todas as luzes, objetivando receber o novo ano com a maior claridade possível. Isso acordava o meu pintassilgo, todos os anos. Não era supersticioso, dizia, mas tinha lá os seus cuidados. Não deixava um sapato emborcado por nada nesse mundo e se resguardava das pessoas capazes de botar olhado. Havia uma senhora assim, figura que vez ou outra aparecia e ele não queria conversa, recolhia-se imediatamente a seu quarto de estudos, “a jaula”, como chamava, onde se mantinha preso. Voltava-se para a leitura; leitura, aliás, com a qual se ocupava horas e horas do dia. Lia, às vezes, dois ou três livros de uma vez.

Na última noite de vida quase não conseguiu dormir. Eu estava a seu lado, deitado em colchonete junto à sua cama. E ele a certa altura indagou: “O que faço agora?”. Não tive dúvidas: leia. Ele abriu um livro que estava em sua cabeceira, depois outro e não fez mais do que passar as páginas, não parecia ter disposição para fazer o que mais lhe agradava, a leitura. Foi assim, com uma brincadeira que fiz, estirou o braço e com a mão fez um gesto: basta. Como quem diz, não há mais espaço para graça! Pela manhã, logo cedo, depois do amanhecer, me despedi, precisava dormir. Ele me disse: “Preciso falar com você! Passe aqui mais tarde!”. Combinamos isso, mas quando cheguei em casa tive a notícia: “Dr. Nilo morreu!”. Nunca soube o que queria e de nada serve imaginar, fantasiar. Fiz mil conjecturas a propósito do que seria. Mas, é impossível descobrir o que tinha em mente.

Gostava de ouvir música clássica, de sentar numa cadeira de balanço, dessas de palhinha e deixar-se embalar pelos acordes de um Beethoven, de um Chopin ou de um Mozart. Na noite em que comprou uma radiola, convidou os amigos para um café – não era de bebidas com álcool –, formando-se uma roda no terraço de casa. A minha mãe, pouco versada em matéria de recepção, decidiu-se por servir um conhaque acompanhando as finíssimas xícaras de café chinesas, do tipo casca de ovo, mas não tinha o traquejo com a bebida, um Macieira cinco estrelas, ganho de presente no Natal e ainda fechado. Resultado, serviu o aperitivo em pequeníssimos cálices. Muitos anos depois, no Hotel Ducal, em Natal, vi um garçom servindo o conhaque e descobri que o copo era outro, bem diferente daqueles. E que havia um ritual próprio.

A minha avó veio do Ceará-Mirim com uma irmã – a tia velha –, com enormes baús de madeira, nos quais guardavam o pouco que tinham de roupas e de peças oriundas da casa na rua São José ou ainda o que dispunham do velho engenho Verde-Nasce. O que mais chamava atenção do menino que fui, eram os pratos de uma louça de qualidade duvidosa, mas com a marca do pai delas, meu bisavô: Victor de Castro Barroca. Lia-se o nome dele gravado nas peças. Elas não davam valor àquele material e com esses pratos serviam-se os pedintes no portão; àqueles sob a proteção de minha avó, cuja recomendação sempre foi: “Não se nega uma esmola!”. Havia, também, o que restou de certo faqueiro de prata, com a inscrição “B”, representando a família Barroca, de onde vinham a avó e a tia velha.

Essa tia, Deolinda de prenome, era moça velha, como se usava dizer e o que se contava a boca pequena, nunca confirmado por ela, é que fora noiva de um soldado que morrera na Guerra do Paraguai e a partir daí não se engraçara mais por ninguém, ficara viúva sem que fosse casada. O noivo fora, a bem da verdade, à Guerra de Canudos, vi depois, consultando alfarrábios virtuais.  O engraçado nela é que tendo nascido na noite de Natal, ficava indignada com a brincadeira de que teria a idade de Cristo. Mulher sem eira nem beira, dependia dos parcos recursos de meu pai, mas nunca dispensou uma fezinha no jogo do bicho, no qual muito raramente ganhava. Tinha uma caixa de fósforos com os números todos da roda do bicho e era dali que tirava os palpites.

Ouvi muitas histórias, como a do acendedor de lampião e tantas outras. Mas isso fica para outra vez.
 
(*) A crônica é reproduzida pelo Jornal A Besta Fubana, sob a gerência bem conduzida do Papa Berto I, a sua Papisa e mais, o Papinha. Deus os proteja e os proporcione um Natal pleno de harmonia e luz.