sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O Vagabundo da Praça


Aproximou-se a passos lentos, como se estivesse medindo as distâncias, mesmo conhecendo esses entornos de cor e salteado. Escolheu um dos bancos e estendeu no encosto o paletó surrado, sentando-se em seguida, não sem antes acomodar a seu lado a caixa de leite em pó cheia de revistas. Abriu uma dessas e passou rapidamente as páginas, detendo-se, aqui e ali, numa foto qualquer, sem que lhe importassem os textos. Retratos da sensualidade feminina à vista de um homem como outro qualquer, diferenciado, apenas, pela condição humilhante do analfabetismo, que inibe a cidadania. O cão ajeitou-se no chão, abriu a boca preguiçoso, fechou as pálpebras, jurando fidelidade que tantos desconhecem e quase ronca. O passante, que empurrava a carroça repleta de latinhas usadas - o lixo do luxo da burguesia -, com o filho a lhe ajudar no ofício, decidiu parar e descansar. Tirar um deforete, diriam os antigos!
Cumprimentaram-se e um diálogo nasceu! O vagabundo falava e gesticulava, argumentando com segurança, explicando, certamente, as suas idéias e os seus ideais. O interlocutor de ocasião retrucava o quanto podia, discordando, então, do pensamento alheio. A criança, absorta, acompanhava os dois na conversa, sem compreender bem de que falavam e o que discutiam. Não houve acordo e o moço forasteiro se alevantou, virou-se para o menino e fez o gesto universal, tocando a fronte com o indicador da mão direita: É doido! Seguiu em frente, voltou à faina da reciclagem do alumínio, garantindo a féria. Outra vez abriu uma revista, folheou com a mesma rapidez e se deteve na visão da nudez! O menino de rua, cheirando cola, quase senta, não fossem os latidos do cachorro. O cavalo que passou pachorrento, como cabe ser aos equídeos, nem ligou para os dois, mas por pouco não provocou um acidente grave, malgrado a precisão dos freios.
Do outro lado da rua, o vigia do prédio em acabamento descansava a sua monotonia sentado em cadeira de plástico, desdobrando um pedaço de papel com o qual se ocupou. Leu com vagar uma, duas, três vezes, se pouco e novamente acomodou aquilo que parecia um bilhete no bolso da camisa. Seria uma carta de amor, como aquela que amigo meu enviou para a mulher amada nos tempos da adolescência? Copiou de um livro especializado em declarações o conteúdo de uma dessas, que dizia: “A perspicácia que te caracteriza dá margens a que meu amor por ti se concretize...” E veio me pedir para corrigir! Ora, nem sequer sabia o que era perspicácia! Ou as palavras e as frases expressavam rupturas de uma paixão? O que lera e o que sentira, ninguém sabe, ninguém viu, tampouco ouviu! Mas, preferiu distrair-se com as maluquices do personagem à sua frente, falando baboseiras – coitado! -, o discurso dos loucos de qualquer um dos nossos logradouros!
Um homem aproveitava o domingo para um extra e descia a fachada do edifício em equipamento de segurança duvidosa, rejuntando as pastilhas. O vagabundo prestou atenção à cena e não se conteve, versejou assim: "Se você cair/Não vai se ferir/Pois estou aqui/Para lhe acudir..." Dava esperanças ao pobre peão, dependurado como estava, sustentado por um cabo de aço. O empregado gritou lá de cima, repetidamente: "Doido! Doido! Doido!..." Diante desse vozerio todo, a mulher de um prédio mais antigo, de amplos e bem divididos apartamentos, apareceu na sacada. Vestia roupa de dormir, ainda, uma camisola curta, de transparência parcial, mas tinha as formas bem desenhadas de quem fora bonita na juventude. Já ia pelos quarenta, pouco mais ou pouco menos. O marido, mais ciumento que cuidadoso, puxou-a de volta. Afinal, não valia a pena essa exposição matinal. Quase repito a crônica de Veríssimo: “Uma Vizinha Maravilhosa”.
E os ponteiros do relógio se abraçaram, hora de se procurar o restaurante e degustar o bode bem passado. Mas, o maluquinho ficou, porque não tem o direito dos outros, o de se alimentar! O vigia também e o peão. Só a mulher de beleza pretérita sentou-se à mesa e pôde almoçar! Depois, foi dormir a sesta da tropicalidade. Acordou tarde e perdeu o sono à noite. Arrumou todo o guarda-roupa. Valha-me Deus do céu! Quantas peças?
(*) - Eis a crônica de um domingo qualquer, misturado às experiências de todos os sábados e de outros dias úteis e inúteis. Ou então, eis as minhas observações de um cotidiano repleto de convívios urbanos, mesmo que prefira a ruralidade da República Independente de Todas as Aldeias. Comente para pereira@elogica.com.br ou para pereira.gj@gmail.com Ou não comente, abstenha-se, nada escreva e nada pense. Ou
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