terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Ladrão sem Palavra

Quando as histórias mostram o lado bom e agradável das pessoas ou a perspectiva pitoresca de gente que é gente, não tem problemas declinar o nome. Sendo assim, escrevo hoje com os prenomes e os sobrenomes reais, sem escrúpulo algum de expor ninguém. Companheiros de minhas relações pessoais, no hoje dos dias ou no ontem de meus convívios.
Falo de ladrões, de roubos e de assaltos. Não poderia começar o texto sem lembrar que certo dia, eu era um menino apenas, entraram em minha casa, às caladas da noite, três respeitáveis ladrões; respeitáveis digo eu: no mundo do crime. Marreco Segundo e Olhinho, porque do terceiro nunca soube do apelido. Comeram, de saída, o meu lanche, reservado para o dia seguinte no grupo escolar: o guaraná e o pão. Quando acordei, sobressaltado, com a radiopatrulha no quarto, a minha tia mais nova explicou: “Não se perturbe! Foi um gato!”. Fiquei pensativo: “Mas! Chamar a polícia para um gato?”. Só depois soube dos ladrões e dessa investida noturna. Levaram pouca coisa, mas levaram. Sendo o meu pai deputado estadual à época, o rebuliço foi grande e encontraram tudo.

Muitos anos depois, eu já casado e pai de três filhas, estava esperando por minha mulher em seu consultório, quando alguém me aborda por trás, justamente quando lia o jornal A Folha de São Paulo, colocando o revólver em minha cabeça, diz: “É um assalto!”. A princípio, pensei que se tratava de um colega meu, cujo hábito era o de caminhar pelo lugar, ao que respondi: “Rinaldo! Isso não é brincadeira que se faça!”. Mas, era um assalto mesmo e pra valer! O camarada mandou que entrasse no banco de trás para seguir com eles, dois ou três. Isso seria o meu fim, porque ficaria refém dos bandidos. Não tive dúvidas, inventei que me sentia mal. Ora larápio que se preza corre de quem passa mal. Mas, um deles se despediu de mim com um violento soco na barriga. Cai no chão e o chefe deu a ordem: “Atira nesse cabra safado! Quebra a perna dele!”. Não atirou e eu depois tremia mais que vara verde. Serviram-me um café e não consegui tomar, tal o tremor das mãos. Nunca achei o carro!

O meu padrinho de Crisma, Dr. Francisco Montenegro, cujo centenário se passou há pouco, teve a casa visitada por um ladrão, ao que se diz. Encontrou-se com o sujeito no andar de cima, desceu, serviu um lanche e quase convence o homem a largar sua atividade com o alheio. No meio da história, sendo médico, abriu um dos olhos de seu interlocutor e diagnosticou: “Você tem anemia! Está precisando se tratar!”. Não sei o resultado desse encontro noturno ou não sei o resultado dessa anemia ali detectada. Só sei que o penitente saiu da moradia meio cabreiro com o desfecho.

O mais engraçado de todos os casos, porém, foi aquele que se passou com José Lins de Almeida, médico no Recife, psicanalista de renome, antecipador na cidade da ciência de Freud. Nas cercanias do parque da Jaqueira foi abordado, logo depois de ter comprado o seu almoço. É que sendo viúvo, cuidava das questões domésticas. Iam tomar o carro dele, como tomaram, aliás. Mas, o nosso Lins convenceu o ladrão a deixá-lo levar o prato que comprara e mais, pediu para retirar do automóvel umas roupas que trouxera da lavanderia. Retirou todas! Depois, mantiveram um diálogo, curto e definitivo. O nome e o telefone do médico foram anotados. O homem não entendeu bem o sobrenome de Lins e passou a tratá-lo de “Seu Vins!”. No caso em particular, tanto fazia como tanto fez! Acertaram que devolveriam o carro na noite daquele dia. Ligaram à noite: “Seu Vins! Sujou! Só devolveremos o carro amanhã!”. Ai veio a resposta notável do psicanalista: “Você é um ladrão sem palavra!”. Como se existissem ladrões com palavra e sem palavra. Devolveram o veiculo no dia seguinte, diante do mesmo parque, com a chave posta sob o pneu dianteiro da esquerda.

(*) - A crônica de hoje - 16 de fevereiro de 2010 -, às 22h25, ofereço a Rui Pereira, meu amigo fraterno, figura que não poderia ter se encantado no infinito das coisas, porque havia muito mais a fazer neste mundo de Deus. Amigo de José Lins de Almeida, protagonista da história; amigo e médico. Rui foi médico de médicos.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Domingo de Carnaval

A televisão abriu o domingo de Carnaval com uma exibição curiosa: um desenho de Luluzinha e Bolinha. Participavam, também, outros protagonistas, como Alvinho e os pais do garoto que costumava se disfarçar em radiola. Não vi o Raposo, com o seu jeitão orgulhoso e a sua auto-estima crescente, graças aos amores, às vezes frustrados, da Lulu. Já levantei um tanto quanto mofino, como dizia minha avó, cabisbaixo, desolado; afinal o meu neto, Pablo de prenome, viaja hoje. Sai dos trópicos – Tristes Trópicos de Lévi-Strauss –, para voltar ao, inteiramente, temperado da Espanha. Sai dos 32ºC para adentrar na negatividade dos - 2ºC. Valha-me Deus do céu! Ontem à noite, à entrada do restaurante, o vigilante, ao saber da origem da criança e tomando ciência de seu retorno hoje, disse: “Cuidado com o térmico!”. Alertava, então, para o choque térmico da chegada. E é isso mesmo! Senti o térmico, faz pouco tempo, em Portugal!

O desenho talvez encerrasse uma fase de muitos filmes infantis que vimos juntos, a família toda, reunida como está em Recife, numa corte quase permanente a Pablo. Ora, ouvi por cá cantigas de menino que não são mais as minhas. Cantos e toadas da Rainha dos Baixinhos, Xuxa por apelido, sendo capaz, até, de dizer, de cabeça, as letras dessa musicalidade que tanto atraiu as atenções do infante. A “Galinha Pintadinha” mereceu repetições mil: “A galinha pintadinha/E o galo carijó/A galinha veste saia/E o galo paletó...”. A questão maior é que a penosa adoece e o macho nem liga para as mazelas da bichinha. Os pintinhos saem correndo e chamam o doutor. Chega o peru enfatiotado, trazendo a tiracolo a enfermeira, imerecidamente um urubu e uma pena de pavão, a injeção salvadora da ave que adoecera. E por ai vai! Hão de silenciar os equipamentos de som e a televisão, o menino se vai para bem longe daqui. E agora, doutor?

Essa minha paciência em ouvir tantas vezes a história, talvez representasse a penitência a ser paga aos meus outroras vividos. É que andei muito tempo pela rua do Sossego, onde moravam alguns de meus amigos e por lá, numa manhã de férias, junto com Marcionilo e com Marcelo, capturamos uma galinha fujona em terreno baldio do lugar. Matamos a suplicante e inventamos um churrasco. Sequer tínhamos noção de como proceder com a carne, mas instalamos o fogo, queimando gravetos do lixo e traspassamos o galináceo com uma vara, um pau. Do fundo à boca, o espeto improvisado rompeu a intimidade do bicho. Não evisceramos a franga e não lembro se alguma coisa restou para ser comida, a pele tostada certamente. Foi uma maldade aquilo lá; maldade de adolescentes em flor, que buscavam aventura e se depararam com a fuga inesperada da pesada ave.

Por lá, pela rua do Sossego, havia uma sociologia peculiar. Existia um prefeito da rua, dono de um Chevrolet Bel Air azul e branco e pai de uma coroa – mulher de seus quase 50 anos – que fazia convergir os desejos da meninada. Ela tinha sempre um namorado jovem, pelo que foi uma antecipadora das atrizes de agora, dessas celebridades e de outras beldades que se cercam de rapazes na flor da idade e com isso se sentem muitíssimo bem. Lembro da cinquentona sentada no terraço, aos beijos com o garotão de plantão. Aquilo encantava a rapaziada da rua. Em casa de Marcionilo, algumas vezes, Dona Zenaide me fazia subir no pé de manga rosa para a colheita da safra. Nunca tive coragem de dizer que minha mãe deplorava isso, qualquer investida de minha parte em árvores ou mesmo arbustos. Tinha medo da queda! Do braço quebrado, da bacia fraturada! Nunca aconteceu nada!
Certa vez, íamos no carro de Seu Nilson, pai de Marcionilo, ao cinema e o homem estacionou para oferecer carona ao pai de uma menina que eu vinha namorando. Deus do céu, quase digo, quando a criatura sentou-se a meu lado, eu levantei o paletó – ia-se ao cinema assim – para não ser reconhecido. Não sei mais do diálogo – Marcionilo sabe –, mas tremi feito vara verde com aquela companhia.

E o menino balbuciando Papá mostra que está na hora de voltar: quer ver o pai!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Uma Marinheira em Minha Rua


O meu pai era um homem extraordinário! Não suportava o Carnaval e nos tempos de solteiro fazia retiro fechado com os jesuítas, mas nunca descuidou de levar os filhos aos bailes infantis do Clube Português. Era sócio de honra da agremiação e sendo assim, recebia um convite especial, familiar. Enquanto fui menino usava essa entrada apenas numa das tardes do tríduo de Momo, mas depois, ia às festas noturnas, com a namorada a tiracolo já. Numa das vezes, estava em mesa recuada e mais adiante umas moças, quase nossas vizinhas, dançavam alegremente, pulando o frevo e rebolando com o samba. Pois de hora pra outra, salta do vestido de uma delas o seio direito. Claro que imediatamente a penitente fez o recolhimento do órgão lácteo que expusera, mas eu, que ando sempre numa situação de observador do cotidiano, não perdi tempo: olhei. O namorado me fitou com cara de bicho, mas não havia mais jeito, eu tinha visto do busto de sua amada e talvez idolatrada namorada.

Na minha rua havia uma troça dos meninos, com o estandarte vermelho: Os Brotinhos. Passavam cantando e dançando lá por casa, faziam uma parada estratégica em cada porta para uma dose de cachaça ou um gole de whisky, o que viesse valia. Minha mãe se perturbava, porque o meu pai não bebia e por isso ela não sabia lidar com esses líquidos que passarinho não toma. Aguardava a hora da bateria improvisada parar e ia buscar o que dispunha: Conhaque Macieira, cinco estrelas. Servia em pequenos cálices, que aprendi depois não se prestam à bebida, a qual deve ser tomada em taça apropriada, esquentada antes da ingestão. Certa vez até, em viagem que fiz a São Paulo, tremia de frio e atendi à recomendação de um amigo: “Toma um conhaque!”. Lembrei dos presentes que o meu pai recebia e pedi o Macieira na hora em que o garçom indagou sobre a preferência. O calor voltou num instante. Hoje, sou mais uma cerveja bem gelada ou um vinho bem cuidado, tudo sob o luar de Aldeia.

Mas, houve um ano em que a família estava de luto. Passava-se uns seis meses vestindo preto – o luto fechado –, depois abrandava-se um pouco e usava-se cores discretas, sempre com o fumo preto no braço ou pendente de um dos bolsos. Brincar o Carnaval, nem pensar! Foi ai que a vaca torceu o rabo, porque eu não queria deixar de batucar na folia e não tinha espírito para ficar enfurnado em casa, curtindo o luto. A minha avó tinha morrido, realmente, eu sentira a sua falta, mas aquilo passou e os acordes do frevo já estavam se aproximando de meu juízo. Apelei para a minha argumentação de adolescente e nada. Entrou em cena minha mãe e a sua interveniência fez com que o meu genitor liberasse. Eu queria ir a uma gafieira e no final das contas ele disse: “Vá a essa gafieira pelo amor de Deus, que eu não aguento mais!”. E eu fui! Lá encontrei Gercina, empregada de casa, dancei com ela agarradinho e o fiscal de salão advertiu: “Se continuar vai pra fora!”.

Mas, perto de casa havia uma moça linda, de corpo quase perfeito, que se vestia de marinheiro ou marinheira a cada período de folia. Era uma figura admirada e sobretudo desejada por todos, mas ninguém passava a mão, porque o namorado se dizia presente a noite inteirinha e pela manhã, logo cedo, mal raiara o dia, ia deixá-la em casa, não sem antes quebrá-la no muro de sua residência. Eu, que sempre acordei com o galo, gostava de apreciar o rala e rola, babando de vontade. Ai meu Deus do céu: deixa eu me aproximar de Dolores. E a graça divina nunca me chegou!

(*) - Uma crônica sobre o Carnaval.Outros carnavais e outras vivências, por certo outras convivências também. Dizem que Lampião gostava do Macieira cinco estrelas! Não sei se é verdade ou se não é! Disso sabem melhor o Papa da questão Frederico Pernambucano e o Bispo da problemática, Roberto Pedrosa, Bob por apelido, Ccsado com Valéria, a sua perpétua domadora, como ele mesmo destaca. Comente no espaço do Blog, agora com moderador, para evitar intrusos com jeito de espírito de porco ou para os e-mails: pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com Quem disser o verdadeiro nome de Dolores ganha uma lança-perfume Rodouro de presente. Viva! 

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Mais Picaresco que Pitoresco

Eu noto que a temática em torno do telefone agrada e estimula a resposta, senão no mesmo diapasão, em diferentes tônicas da abordagem. Por isso, vou contar por cá duas histórias dos meus diletos leitores. Não sem antes dizer de uma certa ligação que recebi em sábado pela manhã, estando eu na varanda do apartamento tomando um fresco, como se dizia no outrora do tempo. Atendi o celular sem atentar para o número que chamava e o diálogo teve início. O meu interlocutor dizia que eu tinha sido indicado para receber uma medalha de honra ao mérito e ele me telefonava para discutir detalhes da entrega. Confesso ao amigo leitor que, de começo, fiquei lisonjeado, cheguei a dizer que não merecia tanto, coisas da modéstia, falsa modéstica de quem se julga merecedor dos encômios todos. Veja só o leitor!

Mas, chamou a atenção o fato de que o homem indagava seguidamente: “Como o senhor deseja receber?”. Achei que a organização que me distinguira, é que deveria decidir sobre a entrega. Chamou ainda mais a atenção ouvir desse figurante inesperado o seguinte: “Quer que vá levar em sua casa?”. Ora, foi demais! Receber uma medalha em casa? Mesmo sendo, como era, uma associação de bairro, não seria da formalidade protocolar, imagino, fazer essa outorga a domicílio. Concordei com a entrega, marcando-a para a quarta-feira, porque teria tempo de pensar e refletir sobre as coisas daí por diante. O número ficou registrado pelo celular e quase ao meio-dia resolvi telefonar, para saber de onde falava aquele misterioso figurante de meu sábado. Liguei, atendeu uma outra pessoa. E eu, com a inocência dos curiosos: “De onde fala?”. E a resposta: “Olhe, meu senhor! Eu ia passando, vi o orelhão tocando aqui na avenida Conde da Boa Vista e atendi!”. Muito bem, quase digo! Não precisa explicar mais nada.

O homem na quarta-feira chegou ao prédio, falou com o porteiro e eu recebi o aviso de sua presença. Mandei que aguardasse no hall e desci. Sentei com ele em sofá bem posto à entrada de meu edifício e indaguei as razões da escolha. O penitente, vestido a caráter, de paletó e gravata – eu de bermuda –, teceu os maiores elogios que já ouvira, alguns dos quais nunca me foram ditos, como aquele: “...prestou inestimáveis serviços a Pernambuco!”. Eu até que prestei mesmo, mas inestimáveis, francamente, não! Nessa cerimônia quase doméstica me deu um diploma, um relógio Mido falsificado e finalmente a bendita medalha, de pé, como se estivesse num palco. Ao final, abriu um livro de ouro e me pediu que o assinasse. Passei uma vista d’olhos e só encontrei gente grande, fazendo doações entre R$ 500,00 e R$ 1.000,00. Fui precavido e disse: “Sou assalariado e não poderei lhe doar mais que R$ 50,00. Ele ai arranjou uma brecha entre dois nomes, no meio do livro, acolhendo a minha assinatura e embolsando o dinheiro. Ainda pediu duas indicações e eu decidi preservar os amigos, a ninguém recomendei.

Mas o tema, já disse antes, chama a atenção e desperta o interesse do leitor. Como aquele, velho amigo, que me escreveu e disse das lembranças que tivera de seu pai, um afinador de pianos, com quem viajava para visitas às cidades do interior, nas quais existiam instrumentos assim, muito apropriados ao estudo de mocinhas em flor. E era por lá, numa dessas cidades interioranas, a já progressiva Nazaré da Mata, berço de Mauro Mota, que o genitor, ao final da labuta, se utilizava de um velho equipamento telefônico com uma manivela. Admirava-se o então menino com as vezes em que o pai movimentava o veio, para depois falar e pedir um carro de aluguel. E em cinco minutos o veículo chegava, numa prontidão que os nossos taxis não conseguem alcançar. E o trote de que fala o meu ilustre amigo, escritor e editor, que tendo ligado para a Casa Dako, onde vendiam fogões de inox e foi direto ao assunto: “Penico de barro enferruja?”. Ouviu todos os impropérios do mundo”! Era assim mesmo!

E por fim, uma leitora que pediu para citar o seu nome: Juliana Moroni! É que a figura esteve morando na China, onde, aliás, o meu Blog foi bloqueado, por utilizar-se de palavras inadequadas, chulas, cuidava em ligar pra minha casa pelo computador, usando um programa com o nome de Skype. Às vezes – só às vezes – enchia um pouco o saco, falando das coisas lá do Oriente e eu nunca descuidei: “Juliana! Vá pra China!”. Mas Foi, justamente, ela quem me comunicou o bloqueio e o leitor pode conferir, há 25 acessos daquele país agora em franco desenvolvimento. Era ela quem visitava o espaço, até que um dia escrevi a crônica “Bunda em Japonês” e os homens do governo ignoraram a minha intenção em contar o picaresco, mais do que o apenas pitoresco.
(*) - É o telefone ainda, neste espaço virtual, fazendo o sucesso que a comunicação permite ou que o diálogo deixa passar. Comentários são sempre bem-vindos. Escreva no espaço mesmo do Blog ou use os e-mails: pereira@elogica.com.br ou pereira.gj@gmail.com

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O Telefone do Coronel



O telefone foi uma das grandes invenções do homem. E o progresso, o desenvolvimento da tecnologia contemplou bem esse invento, aperfeiçoando-o ao máximo. Imagine o leitor que não sendo eu assim tão velho, ainda peguei na farmácia da esquina – a Farmácia Lobo –, na Avenida Visconde de Suassuna, um velho telefone, daqueles em que havia um bocal no qual se falava e se falava alto, contanto que o interlocutor pudesse ouvir. Enquanto isso, a mão esquerda sustentava o cone com o qual se ouvia, encostando-o no ouvido do mesmo lado. Naquela drogaria da infância, onde existia, como em todas as outras, uma propaganda do óleo de fígado de bacalhau, certa vez, um camarada indignado com a namorada discutia quase aos berros. Não me lembro do resultado, mas ao que parece, terminaram rompendo em outra ocasião o amor de passageiro.
Em minha casa, na infância e na adolescência, o equipamento inventado por Alexandre Graham Bell era preso na parede, não podia, então, ser deslocado. Atendia-se assim, encostado na janela da porta, olhando para o jardim, onde, quase sempre havia um mamoeiro com os mais deliciosos frutos. Era ali que Ivonete, arrumadeira e passadeira, pedia para ligar e falar com o fuzileiro de suas preferências. Eu procurava no catálogo o número, fazia a ligação e entregava a ela a coisa pronta. Era só abrir a boca e se explicar. Depois, claro, tinha o meu troco. Um beijo roubado e um abraço bem dado, sem falar no agarrado de bandinha. Foi ali que fiz a minha tia velha atender a um fictício chamado meu, dizendo que era do purgatório. E ela: “Já liga do purgatório?”. E eu, na sem-vergonhice da idade: “Estamos em fase de experiência!”. Foi de lá que liguei e pedi 100 pães a uma padaria. A vizinha quase mata todo mundo da rua, tal a raiva e tal o desespero.
Quando chegou ao Recife o telefone sem fio, uma peça capaz de se deslocar por toda casa, ouvindo e falando, estava num restaurante desses da classe média e vi o novo apetrecho. Não tive dúvidas, pedi ao garçom que me emprestasse e fiz uma ligação para meu pai, que era uma pessoa interessadíssima nesses inventos. Do outro lado ficou perplexo e providenciou, de logo, a compra de equipamento similar. Mas os primeiros desses aparelhos eram precários e não garantiam a privacidade de quem se utilizava do avanço. Foi assim que ouvi conversa de vizinha minha numa briga enorme com o namorado. Mulher bonita, de formas bem desenhadas, de pudor dentro dos limites do pós-moderno, ouvia do parceiro a admoestação: “Quenga safada! Mulher vulgar! Exibicionista!”. Isso porque ela transitava dentro da ambiência doméstica nua da cintura pra cima e o empregado do quintal, “Cachorro de Quintal”, no ontem dos anos, deliciava-se com a visão sempre agradável de seu corpo.
Hoje, o telefone ganhou a popularidade das ruas e de todas as classes sociais. O celular é quase um adereço de toda gente. Mas, o antigo trote nunca deixou de ser um recurso para quem deseja um relax. Sou fã dessa prática, isto é, se estiver estressado, não duvide o leitor, ligo para um número qualquer e passo o meu recado. Dia desses até, digitei (este o verbo de agora) o telefone de um veterinário e disse de minha precisão em fazer uma consulta; mas consulta sigilosa, secreta, porque tinha capturado uma raposa. A moça que atendeu à ligação ficou perplexa e disse: “Vou chamar a veterinária! Só ela pode resolver!”. De outra feita, tendo anotado o número de um certo orelhão, liguei e indaguei: “O senhor pode informar como estão as coisas por ai? É o coronel Ribembauer, mutilado da segunda guerra!”. O interlocutor de ocasião não imagina que não há mais coronéis assim, daquela conflagração e respondeu: “Tudo bem, coronel! Estou à sua disposição!”. Agradeci e desliguei. Pronto, relaxei!
(*) - Eis a crônica do telefone e de seus segredos; de sigilos nunca apenas cochichados. Diálogos secretos ouvidos, tantas vezes, por quem liga o equipamento e se encontra com um interlocutor de ocasião. Comente no espaço mesmo do Blog ou o faça para pereira@elogica.com.br ou ainda para pereira.gj@gmail.com