segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Palavreado Matuto

O linguajar interiorano típico, aquele que estava habituado a ouvir nos meus anos de menino e nos meus tempos de adolescente, convivendo com as empregadas de casa, em grande maioria tangidas do massapé garanhão, para repetir o que diz o sociólogo de Apipucos (Gilberto Freyre), desapareceu, terminou vencido pela padronização das palavras e das frases do falar global. Empregadas tangidas, sobretudo, por se perderem nos folguedos da bagaceira, onde prevalecia a força do mais forte e vencia a sensualidade da beleza ou a astúcia das manhosas desde o congênito da vida. Não vejo mais quem diga “vosmecê” ou não ouço mais ninguém dizendo “e a pois”. Pior ainda o velho “pro quê” das indagações matutas. Ou então: “Avia menino! Vai “precurar” o brinquedo perdido!”. Ou ainda: “Deixa de ‘avexame’ menino danado!”.
Quando era jovem médico no Hospital Pedro II, o mesmo de meu parecer no Conselho Estadual de Cultura, tombando-o e o mesmo de um trabalho científico que venho brunindo faz mais de um ano, ouvi muita coisa que não se escuta mais. Não raramente a doente matuta abria o diálogo dizendo: “Sinto um incômodo na mãe do mundo!”. E eu não sabia, de começo, que a “mãe do mundo” nada mais era do que o útero, o depositário sagrado da vida. Quando o padecer era mais adiante, não hesitavam em verbalizar: “Estou doente das partes mais vergonhosas!”. Oh! Quanta ingenuidade ou quanta pureza ou quanto pudor para expor a própria doença! Que vergonhoso que nada, quase dizia!
Um homem, certa vez, me procurou no ambulatório e expressou em alto em bom som: “sofro da tripa gaiteira”. Era uma criatura acometida de uma mazela retal, para quem foi indicado fazer uma endoscopia, procedimento que estava nascendo entre nós, vindo das terras distantes do sol nascente. Preparado o paciente, devidamente internado, como cabia fazer à época, foi levado à sala de exames. O profissional encarregado do exame fez uma curta exposição do que sucederia e ouviu do penitente uma justificativa de que: “No meu, doutor, ninguém vai mexer não! Aqui, só a terra há de comer!”. E assim foi, não se fez o exame e anos depois a terra realmente comeu. Vizinho seu de cama concordou com o procedimento, mas no meio do exame eliminou um certo volume de gás na face do médico ainda inexperiente. O profissional era meio agitado do juízo e não teve dúvidas e deu-lhe um safanão nas nádegas, ao que ouviu: “Doutor! Não tive culpa! Saiu sem querer!”. E foi mesmo! Saiu sem pressentir!
Naquele tempo - terminei me habituando -, os pulmões eram chamados de “bofes”, o baço apelidado de “passarinha” e os intestinos de “tripas”, não sendo incomum o velho “nó nas tripas”. Eram nomes vistos nos matadouros ou denominações costumeiras da culinária doméstica. Por isso, chamar o cérebro de “miolo” não admirava. Os “miolos” doíam que só, sobretudo depois de uma carraspana no bar da esquina. Mas, servia-se à mesa um prato delicioso: “miolo de boi”. Era um prato extremamente apreciado e o meu pai não dispensava a iguaria, justificando o quanto valia para a memória humana. Rico em fosfato, dizia. Com se o bicho tivesse mesmo lembranças duradouras! Com as “oiças” doentes, a velha Dona Mimi ouvia mal e às vezes não compreendia o que sentiam os meninos, para que a sua reza, com o galhinho de matruz colhido no jardim de casa, fizesse o efeito desejado. Fazia com o verde do mato uma cruz na cabeça, outra no tórax e mais uma no abdômen. O galho murchava, como fazem todos os vegetais retirados do caule, e a fisionomia da mulher iluminava-se de um quase gozo, o gáudio da vitória. Ó Dona Mimi! Quanta ingenuidade junta!
Eis o palavreado matuto. As crenças e os rituais da gente simples.