domingo, 20 de junho de 2010

Pé de Moleque


O tempo que se vive é o das chuvas. É muita água caindo nesse meio de mundo. O ruim é que a gente simples termina sendo jogada nas encostas, perdendo a casa e tantas vezes a vida nas enxurradas. Puxa, que contraste! Mas, desde menino que vejo a chuvarada cair nesse mês de junho, antecedendo o São João. Ano já houve em que uma quadrilha em casa de meu pai, inventada por mim para dançar com a namorada que virou minha mulher, quase não acontece, por causa de um verdadeiro açude no quintal, justamente onde os pares iam dançar a noite toda. E de nada ou de quase nada serviram os passos daquela coreografia que já enfeitou os salões da nobreza e hoje caracteriza os festejos juninos de minha terra: o pai da moça não permitiu que ela viesse para os ensaios. Sendo assim, breu! Mas, no fim da noite, um cunhado enfezado fez as pazes comigo graças ao conhaque Coringa, de cuja ressaca nunca esqueci. Nem ele! Não sei se ainda existe tal conhaque.

Menino, bem menino, lembro de minha avó com o avental branco, do qual tanto se orgulhava meu pai, mandando bater a massa do bolo. Era um pé de moleque – sem hífen, segundo o Aulete –, à época, pode confiar o leitor, com os tracinhos que sempre uniram as palavras em duradouros abraços. Convocava as empregadas domésticas com um tratamento diferente, próprio dos anos patriarcais, chamando-as de criadas e recomendava fosse preparada a massa. Eu não sei dos ingredientes, mas sou capaz de lembrar que estando pronto o acepipe principal da noite, era rigorosamente proibido pegar as castanhas na superfície do bolo. Eu não atendia às regras da família – nunca atendi às regras – e roubava uma, duas, três daquelas deliciosas castanhas, para desespero de minha avó.

Mas, sendo um dia – ou uma tarde, porque os festejos começavam às 6 da noite – de mais movimento, a minha criatividade infantil ou juvenil me fazia criar mão e contramão na sala. Sendo assim, na condição de guarda de trânsito doméstico, cujo mister se passava à semelhança de um trator, empurrando os que desrespeitassem as normas, não era incomum fazer uma das quatro empregadas voltar se estivesse na via de fluxo contrário. É claro que o trator podia se aproveitar de uma penitente qualquer fora da mão recomendada, recomendando a minha própria mão. E talvez tenha sido Nina quem mais infringiu o código de trânsito doméstico. Ela ia e voltava sempre pela contramão, como se o trator tivesse combustível para tanta infração. Mas, coube a Virgínia dos Palmares, mulher negra, que se perdeu na bagaceira, o prêmio de infratora mais bonita naqueles anos.
Às 18 horas, rigorosamente, com chuva ou sem chuva, acendia-se a fogueira, para que não morresse o dono da casa no ano que se seguia. A madeira rangia e os galhos verdes pareciam gritar os horrores já do desmatamento precoce. Ao final, sobravam as brasas e os versados nas coisas do espírito atravessavam aqueles carvões pegajosos com os pés descalços. Fiz isso mais de uma vez, até que os espíritos me proibiram a proeza e queimaram os meus pés. Não sei as razões pelas quais a minha mãe era destacada para os fogos, soltando os vulcões e os foguetões. O meu pai ficava apreciando o foguetório, mas não era homem de iniciativa nas coisas do fogo. Soltava-se bichas de rodeio, estrelinhas e rodinhas até acabar o estoque e depois o sono presidia o espetáculo da cama. Era uma noite e tanta!

Os anos se passaram e o São João foi mudando; mudando os personagens e mudando a musicalidade, Luiz Gonzaga morreu e outros o sucederam. Hoje, cantam Dominguinhos e Gonzaguinha, Santana e outros tantos.