sexta-feira, 28 de março de 2008

Operado do Ouvido ou A Força do Gerúndio

O telefone, inventado por Grahn Bell e motivo dos encantos de Pedro II, parece ter sido o passo inicial para o extraordinário desenvolvimento das comunicações no mundo, de cujo progresso na contemporaneidade temos sido testemunhas e partícipes. Vez ou outra, porém, esse avanço da modernidade nos pega uma peça. Comigo, em particular, confesso, vou atraindo enganos e desenganos com interlocutores de ocasião. Gente que liga errado e gente que liga certo! Há quem pense que o prenome é exclusivo, que não tem homônimo em todo o globo terrestre ou há quem ouça diferente as respostas e as explicações do outro. Uns ligam para solicitar ajuda e se sentem no direito de ensaiar um preâmbulo interminável e alguns se imaginam num auditório qualquer e promovem um monólogo, com longas palestras ou com uma conferência atualizada.

Com o telefone celular, então, as falhas são ainda mais freqüentes. Gente que liga à cobrar e gente que se utiliza do artifício do toque: um toque apenas e se aguarda o retorno. De minha parte, podem ficar descansados os justos e os penitentes, eu não retorno. O homem rude me ligou e queria à força que eu lhe confirmasse que era o dono do armazem de construção onde fizera as compras. Não adiantou negar e renegar! Finalmente decidi pela resposta: "Eu sou o Coronel Ribenbauer, mutilado da Segunda Grande Guerra, se repetir a ligação considere-se preso!". Ora não sou militar e não poderia ter sido daquela beligerância mundial, sem que estivesse distante daqui, nas paragens do infinito das coisas. De outra feita, resolvi fazer o contrário, telefonar dando um trote. Escolhi Michelson, figura aqui das amizades de minha filha, e não tive dúvidas: "Michelson! Acorda! Enterra os cavalos, enterra os cavalos, eles vêm ai. Eles estão chegando!". E o rapaz, surpreso, respondia: "Eles? Quem são eles? Que cavalos? Onde os enterro?" E deixei o dito pelo não dito.

Pior com um vendedor de cartão de crédito, desses que estabelece o colóquio trazendo informações que os desavisados acreditam, piamente: “O senhor foi indicado como cliente especial!” Vejam só! Dá até raiva! E fez a apologia de seu produto, apontando ganhos e benesses. Interrompi o discurso e mostrei que já operava com o seu cartão e interesse não tinha em trocar ou acrescentar, inclusive porque nos seqüestros de agora, relâmpagos, com ou sem trovoadas, é melhor dispor de apenas um desses apetrechos modernos. O diligente propagandista, no entanto, entendeu: “O senhor foi operado do ouvido?”. Que operado do ouvido, enha respeito, retruquei de logo. E para me livrar do incômodo, adiantei que não me interessava continuar a conversa com quem não compreende o que digo ou o que falo! Desculpou-se e desligou. Nunca mais ligou! Graças a Deus do céu!

A moça da creche liga mais uma vez, ignora o meu nome e me chama de Gilvandro. Digo-lhe que ele não mora aqui, propriamente. Indaga o meu prenome e eu caio na besteira de revelar. Invoca o meu coração e pede por Rebeca, uma criança desnutrida e pobre. Ofereço-me para resolver o problema numa instituição e digo que o governo cuida desses casos. Demonstro a intenção de ir lá, fazer uma visita, como quem não quer, querendo. Não liga mais! E a adolescente, que verbalizou as pornografias todas do vernáculo e que ao final indagou: “Quem fala?” É o bispo, respondi, porque só dizendo isso! E ela, dirigindo-se à outra circunstante: “É o bispo! Vou desligar!” E do jeito que ligou, desligou!

Por cima de tudo isso, as moças e os moços, também, do telemarketing, achando pouco o que se passa, usam o gerúndio para tudo. Assim: “Eu estarei ligando para o senhor...”. “Eu estarei enviando para o senhor...”. Não resisti: “Moça! Fale direito!”. Desligou!
(*) A crônica é uma mistura de episódios e de tempo. Uma homenagem singela a Michelson, que disse ser meu leitor - será? - e que gostaria de ser como eu sou. Bem humorado e descontraído. Uma projeção, então, que só Freud pode explicar.

sexta-feira, 21 de março de 2008

A Despesca do Viveiro

Sentado assim, na quinta-feira santa, sob uma lua cheia que me alumia as horas, ouço o quase ruído do silêncio. Os grilos, à distância, preenchem os ares do mundo com um zunido constante e agudo. Aqui e ali, percebo o coaxar de um sapo que renasceu do período de estivação, processo da lentidão metabólica que conserva a vida. Afinal, estão voltando as chuvas. Há boas novas, se diz, pois que os céus encharcaram os campos no dia de São José. Raios, trovões e relâmpagos estão previstos no final de semana consagrado à Paixão. Muito longe daqui, um cão quebra o mutismo instalado nesse mundão de muito verde, ainda. Cumpre o próprio desiderato: o de latir para a lua cheia. Imagina-se um lobo nas gélidas estepes. E o bacurau isolado repete o funesto canto. Anuncia, por certo, a sexta-feira santa ou lembra o luto fechado de minha avó e as proibições que fazia, a de cantar as músicas profanas e até o ato simplório de assoviar: “fiu–fiu!”.

Foi um sabiá que me recebeu com o seu mavioso canto, assim que cheguei e me acomodei em casa. Sabiá-gongá imagino eu, cantando ao longe, convidando a fêmea de todos os encantos ao mais sublime dos atos: o da reprodução. Bastou abrir a janela para admirar o jardim ainda orvalhado, quase molhado pela parição da manhã, que trouxe o sol aclarando o dia. Na relva, que faz da frente de casa um tapete verde e viçoso, havia uma festa de rouxinóis, num agradável palrar dessa passarada de um marrom fechado e vistoso. Já tinha visto de outra janela no Recife um desses bichinhos saltitando nos contornos do campinho de futebol, como se aqueles ferros da modernidade fossem os galhos que vi crescer em Santo Amaro da infância. No Mercado da Encruzilhada, também, nos beirais da igreja nova, da pentecostal seita, havia outro, trinando esses mesmos acordes. Mas o espetáculo maior é por aqui, em Aldeia, no Bosque das Águas.

E a sexta-feira amanheceu assim, linda, fechada pelas nuvens do céu e a neblina tomando conta dos ares. Estavam escondidos os pássaros, mas na casinha que trouxe de Santa Felicidade, em Curitiba, o homem saiu à rua e a mulher recolheu-se. Sinal de muita chuva e de muita umidade, de paz e de amor, de felicidade enfim! Uma coruja passou, todavia, rasgando a mortalha: Valha-me Deus! Antecipa, por certo, os horrores da cruz! A paixão e a morte do Cristo. Jesus não queria morrer, defendeu em artigo o pensador católico Frei Aloísio Fragoso. A morte, na Via Crucis que viu em Bariloche, o Senhor tem a face tomada pelo sofrimento da dor, mas há uma criança num braço da cruz, para quem o crucificado olha e sorri. É o fenecer da vida em prol de outra ou de outras, porque se assim não fosse, morreria todo o povo de Deus! Talvez a coruja, bicho de mau agouro, aziago, lembrasse as minhas visitas à imagem do Senhor morto e o beijo nunca higiênico dos penitentes.

Bom mesmo era participar da despesca do viveiro da casa de meu tio Delgado, em Duarte Coelho, nos começos de Olinda, antes que a estrada sufocasse o mangue e estrangulasse os peixes ou condenasse à quase extinção os caranguejos de andada. A família toda de minha mãe se juntava e era uma festa para a meninada, quase rapaziada já, que se atolava na lama até os joelhos, ajudando aquela pisciforme coleta. Não lembro mais como era a divisão do exigido alimento dos dias reservados ao jejum e à abstinência. Comia-se peixe, nunca a carne dos pecados. Foi essa exigência que me tornou inábil para acender o fogo do churrasco, pelos perigos da vermelhidão da picanha. Só a grelha elétrica foi capaz de matar o meu pecado da gula.

A vida é bela por tudo isso, pela largueza das estradas e até pelos obstáculos a serem vencidos, às custas do próprio sangue, tantas vezes, como na cruz, no eternizado sacrifício em prol do bem maior, da humanidade inteira, numa redenção ainda hoje vivida e revivida. E se até o Cristo, no momento derradeiro de um padecer enorme, voltou-se para o Pai e em suplicantes palavras verbalizou seu desespero – “Senhor! Senhor! Por que me abandonaste?” –, como pode a criatura não aceitar a sua fragilidade? Que não se iluda o penitente dessas paragens mundanas, a ninguém é dado atirar a primeira pedra! Toda gente caminha contabilizando nos embates vitórias e derrotas, louros e fracassos e a gratuidade das críticas, dos menosprezos e dos desprezos não pode se alinhar com as frágeis características do ser, nascido à semelhança, apenas, do Criador, mas com a perfeição posta na perspectiva do inteiramente utópico. Todos nós temos a nossa paixão e ao final a grandeza da ressurreição, que pode ser terrena, simplesmente - E o é, também! - ou eterna, na crença de muitos.

A juventude é o tempo dessa paixão, desse sofrimento d'alma, de um padecer ameaçador, que parece misturar, nas ambivalências da idade, as tentações da matéria com as contenções do espírito, gerando todos os conflitos. Mas, a maturidade que chega e faz o cabelo pratear ou faz o corpo vergar à força dos anos, traz um sentimento a mais: o da felicidade. Eu sou feliz com as pequenas coisas. Com o churrasco improvisado, o tilintar das taças do vinho bem escolhido e o beijo carinhoso que o brinde trouxe: “Saúde!”.

Eis a minha inspiração diante da chuva forte da sexta-feira santa e diante da umidade que vem do abstrato que é o tempo. Boa Páscoa a todos.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Contrastes do Cotidiano

Acomodado ali, numa sala de espera de um laboratório de análises, aguardando a vez, como tantos outros, nunca pensei testemunhar diálogos que me permitissem ensaiar reflexões quase sociológicas, a propósito do difícil exercício da vida, quando a idade vai marcando o tempo com a prata dos anos. A senhora, na casa dos oitenta, era a cliente aprazada, imagino, fazendo-se acompanhar da filha e de mais um filho, além de uma neta muito jovem, ainda. Conversavam a respeito dos incômodos provocados por ela, pela mulher de idade avançada, de corpo vergando à força das décadas e de bengala à mão. Desfiavam um rosário de queixas, desde o sono precoce no cair da tarde à insônia das madrugadas, sem falar nas impossibilidades fisiológicas de retenção das excreções orgânicas. Falavam como se estivessem imunes à senectude!

A moça era a mais loquaz! Morava com a avó e por isso vinha presenciando cenas com as quais não concordava; não concordava em vê-la sedentária, na sala do apartamento, entregue à artrose, enquanto o avô, todos os dias, descia e fiava boa conversa com o porteiro do prédio. Que fosse, também, àquele passeio matinal, entre o andar de cima e o térreo e ouvisse do empregado as suas histórias, mazelas de uma outra vida! E não podia se conformar, também, com o cochilo vespertino, transformado em sono profundo até, com roncos e outros ruídos, à boquinha da noite. Por isso, às quatro já estava de pé, andando pra lá e pra cá, insone. É que ao despertar daqueles inícios oníricos na varanda de casa, não cuidava em sair correndo pra cama, como desejava a nunca cuidadosa neta, mas tomava banho e lanchava. Assim, perdia o sono e os sonhos!

A filha, mais cautelosa, pouco dizia, mesmo que não reagisse. O filho, entretanto, malhava a mãe com todas as culpas. Não se cuidava! Deveria tomar três remédios distintos para a hipertensão de que era portadora, mas esquecia. Tomava dois ou tomava um! Nada tomava, por vezes! Um absurdo, insistia! Pior quando a neta abriu a boca para falar da incontinência urinária da pobre mulher, a sujar o sofá da sala e a deixar um rastro, como se bicho fosse, antes de chegar ao banheiro. Tinha que sair atrás, com o pano de chão, a enxugar tudo e era preciso providenciar para se levar ao sol a peça em que costumava sentar-se, impregnada, como estava, pelo líquido das excreções humanas. Procedia assim porque queria, afirmava com todas as letras e com todas as sílabas, pois nada a impedia de se levantar antes das urgências orgânicas. Fosse mais cuidadosa, portanto!

A avó, que cumpriu, como se imagina, uma trajetória longa, palmilhada de sacrifícios e preenchida por doações que só as mães podem oferecer, nada respondia e nada comentava, ouvia tudo com uma fisionomia de profunda tristeza. Em que estaria pensando? Que reflexão fazia ali, naquele momento de tantas reclamações e de tantas queixas? Quase me aproximo e intercedo em favor da mulher idosa. Ou quase chego perto e verbalizo o futuro que está reservado a toda gente, de uma forma ou de outra. Por que se ocupavam de comentários assim, tão vazios de conteúdo existencial? Que benefício poderia ter fiando conversa com o porteiro? O homem do prédio teria o que lhe acrescentar à vida vivida? E o sono? Não sabem que é da idade, mesmo, essa sonolência precoce e a insônia do despertar antecipado? E não conhecem a fragilidade dos esfíncteres humanos na velhice?

Lembrei-me de uma outra cena que vi, há poucos dias, num hospital público do Recife, tão diferente daquela interlocução de ocasião. No leito da emergência uma senhora, também, de cabelos brancos como as nuvens do céu, ao seu lado o marido, de idade próxima, como parecia, agradando-lhe os braços e confortando-lhe o espírito. Gente simples, penso eu, sem muito estudo e sem muita cultura, mas dotada de afetividade, de amor ao próximo, sobretudo assim, no sofrimento e na dor. Viveram juntos, por certo, anos e anos na contabilidade do tempo e talvez se despedissem, mas a palavra que os uniu e os afagos que os aproximou confortavam a derradeira hora.

Contrastes do cotidiano, apenas!

(*) Gostaria que pudesse ser uma ode ao afeto, à forma atenciosa de ser, ao espírito desarmado do próximo que se oferece em sacrifício ao semelhante sofrido. Comente no Blog ou comente para o endereço eletrônico a seguir: pereira@elogica.com.br ou ainda comente para pereira.gj@gmail.com ou não comente, leia apenas ou não leia. Faça o que quiser e bem entender.

quarta-feira, 5 de março de 2008

O Altar dos Rochedos

A Academia de Artes e Letras de Pernambuco, a cujo sodalício pertenço por generosidade de sua gente, publica todos os meses um mais do que interessante Informativo, veiculando notícias e sobretudo excertos de palestras e artigos dos consócios. O mestre Carlos Ferraz cuida de tudo, da organização geral à seleção das matérias, da redação dos informes à digitação. Confesso que recebo o periódico com muito gosto! É a forma que tenho de participar da Casa, haja vista a minha dificuldade em compatiblizar os horários das reuniões com os meus, preenchidos, agora, por tantos afazeres, nesses prazeres de meu labor! Particularmente, venho sendo honrado com a transcrição de parte das minhas crônicas, publicadas, sempre, no JC. Agradou-me, em tudo, a veiculação de um discurso de Jamerson Ferreira Lima, que fala da Lenda da Alamôa, contada em Fernando de Noronha, retratando a paixão ardente de um certo varão, de cujo ciúme nasceu o ódio e de cujo ódio materializou-se o crime. A mulher, lindíssima, como refere o médico e escritor, loura e por certo, de cabelos longos e viçosos, dança na praia em noites de tempestade, desnuda, inteiramente, reacendendo a chama dos amores perdidos, injustamente!

E é no altar dos rochedos que a musa aparece! Emerge dos mares, para, novamente, dançar e encantar os homens de boa vontade, sob o som dos trovões e a claridade dos relâmpagos, como se o sacrifício da morte pudesse ser repetido assim, tantas vezes, ao rugido dos ventos, quando a chuva engrossa o tempo e a negritude encobre os céus. Mas, volta, na verdade, como diz o autor, para rever o amante preso, como ficou, na Ilha, chorando o pranto dos arrependidos, derramando as lágrimas de todos os remorsos, que marcam as rupturas mais do que definitivas, irreparáveis. E um outro de Pernambuco, Ferreyra dos Santos, cantou a “Alamôa” em versos do perdão: “... Alamôa/Alamôa/Sai dos olhos/Do pobre pecador/Tu que és mulher/Tem pena do homem/Que o crime dele/É crime de amor”. E muitos naquela ilha, que do Atlântico é a esmeralda, têm visto, em noites de temporal, a figura feminina bailando nos ares, de cabelos doirados, esvoaçantes, buscando nas areias cálidas o gesto, que seja, de entendimento, afinal. A reconciliação impossível, pois, do fantasma, condenado à diluição no etéreo das coisas, com o amante reduzido à condição de traste humano, arrastando, nos pedregulhos do lugar, fragmentos de vida.

Ali mesmo, na Ilha de Fernando de Noronha, outros amores impossíveis nasceram e não floresceram. Feneceram, então! Um desses, o da loira vinda das distâncias sulinas, trazendo na genética o traço europeu - Uma Alamôa também! -, com o nativo amorenado, cafuzo de origem, metade negro e metade índio. Os gestos finos da mulher, de unhas aparadas e ainda pintadas, faziam o contraponto com a forma embrutecida, quase, do ilhéu. E quando o comandante da aeronave, estacionada, já, no pátio, avisou da impossibilidade em levar toda gente, os olhos do nativo brilharam de felicidade e a moça, ao telefone, comunicou à família o adiamento inesperado, mesmo que desejado. Na Praia do Este, sob o sol poente, depois, perdidamente se amaram! Mas, ao primeiro sinal do dia, a despedida, outra vez, aflorou, separando, agora, para todo o sempre, aqueles amantes de efêmeros amores. O avião tomou posição na pista, rolou em velocidade elevada e alçou, finalmente, o vôo e nos ares da arquipélago foi promovendo a metamorfose de uma realidade assim, sentida e muito curtida, transformando tudo em lembranças, apenas, em saudades paridas de sonhos vividos. Devaneios, então, a preencherem vazios!

E outras “Alamôas” existem, muitas, infelizmente, condenadas à perpetuidade da dimensão do eterno! Muitas, também, vivendo as dores das chagas d’alma, que é uma forma de matar o espírito, preservando a matéria. Pra todas, os versos, ainda, do poeta: “...De vento no açoite/Uma sombra de gente/Se põe a dançar/Alamôa/Alamôa/Foi homem que pecou...”. Que os homens não pequem assim, com a morte e o maltrato das musas do tempo! Só as flores podem açoitar da amada a face!

E a Jamerson Ferreira Lima, novo acadêmico de todas as olindas, esta crônica.

(*) Crônica escrita e novamente publicada em homenagem a Jamerson Ferreira Lima, médico e escritor, nutrólogo e humanista, há pouco encantado para o infinito das coisas. Mas, oferecida, também, aos que fazem a Toyolex, a da av. Agamenon Magalhães: Felipe, Ítalo, Adriana e todos os demais. Gente que tão bem me atendeu e que teve a inusitada paciência de ouvir as minhas histórias, nunca as minhas estórias.
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sábado, 1 de março de 2008

Lábios de Mel

Era desses homens fortes, um negro robusto, dos lábios protundentes. Lembrava outro figurante das cenas da vida, que tinha um apelido inusitado: Bico de Ouro. Cognome, aliás, que lhe enchia as medidas e o deixava brabo, violento, capaz de bater em toda gente. Mas ele não, era tratado até com um certo afeto e chamado por um apelido que o envaidecia, quase sempre: Lábios de Mel. É que tinha uma queda muito especial por mulheres e segundo se comentava na comunidade, beijava da forma mais delicada possível, daí uma certa competição feminina em torno do personagem. Morava com a Nega Velha, como intitulou a companheira, em casa alugada, um barraco de dois cômodos, se muito e era dado à bebida. Tomava todas ou quase todas no bar da esquina, saia cuspindo e voltava pra casa, caia na cama e só acordava no dia seguinte. Dia sim, outro também, cumpria o ritual e a liturgia da cachaça.

Certa noite teve um sonho que lhe impressionara. Não era homem de ficar matutando com esses cenários oníricos, criados pelo inconsciente, que os psicanalistas interpretam usando o chamado conteúdo latente do discurso de cada um dos clientes. Ficava mais com a doutrina dos astrólogos ou mesmo aquelas mais simplistas, a dos bicheiros, que enxergam cada uma dessas divagações do sono de cada dia como uma indicação para o tão desejado sonho. O de ganhar dinheiro e ficar rico. Foi ao bar e fez a costumeira solicitação ao balconista de ocasião:

- Uma lapada e a música 3 do disco de Luiz Gonzaga!
A resposta veio em seguida, com toda a serenidade do mundo:
- A música, seu Lábios de Mel, eu não posso tocar, o meu avô morreu ontem!
Ao que respondeu o interlocutor, não sem antes tomar a lapada que pedira:
- E ele levou o disco? Foi? Foi?

Afinal, ao que as evidencias indicavam, o figurante não tinha entendido que o rapaz do balcão guardava o luto, um sentimento ainda existente nas cidades do interior de Pernambuco e nas periferias da metrópole. Veste-se o preto ou leva-se na roupa um sinal com essa cor, as festas estão desautorizadas e a musicalidade mundana afastada dos ouvidos. Quando muito, um canto de igreja ou uma sinfonia bem cuidada. E nada mais. O valente senhor, no entanto, tinha sonhado com um galo, a cujas dezenas deveria se prender (49-50-51-52), sem saber que fora o Barão de Drummond o inventor dessa loteria diferente, inusitada. Há quem sonhe com mulher e jogue na vaca ou quem sonhe com determinados artefatos presentes na cabeça de certos animais ungulados e jogue no touro. Ele não, estava fixado no galo, fora com o bicho penoso e sempre atraído pelas frangas do galinheiro, que tivera a sua inspiração matinal. Mas, dinheiro não tinha!

Bateu palmas no vizinho, seu Manoel da Bezerra e lhe pediu o dinheiro. Havia na outra esquina uma mocinha vendendo desses bilhetes novos, que sorteiam de uma só vez R$ 50.000,00 e mais 5 carros. Explicou tudo isso ao morador parede-meia, prometeu-lhe um carro, com toda a certeza dos números e de sua noturna divagação do inconsciente das coisas. Não havia jeito, o mês estava nos meados e as economias do salário, da aposentadoria da previdência, rareando já. Mas, Lábios de Mel insistiu tanto que o empréstimo saiu. E ele comprou o bilhete que esperava, saiu dali e foi guardar sob o travesseiro da cama. Escondeu o danado do papel; do papel e do número. O domingo ia chegar e ele tinha quase certeza que ganharia o prêmio

No dia marcado ligou a televisão e foi acompanhando o desfecho, prêmio por prêmio. E deu o bilhete dele no sorteio principal. Resultado: fora aquinhoado com R$ 50.000,00 e mais cinco carros de boa marca. Bateu forte com a mão espalmada no balcão da bodega e disse a frase mágica: “Ganhei na loteria. Bota uma lapada e a música 3 de Luiz Gonzaga! Vai ali e chama o seu ‘Manoel da Bezerra’!” O luto foi rompido, a radiola velha deixou sair os acordes da sanfona mágica e a voz do grande mágico do forró nordestino levou pelos ares o velho baião: “Nem se despediu de mim”. E a aguardente serviu para lembrar um amor antigo que fugira, sem despedidas, que já chegou contando as horas.

Lábios de Mel ficou rico. Deu um carro ao Manoel da Bezerra, vendeu três dos seus e passou a desfilar com o quarto, comprou três barracos na Vila Arraes, montou uma mercearia, que era também um bar e passou a freqüentar o clube do bairro, dançava até a madrugada com a Nega Velha e tomava todas. Tomava todas, aliás, de sua própria bodega, instalada com um estoque grande de tudo que era marca de aguardente. O tempo foi passando e o artista bateu com o carro, perdeu o celular e foi vendendo tudo, da mercearia às casas alugadas. Perdeu a moradia reformada e bela, numa briga com os irmãos, donos que eram do terreno. Ficou pobre outra vez, sem eira nem beira, na miséria como sempre esteve.

(*) E a história foi contada e a publicação pedida por Edvaldo Ferreira de Lima, motorista no NUSP/UFPE, o meu lugar, leitor deste Blog. Mas, há os necessários acréscimos da ficção, para se administrar o espaço disponível e para se oferecer um certo ar de graça ao relato.