sábado, 27 de setembro de 2008

Chupa-Osso, Tampa-de-Chaleira e Grampão

Chegamos ali – todos indistintamente – assustados, amedrontados e intimidados. É sempre assim, o desconhecido atemoriza, permite que o imaginário viaje pelos ares dos medos e dos receios, criando fantasmas que emergem como espectros aterrorizantes de almas do outro mundo ou de assombrações. Mas, o começo foi suave, a morte foi se apresentando diante de nós de forma muito lenta. Primeiro estudamos o esqueleto e eu chegava em casa, para desespero de minha mãe, com crânios e tíbias, com rádios e perônios ou com um fêmur de estrutura desejável em qualquer dos humanos de hoje em dia: firme e forte. Passamos a lidar com forames e eminências, com epífises e com diáfises. Os mestres, por vezes, nos enganavam e criavam orifícios que não existiam, para apavorar o incauto calouro. Era preciso, então, responder, na hora e no ato: forame artificial. Coisas dos inícios!
Até que um dia nos apresentaram ao cadáver desconhecido. Eram quarenta defuntos, se pouco, metade de cada sexo. Um corpo para cada quatro estudantes. Os apelidos começavam a ser postos ou impostos. Em minha mesa de dissecação estávamos eu, Pluto por cognome, em função de um salto – houve um tempo em que eu saltava – de um a outro nível no anfiteatro de anatomia, o Jia, o Velho e o Bico de Ouro. Tínhamos uma convivência harmônica e bem humorada. Cuidamos, de logo, em arranjar um nome, que fosse, para o nosso inerte companheiro e eu não sei quem sugeriu o vulgo: Pizulo. Ignoro o que significa e sequer a Internet, que de tudo sabe, é capaz de me oferecer uma solução para o impasse. Mas, assim convivemos todos, ele no silêncio de seu nada e nós na pândega do dia-a-dia de estudantes.
Faltei à explicação teórica de dissecação da mama e fui direto para a sala de aulas práticas, onde estava o nosso Pizulo, para adiantar o serviço. Resultado, cortei o mamilo do cadáver e os meus colegas ao chegarem quase me expulsam do lugar. Era para deixar a marca escura que caracteriza a mama masculina. Não tive dúvidas, apanhei do lixo o pedacinho de pele, recortei e com um alfinete e fixei no lugar. Quando o professor passou fiscalizando e dando as notas, fez o elogio da hora: “Muito bem! Conservaram o mamilo! Alguns dos seus colegas não fizeram isso!”. E a nota foi 10. Com essa observação eu me vinguei dos outros, de suas falas e de suas raivas. Aquilo tudo era uma novidade para toda gente, víamos a anatomia – o macro – de um lado e a histologia – o micro – de outro, o que nos fez ter uma base muitíssimo boa para a vida prática.
De outra feita, quando faltei novamente à aula teórica, na qual eram oferecidas as diretrizes para a dissecação programada, o professor ensinou a abordagem aos órgãos genitais. Eu, muito inocentemente, peguei o pênis – inerte também – de Pizulo e me virei para as meninas na mesa vizinha, onde havia um corpo de mulher, indagando: “É para torar ao comprido ou de banda?” Mostrei os dois sentidos com o polegar. Mas elas não gostaram da pergunta e a resposta foi imediata: “Não fale mais com a gente!”. E eu, na minha perplexidade emergente: “Por quê?”. Depois voltaram a falar e nós todos sempre fomos bons companheiros. Por conta disso, na reunião do grupo – Pluto, Jia, o Velho e Bico de Ouro – rimos às bandeiras despregadas.
Toda gente tinha apelido, alguns mais agressivos e outros menos. Quatro moças não se misturavam conosco, viviam isoladas entre si: Gases Nobres. Outra tinha seios fartos: Cilpe. Cilpe era uma companhia de beneficiamento do leite em Pernambuco. E o apelido pegou. Certa vez, na despedida da turma, Cilpe tinha bebido e me abraçando pediu: “Pluto! Diga porque o meu apelido é Cilpe?”. Depois da festa eu lhe explico melhor, respondi, e nunca pude esclarecer. Um colega encontrado com os olhos fechados sustentando um osso com o queixo e passando a mão para aprender as eminências e as cristas pelo tato, foi logo rotulado: Chupa-Osso. Havia outro que suava às bicas: Tampa-de-Chaleira. Um desses, de cor escura e de corpo avantajado: Marcelo Macaco. E por ai vai! Vaca de Bermuda, Pau de Fumo, Eosinófilo, Biu das Negras do Derby, Fofa, Alceia e Memeia, Matuto, Grande Trocanter, Grampão e outros mais.
E assim se passaram seis anos, há 40 anos pra trás. Alguns já foram chamados pela indesejada das bruxas, mas a grande maioria permanece convivendo neste mundo de Deus e dos homens, senão no cotidiano de todas as horas, mas nos encontros a cada 5 ou 10 anos, nas datas fechadas, então. Médicos de 1968 da Universidade Federal de Pernambuco.


(*) Crônica oferecida a cada um dos meus colegas de turma do ano de 1968, sobretudo a Moacir Novaes, figura extraordinária de companheiro, responsável único pelas festas e pelas bodas. A Jomar Ferreira Neto, também, pelo bom humos de sempre.