quarta-feira, 25 de junho de 2008

Olha pro Céu meu Amor!

No dia de São João, sobretudo à boquinha da noite, como agora, quando escrevo essas linhas, é impossível não lembrar de certas passagens ou de certos personagens que ainda hoje povoam as minhas lembranças. Dos verdes anos vividos nos limites da Boa Vista com o bairro de Santo Amaro, na localidade que o jornalista Paulo Malta, do Diário de Pernambuco, chamava de Pombal. Quando a Rádio Clube tocava o Angelus, era a hora de se começar o ritual do santo, primo que fora do Cristo e cujo nascimento teve um aviso especial: uma fogueira acesa. Santa Isabel informou a Maria dessa forma o nascimento do filho e a tradição vem passando esses costumes de geração em geração. O milho plantado no dia de São José costuma amadurecer e toda gente tem acesso aos acepipes que do grão derivam, diferente dos destinos que se dá nos Estados Unidos – onde vira álcool combustível –, a tão apreciado nutriente nesse canto do mundo.
A mesa, forrada com toalha de boa procedência, acolhia o pé-de-moleque feito por minha avó paterna durante toda a manhã daquele dia. A canjica também vinha compor o cenário da festa, além das garrafas de guaraná – Guaraná Fratelli Vita –, de laranjada Clipper ou de Bidu. Mas, antes de qualquer outro procedimento, cabia à minha mãe, com 88 anos agora, soltar os fogos. Não sei as razões dessa atribuição materna, mas a verdade é que os vulcões soltavam jatos fortes de faíscas que se espalhavam pelos ares do mundo, vez ou outra soltando uma bola colorida, para gáudio da meninada. Raramente, um foguetão espocava nas alturas e fazia tremer a prole inteira. Para esses – para os filhos – nada mais que as antigas caraduras ou os traques de massa, menos freqüentemente as bichas de rodeio. As estrelinhas ninguém suportava soltar, não somente porque eram fracas ou frágeis, mas pela fumaceira que deixavam. Quem tinha asma: Valha-me Deus do céu!
Era preciso fazer a fogueira arder em chamas e depois em brasas, pois isso assegurava, na crença do povo, vida por mais um ano para o dono da casa. Acendia-se, então, aquele monturo de gravetos, que às vezes recebia um reforço com a madeira de velhas estantes carcomidas pelos cupins. Chegava, assim, o momento das adivinhações e das simpatias. Levar uma bacia d’água até as proximidades do fogo e se olhar a imagem refletida do penitente, garantia a existência por mais um ano, também. E habitualmente fazia-se isso. Quem não se via ficava louco, verdadeiramente, e passava o ano todinho evitando situações embaraçosas ou perigosas. A faca na bananeira, enfiada à meia-noite, deveria trazer as iniciais do futuro cônjuge, do marido, pelo geral, mas da mulher também. Nunca vi funcionar, sequer amanhecer com as letras assim legitimadas.
Com 14 ou 15 anos, se muito, arranjei a primeira namorada, que me tinha mais pelos serviços que prestava à sua bicicleta, do que propriamente, por amor. Consertei diversas vezes os pneus furados, colando o remendo com um Michellin especial de que dispunha. Ninguém lembra mais disso, do Michellin doméstico! Mas a mãe dela, louca para me pegar pelo pé, providenciou todo o alfabeto em letras bem recortadas. Soltou os papelotes na água de uma bacia e mandou que escolhêssemos um daqueles pedacinhos. Ela tirou o “G” e casou-se com George e eu que tirei o “Z”, me casei com mulher de prenome começado pela consoante. Tinha o gracioso apelido de Zizi e uma genitora braba feito uma capota choca. Fazia até medo falar com essa sogra, pela sujeição a um baile se lhe desagradasse. Era um rolo!
Muitos anos depois fui encontrar a mesma tradição na rua de meu sogro, inclusive o costume de se passar nas brasas da fogueira, descalço, de uma vez, rapidamente, antes que um pedaço de madeira prendesse no solado do pé de um passante assim, às vezes incauto. Cheguei a atravessar o braseiro também, em mais de uma ocasião, mais de uma vez em cada ano, porém depois desisti dessa penitência, antes que me queimasse e de lá ferido voltasse.
E havia em minha rua uma moça com um defeito na face – uma ptose palpebral –, o que a fazia olhar sempre para cima. O apelido – coitada! – foi rápido e o constrangimento enorme: "Olha pro céu meu amor!" Uma homenagem desnecessária ao mestre que foi Luiz Gonzaga.


(*) - Uma crônica escrita na noite de São João, antes de acender a fogueira e antes de dançar o forró, sob o céu de Aldeia, contando com o friozinho do tempo e a solidariedade dos amigos do Bosque das Águas de Aldeia. Viva!

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Com Sirene ou Sem Sirene?

O meu batismo de fogo foi um atendimento externo, mesmo que nas cercanias do pronto socorro, centro ou quase centro de Paulista. Tomei assento na ambulância e segui em direção à casa do chamado. A família estava em desespero, a filha mais velha, depois de ter rompido o namoro, estava dura, durinha, em cima da cama, os olhos vidrados e revirados, sem falar e sem bulir. Entrei e examinei a criatura. Tudo bem, refleti com os meus botões, mas a mudez era completa e o estado permanecia o mesmo. Tomei, então, a decisão: levar para um exame mais detalhado. Na verdade, a intenção era outra, a de buscar o auxilio do médico. Eu era, apenas, um estudante e nunca tinha visto aquilo. Que horror! Mas, como ali todo mundo entendia um pouco de tudo, consultei o motorista e ele concordou. Levamos, então, com o acompanhamento da genitora da paciente.
Chegando ao Samdu, comuniquei ao enfermeiro – enfermeiro prático – a minha iniciativa e pedi que convocasse o profissional de plantão. A resposta foi imediata: “O que? De jeito nenhum! O senhor vai aprender comigo, porque isso é uma besteira. Uma crise de histeria!”. E era mesmo! Aprendi ali e nunca mais esqueci o diagnóstico, simples e besta. Depois, ele me convocou para demonstrar a sua destreza e com um algodão embebido em formol deu um porre na moça, a qual, para se livrar o cheiro insuportável da substância química, levantou-se em um pulo e com isso sensibilizou a mãe e os que chegaram depois, todos sentados na sala de espera aguardando o desfecho. Os louros, não preciso dizer, foram meus, mas o mérito fora dele, do enfermeiro. E os próximos casos, daí pra frente, durante toda a vida, eu resolvi com a mesma destreza daquele personagem.
Certa vez, eu dormia a sono solto numa cama hospitalar reservada aos acadêmicos de medicina – os estudantes eram sempre mal acomodados –, quando fui acordado pelo mesmo enfermeiro: “Doutor! Tem um Zuza ai!” Meio leso e sem entender bem de que ou de quem se tratava, fiz a esperada indagação: “O que? O que é um Zuza? Ou quem é Zuza?” E mais uma vez o artífice das noites do plantão me gozou: “Um defunto, doutor!”. E lá fui eu constatar o óbito e encaminhar para a necropsia, como exigia a lei, para melhor esclarecimento do falecimento. Esse camarada era uma figura e como funcionário antigo da previdência sabia de muita coisa; coisas que conseguiu aprender nos anos de trabalho e pôde transferir como conhecimento prático aos seus discípulos mesmo que informais. E ninguém lembra desses anônimos! Nem eu, que disso reclamo!
Nós almoçávamos no clube dos tecelões de Paulista, de saudosa memória, porque não existe mais. O domingo no clube era morgado, sem graça, pelo geral, mas o sábado, ao que sabia, tinha um jantar dançante que encantava os médicos e os estudantes. E, certa vez, um velho amigo, colega de turma, decidiu trocar o branco do jaleco pelo colorido da camisa e convidou uma penitente qualquer para um rodopio no salão. Ao se apresentar, mentiu e passou o meu nome, em lugar do dele. Resultado, a moça era colega de minha namorada e eu precisei controlar a reação, sem dano algum, que fosse. Nem lá nem cá! E ele fez um acerto comigo: vindo por uma calçada e eu estando na mesma direção e no mesmo sentido, que me retirasse para o outro lado. E hoje, rimos às bandeiras despregadas com a história. Cala-te boca!
O motorista – ninguém lembra seu nome também! – era outro figurante excêntrico dos plantões. Corria feito um desadorado na ambulância, sem respeitar sinal de trânsito e sem querer saber de mão ou de contramão. Era um desabusado, um quarentão que me confessava os seus casos de amor, com as mocinhas da Ilha do Maruim, onde passávamos, freqüentemente, à toda, rumo ao Hospital da Restauração. E eu recomendando que fosse mais devagar, não havia tanta urgência assim, mas ele era como aquele outro que conheci e que dizia: “Não precisa me orientar em nada, fui motorista de ambulância!”. Ele era o próprio, o rei das ruas de Paulista, de Olinda e de parte do Recife. Tinha uma pergunta que era sistemática, bastava entrar no veiculo: “Doutor? Com sirene ou sem sirene?” E de nada servia a negativa, era com a sirene ligada que transitava.
Descobriu, porque eu disse mesmo, que a minha namorada morava em Santa Tereza, caminho dos nossos percursos. E quando se aproximava do lugar, sugeria que passando por dentro do pequeno bairro eu poderia me mostrar, se ele de sirene ligada fizesse uma pirueta qualquer, para deleite – segundo ele – da moça apaixonada pelo estudante, materializando aquela frase do meu colega de turma, apelidado de "Fofa": “Namore com estudante e case com doutor!”. Nunca fez, mas cá por dentro, confesso, eu tinha vontade que fizesse, isso me levaria a estufar a auto-estima. É! Os valores mudam! Hoje, essas coisas são tão pequenas, mas tão pequenas que nada mais representam no todo da criatura.
Doutor? Com sirene ou sem sirene ? Sem sirene meu caro! E nunca saimos sem o estridente ruído.(*) -

Eis uma história pitoresca dos meus anos de estudante. Com o texto homenageio todos os anônimos que passaram por minha vida, os motoristas e os enfermeiros, mas sobretudo os doentes, com os quais aprendi. Comente aqui, no Blog mesmo ou comente para pereira.gj@gmail.com ou ainda para pereira@elogica.com.br Ou não comente, não diga nada.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Uma Ligação do Purgatório

A solenidade prolongou-se além do previsto, terminando na boquinha-da-noite já e ao encerrar o Presidente fez o costumeiro convite: o coquetel. Um velho companheiro das lides acadêmicas, que fora, também, meu vizinho de rua, amigo de conversas fiadas em sábados distantes e em tardes mornas de bucólicos domingos, pediu a minha companhia. Gostaria de ouvir, novamente, entre os brindes que no alpendre estavam começando, aquela história com a minha tia velha – tia de meu pai –, um episódio de um trote telefônico, como tantos outros de minha vida. Ainda hoje me socorro do artifício, seja para descarregar o stress do cotidiano ou para solucionar um impasse qualquer. Não podia ficar, infelizmente, justifiquei, mas prometi comparecer ao jantar que há de me oferecer outro dos interlocutores do momento, afilhado de ocasião, interessado, da mesma forma, na peripécia.

Fazendo uma retrospectiva, fiz poucas e boas por telefone, incluindo o celular. Já contei algumas. Um desses episódios foi há muitos anos, em Pau Amarelo, durante o meu veraneio habitual. Havia no Janga um veterinário que atendia às cadelinhas de casa, dando-lhes o banho semanal. De posse do número mágico que permite a comunicação, disquei para o penitente escolhido e imitando uma voz espanholada, disse ser dono de um circo, ora estacionado em Goiana e enfrentando um grande drama: uma terrível diarréia do elefante. Já tinha dado 54 vidros de Kaomagma e resultado não tivera. Indicaram-me a clínica do homem, disse, e por isso me dirigia para lá e deixaria o bicho com ele. Quase enlouquece a criatura, explicando que só cuidava de gatos e de cães, de animal de grande porte nada sabia. E lugar sequer teria. Não havia jeito, insisti, chegaria por lá e deixaria o paquiderme. Assustado, o pobre fechou a clínica nesse dia.

De outra feita, sentado na varanda de casa – um apartamento é claro –, em boa companhia de um de meus genros, que agora mora no Ceará, degustando uma lagosta de Itamaracá e alguns dos camarões que me dera Moisés, o homem bíblico, que levou 40 anos para consertar meu relógio, tive uma idéia. Peguei a invenção de Grahan Bell, hoje sem a menor necessidade de fio, e abordei o vendedor de uma farmácia próxima: “Bom dia! O senhor está sabendo das novas exigências para as drogarias e outros estabelecimentos congêneres?”. O moço interessou-se em conhecer os detalhes e eu, prontamente expliquei: “É que passa a ser obrigatória a venda de caixões de defunto em farmácias!”. E a resposta foi ótima: “Essa só com o gerente!”. Mas, o líder dos empregados não chegou a atender a chamada. Depois, o estabelecimento fechou e eu fiquei cabreiro: “Será que foi por causa de mim?”. Mas, não foi não!

Tem mais umas 500 histórias, mas a razão da crônica é a minha tia velha, solteirona convicta, mesmo que viúva da Guerra do Paraguai, porque, segundo contava, teve o noivo roubado por uma bala assassina do caudilho Solano Lópes. Mas, já era de muita idade, quando peguei a extensão no quarto de minha mãe e disquei aleatoriamente, fazendo tilintar o equipamento em baixo. Atendeu e eu comerei o inusitado diálogo: “Estou ligando para senhora diretamente do purgatório!” E ela: “E já liga do purgatório?”. Estamos em fase de experiência, respondi. E de pronto expressei o que desejava: “Tem uma botija no galinheiro, um passo à esquerda do coqueiro, cave sozinha, sem que ninguém veja e tire. Se assim não for, vou penar a eternidade inteira.”. E a pobre da mulher – Valha-me Deus! – pegou a enxada e se dirigiu ao lugar. Eu não podia perder o momento e fui atrás. Ela, então, dizia: “Saia daqui menino!”. Mas, o que é titia? – perguntava. Depois eu digo, menino danado, saia daqui, me deixa em paz – foram as respostas e as explicações. Não permiti que cavasse até não poder mais. Avisei, afinal.

Ela era irmã de minha avó paterna e ambas tinham a vista muito comprometida – não se operava catarata com facilidade –, de tal forma que tendo plantado alguns mamoeiros no quintal, eu tive o azar de quebrar uma dessas mudas. Imediatamente, usei uma fita adesiva – Durex à época – para fazer a emenda e ela, já muito idosa, ia todas as manhãs ver a plantinha. E dizia: “Mas, está murchinha! Está sentindo ter sido mudada de lugar!”. E a fruteira capotou e não se teve daquela planta fruto algum. Pior Moisés, o bíblico, que tendo atirado com um bodoque e morto um canário, admoestado por ela, por minha avó, prometeu ressuscitar o pássaro cantor e trouxe de casa um similar. E a velhinha acreditou!

Nós dois, eu o bíblico, vamos terminar pagando por tudo isso nas labaredas do purgatório.
(*) Encerro o texto comunicando a todas e a todos que fui contemplado com o 1º lugar no XXII Congresso Brasileiro de Médicos Escritores, na modalidade "Crônicas". Isso saciou as minhas medidas, isto é, elevou a auto-estima aos píncaros.

(**) - Crônica que ofereço a Geraldo Bosco, fraterno companheiro de outros momentos e de outras vivências. E, naturalmente, ofereço a Moisés, o bíblico, que levou 40 anos para consertar o meu relógio de menino e conseguiu a proeza de ressuscitar o canário. À tia e à avó, com as minhas escusas: eu era feliz e não sabia! Comente aqui ou comente lá - pereira@elogica.com.br - ou não comente, não diga nada, cale-se.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Essas Minhas Viagens!

Uma viagem depois da outra. Minas Gerais e o Ceará, sequer houve tempo para desfazer a mala. Roupas substituídas, trocadas por calças e camisas limpas e novamente o avião. Fazia muito calor na aeronave e eu lembrei de outro episódio. Seguia para um congresso nacional e por coincidência encontrei um colega de João Pessoa. De prenome Francisco, no hotel, por erro de digitação – o computador engatinhava –, trocado para Francosco. Rimos com isso às bandeiras despregadas. Vinha vestido a caráter – era formal o trajar dos passageiros –, paletó, gravata e colete. A cabine estava mais quente que as praias do Nordeste e toda gente suava às bicas. O companheiro de ocasião cuidava em mangar de mim, dizendo que eu tinha medo de avião e que o velho Boing ia cair. Valha-me Deus, quase digo! Mas, se não foi tanto, foi quanto!
Ás folhas tantas, o veículo aéreo, nascido do engenho de Dumont, sofreu uma queda de 500 metros, disse o comandante, justificando ter sido proposital, com a finalidade de reparar a refrigeração. Uma freira ao lado – Uma freira? Que horror! Dá azar! –, diante do esclarecimento, indagou: “O senhor que fala muito: acredita na explicação?” Se verdade for, com toda certeza, minha senhora, ao voltar, hei de jogar do telhado um equipamento antigo de ar condicionado e esperar que volte a funcionar! E ela tirou o rosário do bolso, começou a rezar e se calou. O nosso depois apelidado Francosco, virando-se para mim e completamente suado, tal o medo ou tal o pavor de morrer ali, nos ares do mundo, expressou o seu último desejo: “Vamos tomar uma cerveja lá atrás!”. E fomos! O comissário, indagado sobre o que havia, disse que era uma pane, mas de detalhes não dispunha. Apenas nos serviu. E eu fiquei para contar a história.
Sobre viagem, aliás, digo que logo depois de formado, médico de anel no dedo, fui fazer um curso em São Paulo, no conhecido Instituto de Medicina Tropical, sob os auspícios de um brasileiro ilustre: Prof. Carlos da Silva Lacaz. Pois bem, atravessando o rio São Francisco de balsa, como se fazia outrora, vi uma jovem senhora desmaiar. O marido, muito solícito, sentou a companheira no piso da embarcação e começou a abaná-la. Eu, de minha parte, no fiel cumprimento do juramento de Hipócrates, me apresentei e lembrei que deveria deitar a mulher, como forma de fazer o sangue voltar a irrigar, devidamente, o cérebro. E a resposta veio rápida: “Muito bem! O senhor é médico! Mas, foi chamado para tomar alguma providencia?”. E nunca mais me meti, sem que para tanto fosse convocado.
Mas, convocado mesmo eu fui por um comandante de outra aeronave, em trajeto para São Paulo, quando levava meu sogro para uma cirurgia na Beneficência Portuguesa, onde operava o cirurgião maior do coração brasileiro: Jesus Zerbini. De repente, o rádio de bordo: “Atenção: se há algum médico presente, por favor, dirija-se à cabine de comando!”. Olhei para trás e olhei para frente, ninguém, não tive dúvidas: era comigo. E compareci ao cubículo em que ficam os operadores de vôo: o piloto e o co-piloto, além do mecânico de bordo à época. Ouvi, então, o problema: havia um homem passando mal e cabia tomar uma providência. Era um senhor conhecido na República, baixinho, entroncado, que além de vomitar muito, estava desfalecido, sem forças e com fortes dores no peito.
Eu tinha aprendido com o meu chefe – Ruy João Marques – a auscultar com o ouvido desarmado, isto é, sem o estetoscópio. O coração pulsava vagaroso, era um sinal evidente de enfarte do miocárdio, em função do grande esforço que fazia o doente. Não havia medicação, senão um comprimido sublingual que me conseguiu um padre. O paciente, infelizmente, faleceu e o cura aéreo me pediu licença para o derradeiro sacramento. Disse-lhe que disso não cuidava e ele, com a autorização de esposa aflita, fez lá uma mugangas e considerou salva aquela alma. Ao final, uma senhora muito gorda, sentada ao meu lado, disse que era advogada e como se tratava de uma autoridade, punha-se à minha disposição. Desembarquei meio assustado, com o padre me enlaçando o ombro e dizendo: “Que trabalho, doutor!” E eu: “Menos para o senhor, que com os seus trejeitos pôde cumprir o dever canônico!”.

Essas minhas viagens!

(*) - Crônica escrita numa manhã de junho - 3 de junho -, mal o dia amanhecia, em Fortaleza, na sala da casa de minha filha Patrícia. Vejo ela por 4 dias, se pouco, e apresento três trabalhos no Congresso da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames). Um sobre a Comadre Fulozinha, outra a respeito da Alamõa de Fernando de Noronha e mais um a propósito da Emparedada da Rua Nova-Verdade ou Ficção?